segunda-feira, 18 de agosto de 2025

ZADOK, UM "SACERDOTE SEGUNDO O CORAÇÃO DE DEUS"


1. Já defendi, em post anterior, que “ser alguém segundo o coração de Deus”, como Davi (cf. 1Sm 13,14), é uma maneira de dizer que determinado indivíduo foi fiel cumpridor da lei, ou melhor, da lei tal como aparece registrada no Deuteronômio. Outro rei louvado por sua fidelidade à lei deuteronômica é Josias, por isso o Segundo Livro dos Reis declara: “não houve antes dele [de Josias] rei algum [nem Davi!?] que se tivesse voltado, como ele, para Yahweh, DE TODO O SEU CORAÇÃO...” (2Rs 23,25).

2. Além de reis, também “procede conforme o coração de Deus” um sacerdote. Quando o sacerdote Eli é advertido de que o ofício sacerdotal seria removido de sua casa, a seguinte promessa é anunciada: “farei surgir um SACERDOTE FIEL, que procederá CONFORME O MEU CORAÇÃO e o meu desejo, e lhe concederei uma casa que permaneça, a qual andará sempre na presença do meu ungido”. Mas quem é esse sacerdote? E quem é esse ungido ao lado do qual atuará esse sacerdote?

3. Bem, esse “ungido” é Davi e esse sacerdote é Zadoc, que substituiu a linhagem de Eli (cf. 1Rs 2,27). Embora a genealogia bíblica apresente Zadoc como descendente de Aarão, assim como Eli, especula-se que ele tenha sido originalmente um sacerdote jebuseu incorporado à religião israelita por meio de algum tipo de negociação. Seja como for, veja que Zadoc, ao lado de Davi e Josias, recebe um status especial. E por que todos receberam esse status especial? Ora, porque foram avaliados a partir do que diziam as leis deuteronômicas.

4. Então não tem nada a ver com o fato de Davi ser alguém que constantemente se arrependia? Não. Saul também é apresentado como alguém arrependido após ter poupado Agag, rei amalequita, do anátema (cf. 1Sm 15,3): “Pequei e transgredi a ordem de Yahweh e os teus mandamentos, porque temi o povo e lhe obedeci" (1Sm 15,24). É importante perceber que o critério de avaliação dos reis, sacerdotes e profetas bíblicos não era baseado em valores modernos, mas em valores considerados preciosos pelo redator.


Jones F. Mendonça

SAUL EM ÊXTASE


1. Os tradutores da Bíblia divergem bastante em relação à tradução de 1Sm 18,10. Assim que é tomado pelo “espírito maligno da parte de Yahweh”, Saul busca tirar a vida de Davi porque: 1) “tem uma crise de raiva” (ARA), 2) “começa a agir como louco” (NTLH), 3) “entra em transe profético” (NVI), 4) “começa a profetizar” (ACF) ou 5) "a delirar" (BJ)?

2. Eu diria que a tradução mais literal é “começa a profetizar”. O verbo aí é “naba’” (נבא), termo de mesma raiz de “nabiy” (profeta). Mas o que significa "profetizar"? Explico. “Profetizar” significa “agir sob a influência do espírito”. E há muitas evidências de que essa “ação do espírito” ("maligno" ou "benigno") muitas vezes vinha acompanhada de uma espécie de delírio ou êxtase.

3. O capítulo 19 do Primeiro Livro de Samuel preserva um bom exemplo. Ao se juntar a um grupo de profetas, que “profetizavam” ao som de música (10,5), Saul também começa a "profetizar", caminhando com eles até as celas de Ramá. Ao fim de tudo ele se despe de suas vestes (fica nu), cai do chão e permanece nessa situação por toda a noite (19,24).

4. Há muitas evidências no Antigo Testamento capazes de indicar que a atividade profética envolvia música, transe, transmissão de mensagens (orais ou encenadas) e, quem sabe, até mesmo o balbuciar de palavras incompreensíveis (glossolalia). Com o perdão do anacronismo, eu diria que Saul e os profetas de seu tempo tinham um viés bem "pentecostal".

5. Aos interessados no fenômeno da possessão, eu indico "A possessão da mente", escrito pelo psiquiatra britânico William Sargant. Caso seu interesse seja sobre o êxtase no antigo profetismo israelita, eu sugiro "The Prophets", escrito pelo rabino Abraham Joshua Heschel, que aborda o tema nos capítulos VIII e IX: “Prophecy and Ecstasy” (p. 414-427) e “The Theory of Ecstasy” (428-447).

* Arte: Hana Choi


Jones F. Mendonça

DOIS PAPAS


1. Sei que estou bastante atrasado, mas só agora parei para assistir "Dois Papas", dirigido por Fernando Meirelles e estrelado por Jonathan Pryce e Anthony Hopkins. Três impressões negativas: 1) "Conclave", também sobre o papado, é muuuuito melhor; 2) Ratzinger é retratado no filme quase como um evangélico fundamentalista ao estilo Augustus Nicodemus ou Franklin Ferreira; 3) O diálogo teológico travado entre os dois sacerdotes no jardim de inverno do Vaticano é decepcionante, inverossímel em todos os sentidos.

2. Sobre o ponto 2: Bento XVI era um ferrenho crítico de John Harwood Hick, teólogo presbiteriano muito conhecido por sua interpretação relativista da realidade religiosa, fortemente influenciada pela distinção kantiana entre "fenômeno" ( = a realidade percebida pelos sentidos) e "número" ( = a realidade em si, incogniscível). Assim, critica Hick por supor que o ser humano está impossibilitado de obter qualquer conhecimento metafísico. Nesse sentido, Ratzinger, de fato, aparece alinhado às ideias cultivadas por setores evangélicos fundamentalistas.

3. Acontece que a produção teológica de Ratzinger é muito mais sólida e profunda. Nos diálogos travados com Francisco no jardim, Ratzinger expõe argumentos pobres, ingênuos, até infantis, para justificar sua postura conservadora, sua crítica à modernização da Igreja. Quem estiver interessado no pensamento de Ratzinger a respeito do tema, eu sugiro "Relativismo teológico: um novo desafio para a fé", texto dirigido aos Presidentes das Comissões Episcopais Latino-Americanas para a Doutrina da Fé, em conferência realizada em Guadalajara, em 1996.

4. Acredito que Ratzinger está errado em muitos pontos. Mas o filme expôs uma caricatura do teólogo. Foi injusto. Decepcionante.



Jones F. Mendonça

DEUS, PÁTRIA E "FAMIGLIA"


1. Embora seja inegável que o lema "Deus, pátria e família", abraçado pelos integralistas e pelo bolsonarismo, tenha sido utilizado pelo movimento fascista italiano, sua origem remonta, ao menos, ao século XIX. Na cornija do mausoléu de Bela Rosin, construído entre 1886 e 1888, ainda podemos ler: "Dio, patria e famiglia".

2. O lema parece defender valores que a maior parte da população brasileira consideraria elevados. A questão que se coloca diante de nós é a seguinte: que "Deus", que "pátria", que "família" se está exaltando? Há no mundo muitos deuses, mesmo quando invocados sob o mesmo nome. O "Deus" de Luther King - todos sabemos - não é mesmo "deus" dos cristãos da Ku Klux Klan.

3. Há também muitas "pátrias" e muitas "famiglias"...



Jones F. Mendonça

sábado, 9 de agosto de 2025

O QUE SIGNIFICA SER "UM HOMEM SEGUNDO O CORAÇÃO DE DEUS"?

1. Já defendi, em post anterior, que “ser alguém segundo o coração de Deus”, como Davi (cf. 1Sm 13,14), é uma maneira de dizer que determinado indivíduo foi fiel cumpridor da lei, ou melhor, da lei tal como aparece registrada no Deuteronômio. Outro rei louvado por sua fidelidade à lei deuteronômica é Josias, por isso o Segundo Livro dos Reis declara: “não houve antes dele [de Josias] rei algum [nem Davi!?] que se tivesse voltado, como ele, para Yahweh, DE TODO O SEU CORAÇÃO...” (2Rs 23,25).

2. Além de reis, também “procede conforme o coração de Deus” um sacerdote. Quando o sacerdote Eli é advertido de que o ofício sacerdotal seria removido de sua casa, a seguinte promessa é anunciada: “farei surgir um SACERDOTE FIEL, que procederá CONFORME O MEU CORAÇÃO e o meu desejo, e lhe concederei uma casa que permaneça, a qual andará sempre na presença do meu ungido”. Mas quem é esse sacerdote? E quem é esse ungido ao lado do qual atuará esse sacerdote?

3. Bem, esse “ungido” é Davi e esse sacerdote é Zadoc, que substituiu a linhagem de Eli (cf. 1Rs 2,27). Embora a genealogia bíblica apresente Zadoc como descendente de Aarão, assim como Eli, especula-se que ele tenha sido originalmente um sacerdote jebuseu incorporado à religião israelita por meio de algum tipo de negociação. Seja como for, veja que Zadoc, ao lado de Davi e Josias, recebe um status especial. E por que todos receberam esse status especial? Ora, porque foram avaliados a partir do que diziam as leis deuteronômicas.

4. Então não tem nada a ver com o fato de Davi ser alguém que constantemente se arrependia? Não. Saul também é apresentado como alguém arrependido após ter poupado Agag, rei amalequita, do anátema (cf. 1Sm 15,3): “Pequei e transgredi a ordem de Yahweh e os teus mandamentos, porque temi o povo e lhe obedeci" (1Sm 15,24). É importante perceber que o critério de avaliação dos reis, sacerdotes e profetas bíblicos não era baseado em valores modernos, mas em valores considerados preciosos pelo redator.


Jones F. Mendonça

terça-feira, 5 de agosto de 2025

O CORAÇÃO NA BÍBLIA HEBRAICA

1. Três expressões na Bíblia Hebraica empregam o elemento “coração” como expressão da vontade. O primeiro exemplo vem de uma característica atribuída a Davi, a Zadoc e aos “pastores”, que agiam “segundo o CORAÇÃO DE DEUS” (cf. 1Sm 13,14; 1Sm 2,35; Jr 3,15). Assim, a expressão “segundo o CORAÇÃO de Deus” deve ser lida como “segundo A VONTADE de Deus”. “Coração”, aqui, não possui qualquer apelo sentimental.

2. Em alguns casos, o “coração” é o do próprio personagem. Josias, por exemplo, é louvado por se voltar para Deus “de todo o seu coração” (2Rs 23,25). O que isso significa? Significa que este rei está sendo elogiado por obedecer a Deus com toda A SUA VONTADE, com todo o seu entendimento e com toda a sua força. E quem pode agir dessa maneira? De acordo com o Deuteronômio, todo aquele que circuncidou o “prepúcio do seu coração” (Dt 10,16).

3. Por vezes a referência ao coração expressa algum tipo de motivação reprovável. Isso acontece quando é dito que determinada pessoa age de acordo “com o seu próprio coração”. Este tipo de apelo negativo ao coração pode ser encontrado em Ezequiel: “dize aos que profetizam SEGUNDO O SEU PRÓPRIO CORAÇÃO” (Ez 13,2) e “volta-te contra as filhas do teu povo que profetizam SEGUNDO O SEU PRÓPRIO CORAÇÃO” (Ez 13,17).

4. Neste último exemplo o “coração” desempenha a mesma função, atuando como sinônimo de “vontade”. Assim, quem profetiza “segundo o seu próprio coração”, faz isso de acordo com suas próprias vontades e não “de acordo com o coração/vontade de Deus”. O “coração” também pode aparecer de alguma maneira relacionado ao intelecto (Ecl 1,13), aos desejos (Pv 20,5), às paixões (Gn 34,3) e ao medo (1Sm 28,5).


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 25 de julho de 2025

HIPÓTESE DOCUMENTAL, REDAÇÃO CONTINUADA E CÍRCULOS NARRATIVOS


1. No capítulo 10 do Gênesis o leitor é informado a respeito dos “clãs” e das “LÍNGUAS” faladas pelos descendentes de Noé: Jafé, Cam e Sem (Gn 10,5.20.31). Mas já no capítulo seguinte esse mesmo leitor se depara com esta surpreendente declaração: “Havia em todo o mundo UMA ÚNICA LÍNGUA e um único idioma”. Afinal, havia "muitas línguas" ou "uma única língua"? Sigamos.

2. Quando comparamos o relato da criação de Gn 1 com o relato de Gn 2 também somos surpreendidos por desconexões dessa natureza. Repare que em Gn 1 o homem é criado no sexto dia (1,26), DEPOIS da vegetação (1,11). Em Gn 2 a ordem aparece invertida: o homem é criado ANTES da vegetação: homem – Gn 2,7; vegetação – Gn 2,8-9. Como explicar isso?

3. Todas essas questões foram amplamente discutidas por estudiosos da Bíblia no século XIX. Julius Wellhausen desenvolveu uma hipótese que se tornou dominante no âmbito acadêmico até a década de 70: o Pentateuco seria o resultado da junção de quatro fontes escritas, nascidas em lugares e tempos diferentes, mais tarde unidas para compor uma obra unificada. Nesse sentido, Gn 1 e Gn 2 seriam relatos independentes.

4. A hipótese de Wellhausen, conhecida como “hipótese documental”, foi capaz de explicar não apenas os conflitos, rupturas e repetições narrativas, mas também as diferenças entre códigos legais do Pentateuco relacionados ao mesmo tema. Mas, como já foi dito, na década de 70 a hipótese documental foi alvo de uma série de críticas.

5. Apesar de reconhecerem que o Pentateuco não foi escrito por uma só pessoa, mas o resultado de um longo processo redacional, esses estudiosos perceberam que a formação desse bloco de cinco livros foi muito mais complexa do que supunha Wellhausen. Duas teorias novas surgiram: 1) Hipótese da redação continuada, 2) Hipótese dos círculos narrativos.

6. A hipótese da REDAÇÃO CONTINUADA propõe o seguinte: havia, originalmente, uma narrativa completa, que ia da Criação à morte de Moisés. Mais tarde essa história teria sofrido interferências redacionais atualizadoras e interpretadoras. A hipótese dos CÍRCULOS NARRATIVOS, por outro lado, supõe os diversos blocos narrativos do Pentateuco tiveram sua própria história de crescimento, sendo unidas mais tarde.

7. Atualmente há quem busque outras soluções. W. H. Schmidt, por exemplo, tentou combinar o modelo dos círculos narrativos com o modelo de fontes. Seja como for, uma coisa é certa: o Pentateuco tal como o conhecemos é uma obra compósita, produzida por muitas mãos que liam e reliam narrativas mais antigas, as atualizavam, as ressignificavam.




Jones F. Mendonça

quinta-feira, 24 de julho de 2025

NIETZSCHE, LUTERO E OS CAMPONESES


1. Quando a Reforma estourou, os camponeses começaram a alimentar esperanças pelo fim da servidão. Diziam: “Cristo libertou todos os homens!”. Lutero considerou a declaração problemática sob a perspectiva teológica, social, política e econômica. Então disse assim:
Abraão e os outros patriarcas não tinham escravos? [...] Um reino terreno não pode sobreviver se nele não houver uma desigualdade de pessoas, de modo que algumas sejam livres e outras presas, algumas soberanas outras súdita" (Lutero, Works, IV, p. 240).
2. Em Gaia Ciência (aforismo 358), Nietzsche resume bem a dupla natureza da Reforma: “Lutero fez no interior da ordem eclesiástica, portanto, precisamente o que combateu de forma intransigente na ordem civil – uma rebelião camponesa”.

3. Trocando em miúdos: Lutero combateu a hierarquia eclesiástica, mas sacralizou a hierarquia social.



Jones F. Mendonça

LUTERO E OS CAMPONESES DA SUÁBIA

1. No impulso do impacto que as ideias de Lutero tiveram na Alemanha, um grupo de camponeses da Suábia fez a seguinte exigência: “Toda a comunidade terá o poder de escolher e depor um pastor" (Artigo 1). Não queriam ser conduzidos por pastores indicados pelos príncipes. Desejavam uma igreja democrática.

2. Lutero examinou o pedido dos camponeses e escreveu assim: “Se os bens da paróquia provêm dos governantes, e não da comunidade, então a comunidade não pode aplicar esses bens ao uso daquele que escolher, pois isso seria roubo e furto” (Admoestação à paz, 1525).

3. Trocando em miúdos: se a terra na qual vivem os camponeses pertence ao príncipe, o templo no qual se reúnem os camponeses também pertence a ele. Assim, caso queiram eleger (e depor) seu próprio pastor, que adquiram sua própria propriedade e construam seu próprio templo.

4. Problema: boa parte dos camponeses não tinha propriedades. Aliás, os camponeses denunciam o roubo dos campos comuns pela nobreza (art. 10). Quanto à esta queixa Lutero responde: “deixo esta questão para os advogados, pois não é apropriado que eu, um evangelista, delibere sobre este assunto”.



Jones F. Mendonça

O PECADO NA BÍBLIA HEBRAICA


1. Todas as vezes que um leitor da Bíblia se depara com a palavra “pecado”, no Antigo Testamento, está lendo a tradução da palavra hebraica “hata’” (חטא) ou algumas de suas variantes. Mas qual o seu significado? Bem, seu sentido mais básico é “errar”, “falhar”, “cometer um equívoco”. Quer um exemplo? Assim que percebe que sua rebelião contra Senaqueribe deu errado, o rei Ezequias diz assim: “COMETI UM ERRO... aceitarei as condições que me impuseres...” (2Rs 20,16).

2. No exemplo acima, não faz sentido dizer que Ezequias “pecou”, porque seu erro não foi contra um mandamento divino e sim contra um rei estrangeiro. Apenas quando esse “erro” aparece relacionado ao descumprimento de alguma ordem divina, os tradutores optam pela palavra “pecado”, do latim “peccare”, que significa “tropeçar”. A escolha não foi ruim, afinal, a alusão visual a um “tropeço” funciona muito bem para indicar um erro, esteja ele relacionado a um preceito religioso ou não.

3. Ao longo dos séculos, no entanto, a palavra “pecado” passou a ser empregada de forma restrita, como se fosse possível fazer uma lista daquilo que é “certo” ou “errado” a partir do texto bíblico. No caso do Antigo Testamento, por exemplo, “matar” é considerado “pecado” apenas em certas circunstâncias. Há casos em que “NÃO matar” é tratado como um “pecado”, como no caso de Saul, que poupou a vida de Agogue, rei amalequita, e o melhor do seu rebanho (1Sm 15,9).
 
4. Além disso, a palavra “pecado”, na cabeça de boa parte das pessoas, tem servido para indicar “tropeços” muito específicos, geralmente de ordem sexual ou relacionados a práticas condenáveis de forma quase que universal, tais como a mentira, o roubo e o assassinato. No Antigo Testamento, no entanto, a percepção de que alguém cometeu um “pecado” diante de Deus está diretamente relacionada a alguma ordem divina que foi desobedecida, seja ela moralmente aceitável ou não sob uma perspectiva moderna.
 
5. Foi pensando em todas essas questões que Martin Ehrensv, um dos tradutores da Bibelen 2020 – versão da Bíblia escrita em dinamarquês –, resolveu traduzir “hata’” por expressões mais neutras, tais como “algo que Deus não quer” ou “algo que se opõe à vontade / lei de Deus”. Com este artifício, Ehrensv evita perpetuar noções equivocadas atribuídas a determinadas palavras hebraicas, cujo sentido original foi contaminado por noções que não fazem parte do seu universo linguístico.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 18 de julho de 2025

SEXO E GÊNERO NA BÍBLIA HEBRAICA


1. Uma das atividades mais elementares do ser humano consiste na classificação do mundo percebido pelos sentidos. Essas classificações aparecem relacionadas, por exemplo, ao espaço: 1) coisas situadas acima do plano (no céu), 2) coisas situadas no plano (a terra), e 3) coisas situadas abaixo do plano (no subsolo). Os antigos chegavam a projetar esses três planos no imaginário religioso: nos céus, os deuses; na terra, os seres vivos; no submundo, os mortos/deuses da morte ou os demônios.

2. Além da relação com o espaço, a classificação também aparece envolvida com o tempo. Classificamos aquilo só existe no âmbito da memória como passado, aquilo que está sendo vivido como presente, e inserimos nossos planos e expectativas no tempo reservado ao futuro. Além de tempo e espaço, classificamos também as cores, os tipos de solo, os gêneros musicais, as ideologias, os sabores, as placas de trânsito e até mesmo o tipo de hambúrguer vendido na lanchonete. É impossível viver sem classificar.

3. Os seres humanos também não escaparam à classificação. Distinções são feitas a partir da cor da pele, do status social, do local de nascimento, do sexo, da religião e também do papel social de gênero. Quando alguém pergunta: “o que faz de um macho um macho de verdade?”, estamos nos perguntando a respeito do papel de gênero, ou seja, do papel desempenhado pelo macho tal como esperado em determinada sociedade. Não é preciso viajar pelo mundo para saber que esse papel não cai do céu, mas é socialmente construído.

4. Lutero, por exemplo, achava que machos não tinham um dom natural para acalentar bebês, habilidade que ele considerava inata às mulheres (Preleções sobre o Gênesis, 3,16). Um macho que porventura revelasse aptidão com recém-nascidos seria classificado como “maricas”, ou seja, como um macho que não está cumprindo bem o papel que lhe foi reservado pelo grupo no qual está inserido. Nas sociedades patriarcais esperava-se que o homem dominasse as mulheres. Veja o caso de alguns personagens bíblicos.

5. Um leitor atento percebe, por exemplo, que Faraó é ridicularizado na narrativa bíblica por não ter controle sobre sua filha, que adota um bebê hebreu. Do mesmo modo, a incapacidade de Acabe em governar Jezabel cumpre o propósito do narrador, que tem a clara intenção de retratá-lo como um rei fraco e “pouco masculino”. Das mulheres era esperado, acima de tudo, que gerassem filhos. Elas mesmas assumiam esse papel, o que explica a profunda angústia de Ana (1Sm 1,11) e Raquel (Gn 30,1). Nas sociedades urbanas modernas esse papel vem perdendo força.

6. Bem, eu venho há algum tempo catalogando livros que se dedicam ao tema “sexo e gênero na Bíblia”. Aqui estão algumas das obras que consegui encontrar sobre o assunto:

ANDERSON, Cheryl.  Women, ideology and violence: the construction of gender in the Book of the Covenant and Deuteronomic Law. London: Bloomsbury Publishing PLC, 2005.

STÖKL, Jonathan; CARVALHO, Corrine L. (edit.). Prophets male and female: gender and prophecy in the Hebrew Bible, the Eastern Mediterranean, and the ancient Near East. Atlanta: SBL Press, 2013.

MATTHEWS, Victor H., LEVINSON, Bernard M. FRYMER-KENSKY, Tikva. Gender and Law in the Hebrew Bible and the Ancient Near East. Shefield: Sheffield Academic Press, 1998.

BAKER, Cynthia M. Rebuilding the House of Israel: architectures of gender in jewish antiquity. Stanford: Stanford University Press, 2002.

CARR, David M. The Erotic Word: sexuality, spirituality, and the Bible. Oxford:  Oxford University Press, 2OO3.

ROOKE, Deborah W. Embroidered garments priests and gender in Biblical Israel. Sheffield: Sheffield Phoenix Press, 2009. 




Jones F. Mendonça




quarta-feira, 16 de julho de 2025

LUTERO, ARISTÓTELES E OS COMETAS


1. No final do segundo volume de suas “Preleções ao Gênesis” (1535-1545), Lutero discorre sobre o arco-íris, fenômeno visual apresentado nas linhas da Bíblia como sinal da aliança entre Deus e os seres vivos, cuja finalidade é funcionar com memorial-garantia, assegurando que a terra jamais seria destruída novamente pelas águas (Gn 9,8-17).

2. Lutero entende que o arco-íris não pode ser explicado pela razão, como supunha, por exemplo, Aristóteles em seu tratado “Meteorológica”(metéoros + lógos),” escrito há aproximadamente 2000 anos antes do nascimento do reformador. No tratado, Aristóteles defende que o arco-íris é o resultado do reflexo da luz solar projetada nas gotículas das nuvens (estava certo).

3. Mais adiante, após debochar dos filósofos por acreditarem que os fenômenos naturais podem ser explicados à luz da razão, Lutero diz o seguinte: “todos esses fenômenos são obras de Deus ou de espíritos malignos”. Ele cita como exemplo as “cabras dançantes”, as “serpentes voadoras”, e as “lanças ardentes” (!?), interpretadas como “travessuras dos espíritos no ar”.

4. Lutero terminou de escrever o comentário um ano antes de sua morte, tornando este trabalho uma fonte importante para compreender o pensamento do reformador em sua fase madura. É possível adquirir “Preleções sobre o Gênesis” gratuitamente no site do Project Gutemberg, no formato PDF, em inglês.


Jones F. Mendonça

terça-feira, 15 de julho de 2025

POR QUE HÁ TANTAS TRADUÇÕES DIFERENTES DA BÍBLIA?

1. É possível apresentar ao menos três razões para explicar as diferenças – por vezes gritantes – entre as versões da Bíblia disponíveis no mercado. A primeira delas aparece relacionada ao manuscrito utilizado como base para a tradução. Ao contrário do que muita gente imagina, as cópias do texto bíblico do AT e do NT, produzidas manualmente durante séculos, possuem muitas diferenças entre si, ocasionadas por diversas razões, tanto intencionais como não intencionais. É tarefa da Crítica Textual comparar essas cópias na tentativa de reconstruir aquele que seria o texto mais antigo. Este trabalho envolve uma série de complexidades que não cabem em um post do Facebook.

2. A segunda razão toca em uma questão que afeta qualquer tipo de tradução. As palavras de um determinado idioma não equivalem exatamente às palavras de outro idioma, exigindo do tradutor um exercício nem sempre fácil: escolher palavras do idioma de destino que melhor correspondam às palavras do idioma original. Esse exercício se torna ainda mais complexo quando o texto que está sendo traduzido foi redigido de forma poética (como os Salmos), ou estruturado em pequenas sentenças (como o Livro de Provérbios). Nem todos compreendem do mesmo modo as metáforas, os jogos de palavras, as sutilezas do idioma original. E é preciso acrescentar: sequer sabemos o significado de algumas palavras.

3. A terceira razão diz respeito ao método de tradução: equivalência formal ou equivalência dinâmica? Os tradutores que optam pelo método de equivalência formal se esforçam para manter a estrutura original do texto. Um exemplo: “vaidade das vaidades, diz o pregador...”. Neste caso, o tradutor buscou seguir exatamente a estrutura do texto hebraico: “havel havalim ‘amar qohélet”. As versões que adotam o método de equivalência dinâmica, entendendo que a repetição de uma mesma palavra, no singular e no plural (“havel havalim” = “vaidade das vaidades”), funciona como superlativo, optam por sintetizar a ideia de maneira mais simples. Isso explica a opção feita pela NVI: “Que grande inutilidade!”.

4. É interessante notar que o exemplo acima, tomado de Eclesiastes 1,2, exigiu do tradutor duas habilidades: 1) Escolher uma palavra em nosso idioma que melhor corresponde ao hebraico “havel”, que significa “névoa” (daí “vaidade”, do latim “vanus” = “vazio”, ou, como preferiu a NVI, “inutilidade”); 2) Escolher se mantém a estrutura original do texto (equivalência formal) ou se tenta capturar a ideia que o texto quer comunicar (equivalência dinâmica). Caso o texto de Eclesiastes em questão tivesse sido registrado de maneiras diferentes nos manuscritos disponíveis, ainda seria necessário decidir qual deles reproduz melhor o texto mais antigo. Veja como não é fácil o trabalho do tradutor.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 14 de julho de 2025

AS OVELHAS GORDAS DE EZEQUIEL


1. O capítulo 34 do Livro do Profeta Ezequiel faz uma dura crítica aos “pastores” ( = a liderança de Judá), acusados de abandonar as “ovelhas” ( = o povo), dispersadas “por toda a terra” (34,6). Distantes da sua terra natal, essas “ovelhas” são retratadas como “abandonadas, feridas e fraturadas”, carentes do cuidado divino. Diante de tal abandono, Yahweh declara no v. 11: “certamente eu mesmo cuidarei do meu rebanho e o procurarei”.

2. O texto se torna confuso no v. 16, ao incluir um segundo grupo de ovelhas na profecia. Elas não são descritas como “abandonadas, feridas ou fraturadas”, mas como fortes e saudáveis. Um detalhe que causa dúvida nos tradutores é o seguinte: Essas ovelhas são objeto de juízo ou de salvação? Elas estão sendo “guardadas” ou “destruídas” por Yahweh? Compare você mesmo a tradução do mesmo verso na Bíblia de Jerusalém e na NVI:

“(A) Quanto à GORDA e VIGOROSA, (B) GUARDÁ-LA-EI” (BJ).
“(A’) a REBELDE e FORTE, eu a (B’) DESTRUIREI” (NVI).

3. Há dois contrastes visíveis entre essas duas traduções. Na BJ a ovelha é “gorda”; na NVI é “rebelde. Na BJ ela será “guardada”; na VNI ela será “destruída”. Quanta diferença! Pessoalmente não tenho dúvidas de que a tradução de “shamen” (שמן) por “gorda” é a mais acertada. Ponto para a BJ. Mas não acho que essas ovelhas serão “guardadas” como sugere a BJ. A NVI está correta, elas serão “destruídas”. Qual a razão disso?

4. Inicialmente é preciso dizer que tradução grega registra “guardar” (φυλασσω) e a versão hebraica “destruir” (שמד), daí a diferença*. Os tradutores da BJ tomaram como certa a versão grega, conhecida como Septuaginta. Guarde isso. Prossigamos. Note o leitor que os vv. 17 a 22 falam a respeito do julgamento das ovelhas, que serão punidas juntamente com os pastores. Mas por que as ovelhas “gordas e vigorosas” seriam punidas?

5. Isso ainda não está muito claro para mim. Talvez indique um grupo de pessoas ricas que permaneceu na terra após a destruição de Jerusalém em 587 a.C. Assim, eles apareceriam em oposição às ovelhas “abandonadas, feridas e fraturadas” do exílio. Esta oposição também aparece registrada no Livro do Profeta Jeremias, que opõe os “figos bons” (judeus do exílio) aos figos “podres” (judeus que permaneceram na terra ou fugiram para o Egito).

* As palavras hebraicas "destruir" e "guardar" são parecidas no hebraico: shamar (שמר) = guardar; shamad (שמד) = destruir. Os tradutores da BJ supõem que a versão grega preservou o sentido correto do texto: "guardar".


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 10 de julho de 2025

SOBRE O MESSIAS SACERDOTAL

Pode ser uma imagem de 4 pessoas e texto

1. A palavra hebraica “messias” (משיח) ganha ao longo do Antigo Testamento sentidos diferentes, que variam de acordo com a situação história do momento. Inicialmente o “messias” ( = o ungido) era o rei. Quando a monarquia foi extinta após a conquista de Jerusalém por Nabucodonosor, em 587 a.C., o título pôde ser aplicado a um governante estrangeiro como Ciro, o persa, chamado de Messias em Is 45,1: “Assim diz Yahweh ao seu messias, a Ciro que tomei pela destra”. A religião sempre saberá atualizar e ressignificar suas crenças.

2. Assim que o povo de Judá retornou do exílio, o título voltou a ser aplicado a um indivíduo local: Zorobabel. E como Zorobabel era neto de Zeconias, penúltimo rei de Jerusalém, sobre ele foram depositadas as esperanças messiânicas. Acontece que o livro do profeta Zacarias menciona dois messias: Zorobabel, filho de Salatiel, e Josué, o sumo sacerdote (as “duas oliveiras”, cf. 4,14). Josué inclusive recebe uma coroa: “Pegue a prata e o ouro, faça uma coroa, e coloque-a na cabeça do sumo sacerdote Josué, filho de Jeozadaque” (Zc 6,11).

3. A imagem do messias-sacerdote foi se consolidando no período pós-exílico, uma vez que o papel dos sacerdotes como líderes da comunidade judaica foi se fortalecendo cada vez mais. Entre os judeus da comunidade de Qumran, por exemplo, a figura do sacerdote passou a ocupar um papel mais importante que o do descendente de Davi como encarnação do messias. Na Regra da Comunidade (1QS), documento também conhecido como Manual da Disciplina, o “messias sacerdotal” recebe prioridade sobre o “messias davídico”.

4. A Epístola aos Hebreus, no Novo Testamento, resgata esta tradição ao tratar Jesus como “sumo sacerdote”, como mediador imaculado “que atravessou os céus” (Hb 4,14). Todas as religiões – não importa onde, não importa quando – são afetadas pelo sopro inexorável da ressignificação.




Jones F. Mendonça

domingo, 6 de julho de 2025

URIAS NÃO "LAVOU OS PÉS", POR ISSO FOI MORTO


1. Assim que recebeu a notícia de que Bat-Sheba, mulher de um dos seus generais, havia engravidado, Davi pôs em curso um plano para ocultar sua perigosa aventura sexual. Ele mandou chamar Urias, o marido traído, e disse assim: “desce à tua casa e lava os teus pés” (2Sm 11,8). Mas o que Davi queria dizer com isso?

2. Considerando que “pé” em hebraico (רגל) tem sentido amplo, podendo servir para indicar a perna (Is 47,2) ou até mesmo o órgão sexual masculino (Is 7,20), fica a pergunta: “lavar os pés” seria um eufemismo para “ter relações sexuais”? Vamos com calma. A resposta é sim e não. E vou explicar por quê.

3. A expressão “lavar os pés” reaparece na Bíblia Hebraica muitas vezes, por isso é preciso analisá-la em diversos contextos. Ela ocorre nos livros de Gênesis, Juízes, Samuel e Cântico dos Cânticos, sempre indicando a ação de banhar-se como preparativo para o repouso (cf. Gn 18,4; 19,2; 24,32; Jz 19,21; 1Sm 25,41; Ct 5,3).

4. Assim, ao dizer a Urias: “desce à tua casa e lava os teus pés”, Davi sugeriu o seguinte: “Urias, vai pra casa, toma um banho e tenha um merecido descanso da guerra”. Urias entendeu que esse banho seria acompanhado de outras atividades prazerosas, por isso diz: “irei eu à minha casa para COMER e BEBER e DEITAR-ME com minha mulher?” (11,11).

5. Urias parecia ser bom general, mas era bobinho que só. Ao recusar o pedido de Davi, o general morreu sem banho, sem banquete, sem boa noite de sono e sem a mulher. Repare que neste bela tela, produzida por James Tissot, o rei é retratado aflito ao ver a jovem Bat-Sheba banhando-se como veio ao mundo.


Jones F. Mendonça

sábado, 28 de junho de 2025

AGOSTINHO E O DISPENSACIONALISMO


1. Por séculos prevaleceu entre os cristãos a percepção de que os judeus eram perseguidos porque carregavam uma espécie de culpa por terem assassinado Jesus Cristo. Essa culpa explicaria as perseguições na Europa Medieval, no período da Reforma, na Alemanha nazista, etc. Mas, no século XVIII nasceu o “restauracionismo”, a crença no cumprimento literal das profecias do Antigo Testamento, que incluía o retorno dos judeus à Eretz Israel, à Terra Prometida. Aqui estão as raízes do sionismo cristão.

2. No século XIX essa crença ganhou um modelo sofisticado, conhecido como dispensacionalismo. Para os dispensacionalistas, a história da humanidade, desde Adão, deve ser dividida em sete estágios ou eras, sendo a primeira a “era da inocência” (Adão e Eva) e a última a “era do milênio” (o reinado de Cristo na terra). O mundo atual estaria vivenciando a sexta era, o “tempo da graça”, com início na morte e ressureição de Cristo. A batalha escatológica entre Israel e seus inimigos já estaria acontecendo (O Irã seria "Magog").

3. Mas de onde teria vindo essa ideia de dividir a história do mundo em sete eras? Bem, nesta semana comecei a ler o "Comentário ao Gênesis", escrito por Agostinho de Hipona, famoso teólogo cristão do século IV/V. Para minha surpresa Agostinho já associava os sete dias da criação a “sete idades do mundo”, também começando com Adão e Eva e terminando com o retorno triunfal de Cristo nos céus. Fico pensando se os dispensacionalistas não se inspiraram nas interpretações alegóricas de Agostinho.

4. Você encontra a exposição agostiniana a respeito das sete eras do mundo em “Sobre o Gênesis, Contra os maniqueus”, Livro I, cap XXIII.



Jones F. Mendonça

RELIGIÃO E RESSIGNIFICAÇÃO


1. Encravado entre o Vale de Cedron e o Vale de Josafá, em Jerusalém, ergue-se um monumento de pedra em telhado cônico conhecido ora como Túmulo de Absalão (pelos judeus), ora como Túmulo de Zacarias (pelos cristãos). Construído no primeiro século, o local tem sido um dos centros de peregrinação mais populares de Jerusalém desde o período romano tardio. Mas, afinal, a construção foi edificada por quem e com qual finalidade? Quer saber a verdade? Ninguém sabe ao certo.

2. Os judeus identificaram o local como sendo o túmulo de Absalão levando em conta o que diz 2Sm 18,18: “Absalão tinha resolvido erigir para si a estela que está no vale do Rei, porquanto dizia: não tenho filhos que conservem a memória de meu nome...”. O atual monumento seria uma ampliação construída ao redor dessa estela. Duas fontes diferentes, o Pergaminho de Cobre e o testemunho de Josefo, mencionam a existência do monumento em Jerusalém. Mas ambos estão apenas reproduzindo uma antiga tradição.

3. Desde o início do segundo século, após a expulsão dos judeus de Jerusalém, a região passou ser controlada pelos cristãos, que logo trataram de “cristianizar” a construção de pedra, identificada como sendo o túmulo de Zacarias, pai de João Batista. Uma inscrição, datada para o século IV, registra o seguinte: “Túmulo de Zacarias, piedoso mártir e pai de João”. A inscrição foi apagada e apedrejada por judeus durante séculos, que se sentiam afrontados com a mudança. Mas os sinais da inscrição foram preservados em ranhuras e mais tarde decifrados.

4. O fenômeno da ressignificação é um elemento muito presente nas religiões. A páscoa judaica, por exemplo, aparece relacionada à saída do Egito; para os cristãos passou a significar a ressurreição de Cristo. O Pentecostes era originalmente uma festa que celebrava a colheita; para os cristãos foi ressignificada e relacionada à inauguração do derramamento do espírito. Mesmo entre os judeus, as festas, os rituais, os locais sagrados e os códigos legais foram afetados pelo fenômeno da ressignificação.

5. De modo geral fingimos que nossa religião é imutável, que atravessa os séculos sem ser afetada pelas mudanças, pelas inovações, pelos novos costumes, pelo sincretismo. Mas não existe religião que não seja sincrética em algum nível, afinal, a religião é um produto da cultura. O grande desafio para o homem e para a mulher de fé consiste em articular suas crenças e suas tradições na eterna e contínua tensão entre o velho e o novo, entre o desejo de conservar e o desejo de mudar.




Jones F. Mendonça

sábado, 21 de junho de 2025

OS CABELOS PRETOS SÃO NÉVOA


1. Em Eclesiastes 11,10 lemos o seguinte conselho: “Afasta do teu coração o desgosto, e remove o sofrimento da tua carne, pois juventude e negritude são VAIDADE”. A “negritude” da qual o texto fala é certamente uma referência aos cabelos, por isso a Bíblia de Jerusalém optou por inserir a palavra “cabelo” no texto: “juventude e CABELOS negros são vaidade”. Mas por que cargas d’água os “cabelos negros e a juventude” seriam “vaidade”?

2. Do jeito que ficou traduzido, o texto parece sugerir que os cabelos negros funcionam como uma espécie de troféu da juventude, como símbolo do apego exagerado à própria imagem. Mas não se trata disso. O que ele está dizendo é: “afasta do teu coração o desgosto, o sofrimento, porque os cabelos negros, ou seja, tua juventude, é como a 'havel'” (הבל), como névoa. Os cabelos negros são temporários, sendo mais tarde substituídos pelos cabelos brancos, pela velhice.

3. Sendo mais claro: aproveita a vida, porque a juventude é breve como a névoa.


Jones F. Mendonça

JEREMIAS E A COMUNIDADE DA GOLAH

1. Tem sido uma prática comum, desde o início do século XX, dividir o Livro do Profeta Jeremias em quatro partes. A primeira parte, caps 1-25, consiste em uma coleção de oráculos poéticos cuja finalidade principal é expor com imagens aterradoras o juízo que será derramado sobre Judá e Jerusalém, sua capital. Repare que em 1,10 a “palavra de Yahweh dirigida a Jeremias” anuncia “destruição”, mas também “reconstrução”. Para bom entendedor: “destruição” para o povo de Judá; “reconstrução” para aqueles que foram levados para o exílio.

2. O tratamento diferenciado para o “povo da terra” e o “povo da golah” é reafirmado no finalzinho da primeira seção do livro (cap. 24), por meio da “parábola dos figos”. Os “figos bons”, representam a comunidade judaica da golah, do exílio, que será tratada “com bondade” e “retornará à terra” (24,5-6). Os figos ruins representam os judeus que permaneceram na terra ou fugiram para o Egito (24,8). Seu destino: “uma maldição em todos os lugares” (cf. 24,9), incluindo golpes com “a espada e a peste” até que “desapareçam do solo” (24,10).

3. A mensagem anunciada no começo e no final do livro do profeta Jeremias revela o projeto elaborado pela comunidade exílica do período persa: apresentar a comunidade da golah como única proprietária legítima da terra. Única com as credenciais para reconstruir Jerusalém e seu templo. A figura de Jeremias atua, portanto, como voz dos exilados, fornecendo, como nos diz Nathan Mastnjak, “um locus de autoridade cooptado pelos redatores persas para suas próprias inovações e agendas” [1].

[1] MASTNJAK, Nathan. Before the Scrolls: a material approach to Israel’s prophetic library. Oxford: Oxford University Press, p. 160.


Jones F. Mendonça

AGOSTINHO E A MULHER ÚTERO-SERVIL


1. Em seu Comentário ao Gênesis, Agostinho de Hipona oferece respostas a muitas perguntas que provavelmente inquietavam os teólogos de seu tempo. Por exemplo: “por que Adão nomeou aves e animais terrestres, mas não nomeou os peixes?” (Livro IX, capítulo XI). Como se vê, trata-se de uma pergunta ex-tre-ma-men-te, relevante. Bem, Agostinho foi fruto do seu tempo. Coisa da época. Deixemos o teólogo africano em paz. Mas o que preocupava Agostinho de verdade era o papel da mulher na criação. Por que Deus não optou por criar outro homem? Não teria sido (segundo ele, não eu) muito mais útil, muito mais sensato e racional? Não. Ele explica.

2. Agostinho apresenta duas boas razões para Deus ter criado uma mulher, e não um homem, para lhe fazer companhia. Vamos lá. Resposta número 1: a mulher foi criada para gerar filhos, ou, como ele diz, “para ajudá-lo a semear o gênero humano”. Para ajudar o primeiro homem a cultivar o jardim o melhor teria sido um homem, mas para “espalhar sementes”, uma mulher seria mais apropriada. Resposta número 2: Caso Deus tivesse criado outro homem, em igual nível de autoridade, estaria promovendo a discórdia. Era preciso criar uma mulher, submissa ao homem, de forma que pudesse cumprir suas ordens com obediência exemplar.

3. A mulher, para Agostinho, é um "útero-servil".



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 13 de junho de 2025

O CRISTIANISMO NA CHINA COM FELIPE DURANTE


1. Um dos meus passatempos diários, enquanto sigo na van para o trabalho, é assistir vídeos e ler textos sobre a China. Procuro diversificar as fontes para evitar tomar como certas informações tendenciosas, generalizantes, distorcidas e enviesadas sobre o país. É preciso fugir de conteúdos nitidamente ideológicos, estejam eles alinhados à direita ou à esquerda. Além dos livros, um bom caminho é ouvir a opinião de brasileiros que trabalharam no país, como Sérgio Habib, empresário que morou muitos anos na China e atualmente é representante da JAC Motors no Brasil. Habib não demoniza nem idealiza a China, e esta é uma boa notícia.

2. Mas dá para confiar em tudo o que ele diz? Bem, é claro que não. Por isso é importante ouvir outros depoimentos. Nesta semana conheci o canal do Felipe Durante, engenheiro brasileiro que mora na China há cinco anos. Ele também já morou em Hong Kong e vez por outra conta algumas de suas aventuras na ilha. Voltemos à China continental. Felipe caminha pelo país com uma câmera, mostrando shoppings, hospitais, bairros pobres ou ricos e templos religiosos. Em um dos vídeos, ele entra em uma igreja cristã repleta de turistas que disponibiliza em seus bancos uma série de Bíblias escritas em mandarim. Ué, mas a Bíblia não é proibida na China?

3. Vamos com calma. Tanto na China como no Irã as religiões são controladas pelo Estado. No caso do Irã, por exemplo, há inúmeras igrejas cristãs em funcionamento, mas apenas aquelas cuja corrente foi devidamente registrada e autorizada, tais como a Igreja Católica Romana, Católica Armênia e até a Igreja Evangélica Presbiteriana, maior denominação protestante em funcionamento no país. Na China o registro das religiões organizadas também é obrigatório. Tanto as igrejas de orientação católica como protestantes são controladas por órgãos estatais: Catolicismo: Igreja Católica Patriótica Chinesa (CPC); Protestantismo: Movimento Patriótico das Três Autonomias (TSPM).

4. A CPC foi fundada em 1957, é formada por indivíduos que sequer são católicos e não reconhece a autoridade do Papa. Assim, bispos e padres são nomeados pela CPC, colocando os sacerdotes que não se submetem ao órgão estatal na clandestinidade. O Vaticano e o governo chinês vêm tentando chegar a um acordo, mas as negociações ainda estão em andamento. No âmbito protestante as preocupações aparecem relacionadas ao receio de que as igrejas de matriz protestante utilizem seus espaços religiosos para propagar ideologias contrárias às do Partido Comunista Chinês (PCC). O PCC sempre esteve ciente das fortes relações políticas, econômicas e ideológicas entre os missionários estrangeiros e os EUA e as potências da Europa.

5. Um site da internet bastante confiável sobre o protestantismo na China é o Chinasource.org. Embora seja um canal mantido por cristãos para a difusão do protestantismo na China, os artigos disponibilizados no site expressam equilíbrio e estão livres de clichês e lugares comuns.


Jones F. Mendonça

SHIBOLET, GALAAD E OS GALILEUS


1. De acordo com uma história contada no livro bíblico de Juízes, indivíduos da tribo de Efraim (Oeste) se distinguiam dos israelitas que viviam em Galaad (Leste) pelo sotaque, uma vez que não conseguiam diferenciar o som da consoante “shim” (שׂ) – som de “SH” – da consoante “samekh” (ס) – som de “SS”. Assim, para saber se uma pessoa era benjamita bastava pedir para que pronunciasse uma palavra como “shibolet” (שׂבלת). Se ela dissesse “sibolet” (סבלת) sua identidade era imediatamente revelada. Usando este artifício, o gaaladita Jafté teria descoberto e matado 42 mil homens de Efraim (Jz 12,1-7).

2. O Novo Testamento registra diferenças de sotaque entre nortistas, como Pedro, e sulistas, como os sacerdotes de Jerusalém. Os evangelhos nos informam que Pedro foi denunciado por seu sotaque ao tentar negar que conhecia Jesus, o “Nazareu”: “De fato, também tu és um deles; pois o teu dialeto te denuncia” (Mt 26,73; Mc 14,70; Lc 22,59). Mas será que a diferença também tinha a ver com a pronúncia do “SH”? Não neste caso. Sabemos, graças a uma antiga anedota, que os galileus não conseguiam articular muito bem as chamadas “consoantes guturais” no dialeto aramaico falado na Palestina do I século.

3. Essa falta de habilidade impedia que os galileus conseguissem distinguir entre “hamâr” (burro), “hamar” (vinho), “‘amah” (lã) e “immar” (cordeiro), por isso se tornaram alvo de chacota entre os comerciantes de Jerusalém: "Ô galileu, tolo, o que tu precisas é de uma coisa para montar (hamâr, um burro), de algo para beber (hamar, vinho), algo para fazer uma roupa ('amar, lã), ou algo para um sacrifício no Templo (immar, cordeiro)?”. Esta curiosa zombaria aparece registrada na Mishah (bEribin, 53b) e é comentada por Geza Vermes em “As várias faces de Jesus” (Record, 2006, p. 326).

*“Shibolet” significa “espiga”, como em Jó 24,24: “como a cabeça da ESPIGA são cortados”, referindo-se aos “ímpios”.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 10 de junho de 2025

OS LEGENDÁRIOS E A ROTA DO CAÇADOR

1. Nas últimas décadas, diversos movimentos cristãos, como o G12, Impacto radical e Veredas Antigas, prometeram experiências transformadoras lançando mão de reuniões ou eventos voltados para o crescimento espiritual ou fortalecimento das famílias. Com os Legionários não é diferente. O objetivo central do movimento, de acordo com seu fundador, Chepe Putzu, é fazer com que os homens assumam seu papel como “sacerdotes do lar” e “retornem à sua configuração original”, espalhando pelo mundo um modelo de homem baseado na “masculinidade de Jesus”.

2. Para buscar essa “masculinidade perdida” são organizadas caminhadas, acampamentos e desafios físicos e psicológicos em regiões montanhosas, conduzidas de um modo muito parecido com os acampamentos militares: escaladas, pernoite em barracas, gritos de guerra, ritos de passagem, uso de insígnias, uniformes, etc. Caso você queira saber um pouco mais sobre os Legendários, o melhor caminho é ir na raiz, buscando informações a respeito de como o movimento nasceu e qual o seu projeto original.

3. Um bom começo é ler “A rota do caçador”, escrito por Chepe Putzu, guatemaleco conhecido como “Legendário número 3” (Jesus seria o Legendário n° 1). Você também pode conhecer algumas ideias do fundador assistindo entrevistas disponíveis no YouTube, de forma que possa tirar suas próprias conclusões. Muitas das críticas feitas aos Legendários são falsas ou distorcidas, focadas em boatos que raramente podem ser verificados. É nas ideias de Chepe Putzu que eu encontrei os maiores problemas.



Jones F. Mendonça

LUCAS E O POBRE

1. Logo na abertura do Evangelho de Lucas o leitor é informado a respeito do nome do destinatário do texto: “excelentíssimo Teófilo” (1,3). A palavra grega traduzida por “excelentíssimo” é o superlativo de “κρατος” (kratos), que significa “poderoso”. Assim, esse tal Teófilo, seja quem for, é alguém “poderosíssimo”, ou, como dizemos hoje, “excelentíssimo” ou “ilustre”. Em suma: uma pessoa importante. Só recebem este tratamento no Novo Testamento o governador Félix e seu sucessor, Festo (At 23,26; 24,3; 26,25).

2. “Lucas” escreve para Teófilo, o “excelentíssimo”, com objetivos claros: “narrar os fatos que se cumpriram entre nós [os seguidores do Crucificado], desde o princípio”, “de modo ordenado”, “após acurada investigação” (Lc 1,1-3). O autor do texto acrescenta que a composição do relato foi feita com a ajuda de “testemunhas oculares e ministros da palavra”. Assim, este autor – que não sabemos sequer se é Lucas, “o médico” de Col 4,14 – indica que pretende contar a Teófilo a história de Jesus, tal como havia recebido de outras pessoas.

3. Em “Lucas” Jesus é o defensor dos humildes, dos famintos, constantemente oprimidos pelos “homens de coração orgulhoso”, pelos “ricos” (Lc 1,51-53). Em "Lucas" Jesus veio “evangelizar os pobres” e “libertar os oprimidos” (4,18). Em “Lucas” são “bem-aventurados os pobres” e malditos os “ricos” (6,20.24). Em “Lucas” o pobre “coberto de úlceras”, que se alimenta da mesa do rico, é conduzido ao “seio de Abraão” e o rico às chamas (16,19-26). Lucas apresenta um reino de ponta a cabeça. Segue uma tradição antiga, expressa na oração de Ana:

“Os que viviam na fartura se empregam por comida,
e os que tinham fome não precisam trabalhar.
A mulher estéril dá à luz sete vezes,
e a mãe de muitos filhos se exaure”

"É Iahweh quem empobrece e enriquece,
quem humilha e quem exalta"

"Levanta do pó o fraco
e do monturo o indigente" ( 1Sm 2,5.7.8 ).



Jones F. Mendonça

JESUS COMO "MACHO ALFA"


1. Uma das propostas centrais dos “Legendários”, movimento cristão fundado por Chepe Putzu em 2015, é a seguinte: o homem precisa retornar à sua configuração original, e essa “configuração original” diz respeito ao modelo de masculinidade exercida por Jesus. Bem, já pintaram Jesus de diversas maneiras, inclusive há um “Jesus saradão”, como o “Cristo Ressuscitado”, esculpido por Michelangelo em 1516, e o Jesus marombado exposto em “Gólgota”, obra produzida por Pordenone em 1521. Mas Jesus como “Macho Alfa”... essa é nova.

2. É interessante que todos esses grupos interessados em apresentar Jesus como modelo de macho gostam de enfatizar que a masculinidade ideal é aquela que expressa atributos que valorizam uma dimensão provedora/protetora do macho, que, inclusive, seria natural, inata. Assim, o homem ideal seria aquele que protege sua fêmea e sua prole, que provê recursos para sua subsistência, etc. Acontece que o Jesus dos evangelhos não tinha moradia fixa, não tinha mulher, nem filhos. Até sua atividade profissional era precária: era um tekton, um artífice.

3. Faz parte da natureza humana criar modelos capazes de estruturar a vida, funcionando como norte, como horizonte de orientação. Assim, criamos modelos de sociedade, de estrutura familiar, de códigos morais e até mesmo modelos de comportamento que esperamos ser reproduzidos por nossos filhos e filhas. Mas esses modelos não caem do céu. São o resultado da interação entre humanos e meio ambiente, que se desenvolve a partir de uma relação dialética, de troca. Tanto a “Machonaria” como os “Legendários” descambam em essencialismo biológico barato.

4. Pior do que isso. Buscam legitimar esse essencialismo biológico usando textos ou personagens da Bíblia.




Jones F. Mendonça

sexta-feira, 6 de junho de 2025

COMO SATANÁS VIROU "LUCIFER" EM 5 PONTOS CURTOS

1. A palavra latina “lucifer” nada tem a ver com “diabo”, “satanás” ou “capiroto”. Ela significa simplesmente “ASTRO BRILHANTE”, como em Jó 11,17 na versão latina: “tua vida ressurgirá como o meio dia, a escuridão será como LUCIFER”, ou seja, como um “astro brilhante”, provável referência a Vênus, planeta que brilha no céu como uma estrela, e que se destaca por sua luz fulgurante no céu da manhã, daí o título “estrela da amanhã”. Vênus é o terceiro astro mais brilhante no céu, atrás da lua e do sol.

2. Na versão latina da Bíblia o termo “lúcifer” reaparece em Is 14,12: “como caíste do céu, ‘lucifer’, filho da manhã, como foste atirado à terra, vencedor das nações”. Neste texto, o rei da Babilônia (cf. 14,1) é comparado a um ASTRO BRILHANTE, que devido à sua arrogância “foi precipitado no Sheol”, o mundo dos mortos (cf. 14,9-11). O texto fala da queda de um rei, não de um anjo ou ser divino. Outro soberano “lançado por terra” é o rei de Edom (cf. Ob 1,2-4).

3. A palavra “lúcifer” reaparece uma última vez em 2 Pe 1,19: “...lucifer oriatur in cordibus vestris”, ou seja, “que o ASTRO BRILHANTE resplandeça em vossos corações”. Veja que “lúcifer”, ou melhor, o “astro brilhante”, neste caso, é uma referência a Jesus, associado à luz, ao brilho, ao resplendor. Deus também é associado à luz em Jo 1,5 (“Deus é luz...”) e em Tg 1,17 (“Pai das luzes”).

4. Mas de onde veio a ideia de que “Lúcifer”, com letra maiúscula, é o nome do “capiroto”, do “zarapelho”? Essa é fácil. Quando o Antigo Testamento foi traduzido para o latim, Jerônimo, o tradutor, escolheu “lucifer” como palavra correspondente a “astro brilhante” em Is 14,12. E como ele interpretou esse “astro brilhante” como sendo Satanás, a coisa pegou.

5. E foi assim que “Satanás” ganhou nome próprio: “Lucifer”. Um nome dado pelos homens, não pelos deuses.



Jones F. Mendonça

A FÉ COM LÓGICA É MORTA

1. Por alguma razão o algoritmo do YouTube entende que eu aprecio debates entre judeus e cristãos sobre a figura de Jesus, em particular sobre sua messianidade. Os debatedores que mais pipocam na minha tela são Tassos Lycurgo (apologeta cristão) e o rabino Micha (judeu), ambos apegados à interpretação fundamentalista de suas respectivas Escrituras.

2. De um lado Tassos tenta demonstrar que Jesus é o messias tal como profetizado nas “Antigas Escrituras”. Do outro lado Micha se esforça para comprovar que esta declaração é falsa e não encontra apoio nos textos sagrados. O nível do debate é baixíssimo, com ataques pessoais, leituras equivocadas e tentativas de desqualificar o oponente. Que canseira...

3. Não seria mais honesto e maduro o adepto da fé cristã dizer: “creio que Jesus é o messias e que ressuscitou dos mortos e não preciso provar nada pra ninguém!”? E não seria igualmente honesto e maduro o rabino declarar: “a Torah é a luz do mundo, creio que o messias ainda está por vir e ninguém tem nada a ver com minhas crenças!”?

4. O número de visualizações que esse tipo de debate alcança chega a passar de meio milhão. Sim, é surpreendente (e trágico!). Crenças não se provam, não se justificam racionalmente e nem mesmo exegeticamente. Crenças são o resultado de experiências (individuais ou coletivas), cristalizadas posteriormente em fórmulas de fé, em dogmas.

5. O cristão crê de um jeito, o judeu de outro, o espírita, o hindu, o budista, o muçulmano, o umbandista, o bahaísta e o zoroastrista de outro e de outro modo. É saudável que todos dialoguem em nome de um bem comum. Mas o sujeito de fé que tenta provar que tal religião é a mais verdadeira ou mais falsa faz papel de padego, boboca, obtuso, pacóvio, sandeu.



Jones F. Mendonça

QUEM ESCREVEU A BÍBLIA?

1. Uma tradição muito antiga atribuiu a determinados personagens bíblicos a autoria de livros ou blocos de livros. Assim, Moisés seria o autor do Pentateuco, Josué o autor do livro que leva seu nome, Jeremias o autor do livro do Reis, etc. A grande verdade, no entanto, é que essas atribuições de autoria são meramente especulativas. Ao que tudo indica, os livros foram escritos por "autores" e não por um autor apenas.

2. Muitos dos códigos legais presentes no Pentateuco, por exemplo, aparecem registrados de forma repetida, porém modificada, sugerindo que um código mais antigo foi relido e atualizado, de forma que pudesse dar respostas a novos problemas e desafios, não contemplados no código mais antigo. Isso acontece, por exemplo, em relação às leis relacionadas aos escravos, aos empréstimos a juros e ao amor ao inimigo.

3. Em relação ao livro de Josué, uma série de fórmulas estereotipadas, tendências teológicas e de estilo, sugerem que o livro foi escrito por indivíduos de alguma maneira vinculados ao Deuteronômio. Na verdade não apenas o livro de Josué possui afinidades com o Deuteronômio. São igualmente classificados como "deuteronomistas" os livros de Juízes, Samuel e Reis. Reflexos da "teologia deuteronomista" também podem ser encontrados em profetas como Jeremias.

4. Desde o início do século XX o livro do profeta Jeremias vem sendo dividido em quatro partes, relacionadas a autores diferentes. Textos poéticos, predominantes nos capítulo 1-25, seriam os mais antigos. Textos em prosa, de natureza "biográfica", seriam mais recentes. Um terceiro grupo de textos teriam sido redigidos por "deuternomistas"; e um último, de natureza mista, revela grande preocupação em apresentar um futuro glorioso para Jerusalém e Judá e punição aos seus inimigos.

5. Uma matéria publicada há alguns dias no Haaretz (Israel), apresenta novas ferramentas de análise do texto que parecem promissoras para nos ajudar a datar os textos. Boa leitura! 



Jones F. Mendonça

terça-feira, 3 de junho de 2025

ELISEU, GEASI E A "UNÇÃO DE PROFETA"

1. Nos capítulos 4-8 do Segundo Livro dos Reis tomamos contato com as aventuras de Eliseu e seu servo, Geasi. O capítulo 5 registra uma história conhecida como “A cura de Naamã”, cujo desfecho é ao mesmo tempo cômico e dramático. Sentindo-se grato a Eliseu pela cura de uma doença, o general Naamã oferece ao profeta uma generosa recompensa, que é imediatamente rejeitada. Geasi, servo de Eliseu, pensou com seus botões: “Vou pedir essa recompensa em nome de meu senhor; ele nem vai desconfiar”. Mas o texto diz que “o coração de Eliseu andou com Geasi” até Naamã (5,26), ou seja, Eliseu percebeu a malandragem do moço.

2. Para surpresa de Geasi (e do leitor), Eliseu dá a seu servo uma resposta inesperada: “agora que recebeste a prata, pode comprar com ela vestes, olivais, vinhas, bois, servos e servas” (5,26). Eita! Então o golpe é válido? Não, não. Acontece que no verso seguinte Geasi recebe de seu mestre uma terrível notícia: “a doença de Naamã se apegará a ti e à tua posteridade para sempre” (5,27). E, de fato, é o que acontece: a doença de Naamã é transferida para Geasi. A história tem finalidade moralizante: 1) Um profeta não deve operar milagres em benefício próprio; 2) Jamais desrespeite um profeta (como a história das ursas, no cap 2).

3. De modo geral, todas as histórias envolvendo algum tipo de punição dirigida àqueles que se levantam contra um profeta têm a mesma finalidade: expor aos ouvintes dessas narrativas – indivíduos de um passado remoto – que determinado comportamento é considerado inaceitável. Note que na trajetória do êxodo Moisés tem sua capacidade de liderança desafiada diversas vezes. E todos aqueles que o desafiam ou morrem ou são punidos severamente. A leitura de histórias como esta no ambiente eclesiástico contemporâneo esbarra em diversos desafios, uma vez que a mensagem que o texto pretende comunicar é exatamente esta: não se meta com o "ungido" de Yahweh. 

4. Não faltam líderes vendo a si mesmos como "Moisés", "Eliseu" ou "Davi", cuja autoridade, alegadamente dada diretamente por Deus, jamais poderá ser questionada.  




Jones F. Mendonça

OS "MACHONÁRIOS" E JÔNATAS "DE GATINHAS"

1. O líder dos Machonários abriu sua Bíblia no capítulo 14 do Segundo Livro de Samuel, versão Almeida Revista e Atualizada. O texto, se você não sabe, narra a batalha entre Jônatas, filho de Saul, e os filisteus, que desafiavam com ofensas Jônatas e seu escudeiro. Os Machonários que acompanhavam a leitura ficaram empolgados: “vamos lá, Jônatas, acaba com esses maricas!”. O líder da reunião fez uma pausa, respirou fundo e reproduziu as palavras dos filisteus dirigidas a Jônatas e a seu companheiro: “subi a nós, e nós vos daremos uma lição”.

2. A galera que lotava o galpão foi ao delírio: “parte pra cima, Jônatas, mostre a esses incircuncisos o poder de tua testosterona”. Os brados eram tão altos que faziam tremer as telhas da cobertura de zinco do galpão. Logo depois veio o silêncio. Era grande a expectativa. Qual seria a atitude tomada pelo grande guerreiro machonário? Golpes de faca? Luta corporal? Disparo de flechas certeiras? Movimentos com espada? Leia você mesmo: “Então trepou Jônatas DE GATINHAS, e o seu escudeiro atrás dele” (2Sm 14,13). A decepção foi geral.

3. Um líder famosinho, arqueólogo do YouTube com voz de locutor de rádio que fazia parte da liderança tentou intervir, assumindo o microfone: “pera lá, no hebraico não diz isso não...”. E começou a ler em hebraico: “vayoal yonatan al-yadayv veal-raglayv”. Mas as palavras do arqueólogo do YouTube soavam como “ta-ta-ti, tateté, valoya, me-meme”. Não eram palavras brutas o suficiente. Diziam que parecia um Bebê Reborn falando. O clima ficou tenso e a confusão só aumentava.

4. A reunião acabou e os machonários voltaram pra casa sem conseguir resgatar a tão sonhada macheza perdida.



Jones F. Mendonça