quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

JAVÉ, O “CAVALEIRO DAS ESTEPES”

1. O livro de Habacuque, capítulo 3, a partir do v. 8, descreve Javé, Deus de Israel, como “Cavaleiro das estepes”, como guerreiro montado em um cavalo que cavalga para salvar seu povo e seu ungido (o rei). Avançando pelo deserto e lançando "flechas luminosas", Javé é precedido por uma tempestade que “cava o solo”, “desnudando a casa do ímpio até a rocha”.

2. No Salmo 68 essa imagem reaparece. Ele avança, com seus carros de guerra, capturando cativos, derramando “chuva copiosa". No Salmo 18 ele usa como montaria um querubim, tendo sob seus pés uma “nuvem escura” e à sua frente um clarão inflamando “granizo e brasas de fogo”. Aqui ele também lança flechas e diante de seu poder o mar é forçado a exibir o seu leito.

3. A imagem de Deus como guerreiro inspirou a letra do Hino de Batalha da República dos Estados Unidos, escrita por Julia Ward Howe, em 1861. O Hino tem sido usado para apoiar quase todas as posições políticas, desde o nacionalismo branco ao Movimento dos Direitos Civis. Fazem com o hino o que vem fazendo com a Bíblia há cerca de dois mil anos: usam a imagem do Deus Guerreiro para dar legitimidade às suas próprias ambições.

4. Já está mais do que na hora desse abuso acabar.


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

CÂNTICO DOS CÂNTICOS: ENTRE PERNAS E BEIJOS

1. Depois de expor uma série de elogios ao corpo de seu amado – cabeça, olhos, cabelos, faces, lábios, braços, ventre e pernas – a amada do livro bíblico de Cântico dos Cânticos faz uma última declaração àquele que desperta nela as mais intensas paixões: “seu HEKH (חך) é doce e ele é todo desejo” (5,16).

2. Mas qual o significado de “HEKH”? Dois exemplos: “colou-se, de sede, a língua do lactente ao seu HEKH” (Lm 4,4), ou ainda “o favo de mel é doce ao teu HEKH(Pv 24,13). A palavra indica o local da boca imaginado pelos antigos como responsável pelo paladar. Assim, temos:

“Sua boca (o interior da boca) é doce, e ele (o amado) é todo desejo”.

3. A amada – isso me parece muito claro – está descrevendo o quão doce e ardente é o beijo do seu amado. Algumas versões, como a Almeida Corrigida e Fiel (ACF), traduzem o verso do seguinte modo: “SEU FALAR é muitíssimo SUAVE”. A ACF Trocou “boca” por “falar” e “doce” por “suave”.

4. Sabe-se lá o que vai pela cabeça de alguns tradutores.


Jones F. Mendonça

domingo, 16 de janeiro de 2022

TUA BOCA É COMO ROMÃ PARTIDA



1. O amado, no livro bíblico de Cântico dos Cânticos (4,3), dirige-se assim à sua amada:
Como fio escarlate são teus lábios,
Tua fala [=boca?] é formosa,
Como romã partida é tua raqqah (רקה) através do teu véu.
2. O texto descreve a beleza da amada realçando suas partes avermelhadas: os lábios, a boca como um todo e, depois, a raqqah dividida. Mas qual o significado de raqqah? O termo só reaparece no livro de Juízes (4,21-22; 5,26), utilizado para indicar o local da cabeça de Sísera penetrado por uma estaca manejada por Jael. Os tradutores geralmente optam por “têmpora”.

3. A NTLH entende que se trata do “rosto”, avermelhado como a romã. A NVI traduz por “faces”, sem destacar a semelhança com tom avermelhado da romã. A ARA também traduz o termo por “faces”, mas imagina que a semelhança é com o “brilho” (!?) da romã. Vale dizer que a palavra “brilho” não consta no texto e que existe uma palavra hebraica para “faces” (פנים). A BJ imagina que seja uma referência aos dois “seios”.

4. Posso estar redondamente enganado, é claro, mas se você olhar bem para uma romã aberta vai notar certa semelhança com o interior de uma boca. Caso eu esteja correto, Jael não teria fincado uma estava na “têmpora” de Sísera, mas na abertura da boca. O texto enfatiza que a estaca atravessou a “raqqah” e penetrou “na terra”.

5. No Cântico dos Cânticos somos tentados a pensar que a referência seja ao que chamamos de “maçãs do rosto” (entre os hebreus seriam “romãs do rosto”). Mas neste caso, a estaca de Jael teria sido fincada na “maçã do rosto” de Sísera, algo que não faz muito sentido.

6. E você, o que acha?




Jones F. Mendonça

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

NAZIREUS, CABELO E VINHO

1. O livro bíblico de Números, em seu capítulo 6, descreve uma antiga prática religiosa de “santificação da cabeça” (Nm 6,11), ritual com caráter votivo, chamado de nazireato. O candidato, que podia ser homem ou mulher (6,2), obrigava-se a se abster do produto da videira, do contato com cadáveres e do corte do cabelo (6,3-6).

2. Após o fim do período do voto, cuja duração podia variar, o(a) candidato(a) rapava totalmente a cabeça e seus cabelos eram queimados, juntamente com a oferta de um animal (6,18). Dois homens na Bíblia são apresentados fazendo voto de nazireu: Sansão (Jz 13,5.7; 16,17) e Paulo (At 18,18; 21,23).

3. Sansão, no entanto, parece não ter seguido à risca seu voto, afinal como evitar tocar em corpos sem vida em uma batalha sangrenta (Jz 14,19 e 15,15-16)? Além do mais, o banquete, oferecido em 14,10 dificilmente não incluiria bebida. O texto de Atos não diz com clareza que Paulo vez voto de narizeu, isso fica apenas sugerido.

4. A abstenção do vinho parece ser um costume bem antigo, cultivado por grupos seminômades como os recabitas (Jr 35,6), que também mantinham a tradição de viver em tendas (v. 7). Uma crítica velada aos cultivadores de vinha – e, portanto, ao vinho – aparece em Gn 9,20-21.

5. Embora a Bíblia não mencione qualquer mulher fazendo o voto do nazireato, a rainha Helena de Adiabene é uma das mais famosas naziritas. O Talmud (Nazir 19b) relata que seu voto aparece relacionado a seu filho. Ela teria prometido que se tornaria uma nazirita por sete anos caso ele voltasse em segurança da guerra.

6. O local onde foi sepultado o corpo de Helena, localizado a 820 m ao norte da antiga muralha da cidade de Jerusalém, é considerado como o maior e mais belo dos túmulos da cidade. Ainda não está clara para mim a origem de dois costumes: a abstenção de vinho (forte entre os conservadores recabitas) e do corte do cabelo.


Jones F. Mendonça

 

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

SHALAM É “TER A DÍVIDA PAGA”

1. O verbo hebraico “shalam” (שלם), cuja raiz é a mesma do substantivo “shalom” (שלום), não significa exatamente “fazer as pazes” (cf. Js 10,1 e 2Sm 10,19), mas “estar pago” ou “estar quitado”. Dois exemplos. Em Pv 7,14 lemos assim: “PAGUEI hoje os meus votos”. Quando o verbo está na voz passiva, indica “foi pago”. Exemplo: “se o justo receber a sua paga aqui na terra, quanto mais o ímpio e o pecador”.

2. Talvez você esteja se perguntando: “qual a relação entre o verbo ‘PAGAR’ e o substantivo ‘PAZ’”? Bem, acho que este exemplo tomado de Pv 25,22 vai ajudar. Ele fala da recompensa, da paga garantida aos justos: “assim amontoas brasas sobre sua cabeça, o Senhor te PAGARÁ”. O sentido de “o Senhor te pagará”, significa “o Senhor te retribuirá” pelas boas obras realizadas (cf. v. 21).

3. Assim, uma pessoa considerada “paga”, “quitada” (com Deus ou com um inimigo) é uma pessoa “plena”, “recompensada” ou “em estado de shalom”. Mas o verbo também pode desempenhar sentido negativo, como em Pv 20,22: “Não digas: PAGAREI [eu mesmo] o mal; espera no Senhor e ele te salvará”. O substantivo “shalom”, de modo diferente, sempre indica um estado de retribuição plena positiva.

4. Este é o caso, por exemplo, de Abraão em Gn 15,15: “Quanto a ti, em estado de retribuição plena irás para os teus pais, serás sepultado numa velhice feliz”. Shalom não tem o sentido de “paz” como ausência de guerra ou de conflitos, mas de “plenitude de vida”. No AT, como não havia ainda a ideia de uma vida plena no além (com exceção de Dn 12,2), o que se esperava era uma vida de plenitude na terra.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

PROVÉRBIO PARA GULOSOS

Pv 23,2 é um bom exemplo para explicar a diferença entre dois métodos de tradução da Bíblia: 1) equivalência formal; 2) equivalência dinâmica. O texto traduzido de forma literal fica assim:

“Põe a faca na tua goela se senhor da garganta és tu”. A expressão “senhor da garganta” (בַּעַל נֶפֶשׁ) só ocorre aqui, tornando difícil sua tradução. É bem provável que tenha sido usada para classificar uma pessoa gulosa.

A Bíblia Almeida Corrigida e Atualizada (ARA), versão que opta por uma tradução bem formal, traduziu desse jeito: “põe uma faca à tua garganta, se fores homem de grande apetite”.

A Bíblia na versão Nota Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH), cujo método de tradução é a equivalência dinâmica, tenta capturar o sentido do texto de forma simplificada. Veja: “Se você é guloso, controle-se”☺



Jones F. Mendonça

sábado, 1 de janeiro de 2022

ECLESIASTES E O “FIO DE PRATA”

O livro do Eclesiastes, no seu capítulo 12 (vv. 1-8), exorta o leitor a fazer bom uso de sua juventude, antes que “venham os dias da desgraça” (v. 1), antes que “se escureçam o sol, a lua e as estrelas” (v. 2), antes que “as canções emudeçam” (v. 4), antes que “pereça o apetite/querer” (v.5). É um texto triste e ao mesmo tempo inspirador. Quatro versos desafiam o tradutor/intérprete (12,6):
“Antes que o fio de prata se ROMPA
e o copo de ouro se PARTA,
antes que o jarro se QUEBRE na fonte
e a roldana se DESFAÇA no poço”.
O texto apela para que o leitor acorde para a vida, “antes que...”. Os dois primeiros versos falam de objetos preciosos: O “fio de prata” (um cordão?) e um “copo de ouro” que se rompem/se partem. Os dois últimos versos falam de objetos utilizados para apanhar água na fonte/no poço: um “jarro” e uma “roda/roldana”, que se quebram/se desfazem.

Há quem associe o “fio de prata” à medula (!) e outros a um suposto “fio prateado” visto por pessoas em seus últimos minutos de vida. É verdade que no texto, desde o início, predominam alusões a partes do corpo perdendo sua força, sua vitalidade, seu vigor, sua utilidade (visão, audição, apetite, força muscular, etc.). Mas no v. 6 a imagem evocada parece ser outra, não mais elementos do corpo, mas do cotidiano: 1) o cordão de prata que se rompe pelo uso; 2) a taça de ouro que racha pelo desgaste, 3) o jarro de barro que se quebra, 4) a roda/roldana do poço que se desfaz. 



Jones F. Mendonça