terça-feira, 28 de abril de 2020

O “PAVIO CURTO” NA BÍBLIA HEBRAICA

Dia desses, enquanto rastreava a ocorrência e a variação de sentido da palavra hebraica “qatzar” (um verbo que significa, em seu sentido primário “encurtar”), descobri por acaso que quando associada a “nefesh” (sentido primário = garganta, cf. Sl 69,1), significa “perder a paciência”. A dobradinha aparece em quatro textos: Nm 21,4; Jz 10,16; 16,16; Zc 11,8.

1. No caminho o povo perdeu a paciência.
2. Então Javé perdeu a paciência com a angústia de Israel.
3. [Sansão] perdeu a paciência para a morte (o que seria isso? A LXX parece mudar o sentido da expressão. Há conexões interessantes entre esta passagem e Mc 14,34).
4. Mas perdi a paciência com eles [Javé com três pastores].

Uma tradução literal seria algo como “encurtar a garganta”. Ocorre que o sentido de “nefesh” se amplia no texto bíblico. Como é pela garganta que entra o ar, o alimento e também é por ela que flui a voz, “nefesh” passou a significar “vida” (em minha opinião “alma” é um equívoco). Em Gn 2,7, por exemplo, o homem se torna, pelo hálito divino “garganta viva”.

Isso me faz pensar no real sentido da associação entre “qatzar” e “néfesh”. Afinal, por que “encurtar a garganta” indicaria impaciência? Seria uma referência ao fôlego: “fôlego encurtado” = impaciência? Seria uma indicação de desespero: “vida encurtada”, no sentido de que as energias estão se esgotando? Ainda não tenho uma resposta.



Jones F. Mendonça

sábado, 25 de abril de 2020

SÃO JORGE E O DRAGÃO


Muita gente já ouviu falar do Leviatã, criatura bíblica que aparece em diversos livros, como (41,1) e Salmos (74,14). De acordo com a tradição judaica (Talmud), Deus fez um Leviatã macho e um Leviatã fêmea no quinto dia da criação. Mas Ele teria percebido que se animais de tão grande porte se reproduzissem “teriam destruído todo o mundo”. O que fazer? Para evitar isso, Deus teria castrado o macho e matado a fêmea. Por fim, salgou sua carne – acreditem – para ser digerida no banquete dos justos no advento do Messias (BB 74a). Nesta ilustração São Jorge aparece – como na tradição judaica – fazendo um churrasco de Dragão. Deve ser durinha essa carne, viu!


Jones F. Mendonça

JESUS COMO NOVO ADÃO


Nesta tela, de Włodzimierz Kohut (2015), um Jesus no estilo bizantino aparece tipificado como jardineiro. Em sua mão esquerda ele tem um regador, que derrama água em pessoas que “brotam” da terra. Com a mão direita ele faz o sinal do pantocrator (bênção divina). A tradição de representar Jesus como jardineiro é longa na história da arte (inspirada em Jo 20,15).

Há paralelos interessantes entre a narrativa da ressurreição joanina e o relato da criação. Veja que em Jo 20,22 Jesus sopra sobre seus discípulos como Javé em Gn 2,7. 
“Javé elohim... soprou em suas narinas um hálito de vida” (Gn 2,7).“soprou sobre eles e lhes disse: “Recebei o Espírito Santo” (Jo 20,22).
Ao que parece Jesus é pintado no quarto evangelho como uma espécie de novo Adão, restaurador do Éden (como na interpretação tipológica paulina em 1Co 15,22.45). Em Jo 19,41 o sepulcro e o local do sepultamento são situados num jardim. É no jardim que Jesus morre, é no jardim que Jesus ressuscita. Jesus é o novo Adão no jardim restaurado.


Jones F. Mendonça


sexta-feira, 10 de abril de 2020

NOTAS SOBRE DEUTERONÔMIO 26

Dt 26,12-15 trata do dízimo trienal. O texto determina que o ofertante declare diante de Javé que não contaminou o dízimo a ser entregue ao levita, ao estrangeiro, ao órfão e à viúva.  O verso 14 explica em que situações esse dízimo poderia ser contaminado. São duas as situações: 1) comer parte desse dízimo durante o luto; 2) oferecer parte desse dízimo por um morto.  

Em relação ao ponto 1, Tigay [1] propõe duas possibilidades:
  • Um enlutado fica impuro por estar na mesma tenda que um cadáver por manuseá-lo durante o enterro ou pelo contato com outras pessoas que se tornaram impuras de uma dessas maneiras. Em tais condições qualquer alimento que ele tocasse se tornaria impuro.
  • Um enlutado fica impuro ao usar parte do dízimo em uma refeição fúnebre.
Ele explica que tais recomendações são uma reminiscência de uma prática encontrada nas “Instruções aos Oficiais do Templo” hititas. Em relação ao ponto 2:
  • Os antigos acreditavam que os vivos podem ajudar os espíritos dos mortos no Sheol, fornecendo-lhes comida e bebida. Essa prática foi difundida no mundo antigo e também é atestada entre alguns judeus nos períodos do Segundo Templo e depois, como em Tobias 4,17: “Derrame seu pão e vinho na tumba dos justos e não dê para os pecadores”. Em algumas sepulturas escavadas em Samaria, capital do Reino do Norte, foram encontrados buracos no chão, semelhantes aos encontrados nas tumbas de Ugarit, que serviam de receptáculo para alimentos e bebidas oferecidas aos mortos. A Torá não proíbe essa prática, mas, como o contato com os mortos é profanado ritualmente, proíbe o uso do dízimo por ela.
Um artigo publicado no The Bible and Interpretation (Afterlife and Resurrection Beliefs in the Second Temple Period), citando Joseph S. Park [2], afirma que essa noção é apoiada ainda pelas antigas inscrições das tumbas judaicas.

Notas:
[1] TIGAY, Jeffrey H. The JPS Torah Commentary: Deuteronomy. Fhiladelphia, Jerusalem: Jewish Publication Society of America, 2003, p. 242-244.

[2] Joseph S. Park, Conceptions of Afterlife in Jewish Inscriptions: With Special Reference to Pauline Literature, Wissenschaftliche Untersuchungen zum Neuen Testament (Tübingen: Mohr-Siebeck, 2000), 2:121.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 3 de abril de 2020

UM GALILEU NO MERCADO, UM PROFETA NO RESTAURANTE

Em “As várias faces de Jesus” (Record, 2006, p. 326), Geza Vermes reproduz um típico deboche dirigido ao sotaque do povo do norte de Israel. Ele narra um galileu tentando fazer compras num mercado em Jerusalém. Como tinha dificuldade com as guturais, consoantes pronunciadas na garganta, logo se torna alvo de chacotas:
Ô galileu, tolo, o que tu precisas é de uma coisa para montar (hamâr, um burro), de algo para beber (hamar, vinho), algo para cozer ('amar, lã), ou algo para um sacrifício no Templo (immar, cordeiro)?
O preconceito dirigido aos galileus também é revelado na fala de Natanael: “de Nazaré pode sair algo de bom?” (Jo 1,46). Quando ao sotaque dos nortistas, podemos percebê-lo na fala do sumo sacerdote dirigida a Pedro: “de fato, também tu és um deles; pois o teu dialeto te denuncia” (Mt 26,73; Mc 14,70; Lc 22,59).

Bem, se um galileu do primeiro século tinha dificuldade em se comunicar em aramaico com vendedores de um mercado em Jerusalém (por diferenças consonantais), imagina a dificuldade que Isaías não encontraria para se comunicar em hebraico com um garçom da Jerusalém moderna (diferenças consonantais, vocálicas e novas palavras no vocabulário). As barreiras seriam muito, mas muito, maiores.

Mas em texto publicado no site “prazer da palavra” (A importância do hebraico bíblico), Luiz Sayão diz que “Se Isaías ressuscitasse hoje teria condições de comunicar-se e de pedir um almoço em um restaurante de Jerusalém”. Eu duvido. Duvido muito. Quem estiver interessado ler um artigo sobre a pronúncia do hebraico bíblico, sugiro este artigo, publicado no TheTorah



Jones F. Mendonça