quarta-feira, 30 de agosto de 2017

FUNDAMENTALISMOS

Mais perigoso é o fundamentalista inseguro, ressentido. Para mascarar suas dúvidas, seus medos, suas frustrações, ele agride, tenta de todos os modos impor ao outro suas crenças. Um moribundo com uma bomba guardada na alma.



Jones F. Mendonça

PEQUENO CONTO SUBLIMINAR

Chegaram da palestra com aquele papo de mensagem subliminar. Torci logo o nariz. Isso foi em 94 ou 95. Mas tinha em casa tudo o que precisava: uma velha vitrola e dois LPs que diziam ser “dos infernos”. Inverti os fios do motor da vitrola para que rodasse ao contrário, pus o LP no prato e a chiadeira logo começou. Pensei: caíram na conversa mole desses fundamentalistas paranoicos.

Mas eis que num trecho deu pra ouvir: “corre, corre, quero fumar!”. O silêncio foi geral. Eu, cético como sempre, não me dei por vencido e pedi pra colocar outra música, afinal tudo fora muito rápido. Mais chiadeira. Mas então deu pra perceber que havia entrado o refrão e todos ouvimos claramente: “a [...] nas trevas vive, acho que a virgem quer mudar de nome!”. Houve um silêncio apocalíptico. Todos com um olhão desse tamanho!

Bem, eu não sei quem colocou a frase nos trilhos do LP e nem a razão. Se foi por pacto, se foi por brincadeira, se foi por marketing. Mas que foi uma noite muito da mal dormida, ah, foi!


Jones F. Mendonça

RESSENTIMENTO E VIOLÊNCIA

O problema do fundamentalismo islâmico não é exatamente o Corão. Cristãos e judeus também souberam (e sabem) justificar a violência a partir de suas escrituras sagradas. Um lê: “ama o teu próximo”; o outro lê: “não vim trazer a paz, mas a espada”. Um é Luther King; o outro é Inquisição. E não importa aqui como devem ser lidos, mas como leem.

É preciso buscar na história as raízes do radicalismo islâmico que choca o mundo. Em três etapas: 1) O Império Turco Otomano sucumbe após a Primeira Grande Guerra; 2) O “Mundo muçulmano” desmorona e é explorado pelas grandes potências Ocidentais; 3) Indivíduos ressentidos, incapazes de reagir com dignidade, com inteligência, com decência, usam a religião como fundamento para sua guerra santa.

Enfim, no fundo o problema do fundamentalismo violento é o mesmo: o ressentimento. O verme que corrói a alma de membros da Ku Klux Klan é o mesmo que mastiga as vísceras de um membro do ISIS. São fracos fingindo que são fortes. Covardes sob o manto da valentia.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 22 de agosto de 2017

SEIS OU NOVE

Tonta diz que é um seis. Louca grita que é um nove. Bobinho insiste na tese de que a verdade tem muitas faces, que ambas têm razão. Vero examina a placa, olha o seu verso, percebe uma pequena alça numa das extremidades mais largas e dispara: considerando a intenção de quem o projetou, é um seis. Moral da história: fora do contexto as verdades são líquidas. No contexto as verdades são sólidas. O resto é conversa fiada.



Jones F. Mendonça

sábado, 19 de agosto de 2017

DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Ora, se as liberdades individuais fossem absolutas, elas se aniquilariam pelo conflito. A todos os direitos devem ser impostos limites. Embora a Primeira Emenda americana defenda a livre expressão, a Suprema Corte desse país não vê esse direito como absoluto e permite restrições ao discurso verbal ou falado em algumas poucas áreas (obscenidade, difamação, fraude, etc.).

Alguns querem impor limites ao que um professor diz em sala de aula. Outros pedem exclusividade no uso de seus símbolos religiosos. Outros querem que os comerciais de TV não anunciem um produto cuja qualidade não condiz com a real. Outros ainda não querem feministas mostrando os seios em passeatas.

Estranho mesmo é quando essas mesmas pessoas, ao mesmo tempo em que defendem tais limites (algumas vezes ridículos), levantam a voz em defesa da livre expressão de racistas e xenófobos. É a vida humana sendo colocada abaixo de preceitos morais secundários.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 15 de agosto de 2017

OS RABINOS, O FRANGO E O QUEIJO

Uma das mais conhecidas leis kosher (regra de alimentação judaica) proíbe o consumo de leite e carne numa mesma refeição. Tal restrição baseia-se em Dt 14,21 “Não cozerás um cabritinho no leite de sua mãe”.

Filon de Alexandria, judeu helenista do primeiro século, leu a restrição de forma literal e a compreendeu como tendo caráter ético: um animal jovem não deve ser cozido no leite de sua própria mãe porque tal atitude demostraria falta de misericórdia e decência (Virtudes 141-144). Bem, se isto é certo, por que a Torah não proíbe a ingestão de ovos e carne de galinha numa mesma refeição? A lógica não seria a mesma?

A tentativa de justificar racionalmente alguns preceitos da Torah ainda faz sucesso hoje, embora as explicações careçam de fundamento sólido. É o que fazem, por exemplo, com a carne de porco, cuja condenação, em Lv 11,7, seria explicada pelos (questionáveis) malefícios que a carne suína traz ao corpo. É preciso lembrar que além da carne de porco, também é proibida a ingestão da carne de lula, camarão, siri, cação, e outros animais aquáticos sem escama ou barbatana.

As escolas de Shammai e Hillel levantaram novas questões: será que é permitido ingerir derivados do leite com carne? Mais que isso: será que podem ser postos à mesa juntos durante a refeição? Em M. Hullim 8,1 o tema é discutido. A carne em questão é a de galinha:
A galinha pode subir à mesa com queijo, mas pode não ser comida. Estas são as palavras da casa de Shammai. Mas a Casa de Hillel diz: Não pode subir à mesa, nem ser comida...

Caso queira ler as discussões rabínicas a respeito a ingestão de leite e carne numa mesma refeição, leia este artigo publicado na The Torah.


Jones F. Mendonça

sábado, 12 de agosto de 2017

IBN EZRA E A AUTORIA MOSAICA DO PENTATEUCO

No século XII um judeu chamado Ibn Ezra fez uma série de comentários expondo sete textos do Pentateuco que se lidos com atenção indicam uma autoria não mosaica.  

Ibn Ezra expõe seus argumentos de maneira obscura (temia reações iradas dos mais conservadores), mas sua argumentação foi claramente explicada por outro judeu, R. Joseph ben Eliezer Bonfils, no final do século XIV.

Não conheço nenhum livro que transcreva os comentários de Ibz Ezra em sua integridade. Neste artigo, publicado no The Torah, é possível ler seu trabalho crítico em hebraico e inglês. Uma raridade. Leia aqui.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

JUDAÍSMOS

Estamos no Antigo Israel do século VIII a.C. O rei quer governar. O sacerdote quer sacrifício. O sábio quer dar conselho. Profetas como Isaías, Oseias e Amós querem protestar contra as injustiças, sobretudo criticando reis, sacerdotes e profetas e sábios da corte (veja Is 28,7; Jr 8,9; 18,18). Não é uma relação fácil.

Quando Judá cai nas mãos dos babilônios – em 586 a.C. - a figura do rei é suprimida. O sacerdote ganha poder. Os sábios rejeitam o exílio como punição pelo pecado e as respostas prontas para os enigmas da vida. Os profetas são perseguidos, calados.

Novas potências subjugam Judá: persas, macedônios, ptolomeus, selêucidas. É sob o governo desses últimos - no século II a.C. - que nascem as seitas judaicas: saduceus, fariseus, essênios. Tentativas de adaptar suas antigas tradições a um mundo em constante transformação. Textos sapienciais, como a Sirácida e a Sabedoria, nem de longe lembram as críticas ácidas de Jó e Eclesiastes. É também no século II a.C. que nasce a literatura apocalíptica.

Judá na época de Jesus é uma região complexa: o poder político é latino, a escrita e a cultura é grega, as Escrituras Sagradas escritas em hebraico, o idioma falado o aramaico. Mais que isso: há seitas judaicas divergindo entre si. Influência do helenismo. Expectativa messiânica forte. Falta de esperança após uma sucessão de impérios dominando Judá.

No ano 70 d.C. o templo é destruído pelos romanos. Extintas as figuras do rei, do profeta e do sábio (convertido em escriba?), também chega ao fim o ofício sacerdotal. Como sacrificar sem o altar? Como cultuar sem templo? Nasce a figura o rabino, herdeiro de uma atividade muito apreciada pelos fariseus: o estudo da lei. Na sinagoga o comentário da lei substitui o culto sacrificial.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

SAUL, SAMUEL, A SIRÁCIDA E BALBUCIADORA DE ENDOR

Em 1Sm 28 Saul consulta uma mulher, mestre balbuciadora (28,7), a fim de que lhe anuncie o futuro. Saul pede para que a mulher traga Samuel dos mortos e a mulher, surpresa(?), vê um elohim, com a aparência de velho, subindo da terra (vv. 13-14). Por fim Saul percebe que se trata de Samuel.

Difícil saber exatamente o que tem em mente o autor do texto. Javé teria feito Saul violar um de seus mandamentos a fim de lhe pregar uma peça? Seria um demônio, como pensavam alguns pais da igreja? Certo mesmo é que no segundo século a.C. a crença no retorno de Samuel do sheol para profetizar aos vivos era aceita. Pelo menos é o que testemunha a Sirácida: 
46,13 Samuel foi amado pelo seu Senhor;
46,20 Mesmo depois de morrer profetizou,
anunciou ao rei seu fim;
do seio da terra elevou a sua voz para profetizar,
para apagar a iniquidade do povo.

 Jones F. Mendonça

MAMON

Um romano, no século II, olha para o tamanho e o poder do império romano e diz: eis a prova de que nossa religião é superior. Um árabe, no século VIII, olha para o tamanho e poder do império islâmico e diz: eis a prova de que nossa religião é superior. Um norte americano, no início do século XXI, olha para as 800 bases militares americanas ao redor do mundo e a grana forte que circula em Wall Street e diz: eis a prova de que nossa religião é superior.

No fundo é apenas ambição, sede de poder e administração eficiente. A religião serve apenas como liga. Ainda interpretamos o mundo como os homens das cavernas...



Jones F. Mendonça

terça-feira, 8 de agosto de 2017

A RELIGIÃO, A FILOSOFIA, O DIREITO

Beatriz Bissio, em seu livro: “O mundo falava árabe” (Civilização brasileira, 2013, p. 2763, versão Kindle), expõe as razões que explicam a diferença – sob a perspectiva do direito - entre a Europa cristã e o império muçulmano, surgido no século VII:
O Império árabe-islâmico não tinha nenhum sistema legal coerente anterior [como o direito romano, adotado na Europa cristã], para valer-se dele e, além disso, para os muçulmanos [assim como para os judeus, que têm a sua halakhah] a submissão à vontade de Deus é o mandamento maior; é dele que emanam as leis [a sharia] que regulam a conduta dos fiéis e da sociedade.
No cristianismo a separação entre a religião e o direito foi facilitada pelo acolhimento das ferramentas herdadas do sistema legal do Império romano. Entre os romanos o ius (direito) era aquilo que a cidade permitia que se fizesse, sendo algo do domínio dos homens; o fas (religião) era o que a religião permitia, estando sob o domínio dos deuses. Assim, não se confundia o que era Direito com o que era religião.

Além do direito romano, a Europa cristã também acolheu a sabedoria greco-romana, que chegou a seu pleno florescimento no século XVI. No século XVIII, sob o impulso do iluminismo, pensadores franceses aprofundaram as principais ideias de Renascença, como a liberdade de expressão, a tolerância religiosa e o primado da razão. Sapera aude! (Ousa saber), como dizia Kant. Tais conquistas – é preciso enfatizar - não nascem da religião, mas da herança greco-romana.



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

JUDAÍSMO E REENCARNAÇÃO

Esta frase, dita por Ovadia Yossef, proeminente rabino sefardita de Israel, revela o quanto é diversificado o judaísmo moderno sob o ponto de vista doutrinário:
As seis milhões de vítimas do Holocausto foram reencarnações das almas dos pecadores, pessoas que transgrediram e fizeram todo tipo de coisas que não deveriam ser feitas. Eles foram reencarnados para expiar” (Sermão semanal de sábado à noite em agosto de 2000).
A declaração – claro - não foi bem recebida pela grande maioria dos judeus. Não por afirmar uma doutrina estranha ao judaísmo (foi acolhida na era medieval), mas por sugerir que as vítimas do holocausto sofreram por pecados cometidos em vidas anteriores.

A fonte da citação, aqui



Jones F. Mendonça