quinta-feira, 18 de abril de 2024

SOBRE EPILÉTICOS E ALUADOS


1. Nesta semana, na aula de "poesia e Sabedoria na Bíblia Hebraica", percorremos por toda a Bíblia na tentativa de reconstruir a história do desenvolvimento da figura de Satã (a aula é uma introdução ao livro de Jó). Chegamos a Mateus 17,15, passagem que descreve um exorcismo realizado por Jesus em um menino supostamente "epilético" (σεληνιαζομαι). Assim traduzem algumas versões, como a Almeida Revista e Atualizada. Na Idade Média a doença ficou conhecida como "morbus demoniacus" (doença do demônio).

2. Mas o termo grego "seleniazomai" indica mesmo um "epilético"? Algumas versões optaram por "lunático" e já posso adiantar que estão mais próximas do sentido original de "seleniazomai". É que no mundo antigo as instabilidades emocionais eram associadas à lua (selene), por isso o jovem mencionado no texto é classificado como "seleniazomai" = "pessoa afetada pela luminosidade da lua" (você se lembra do "Da Lua", de Mulheres de Areia?). É óbvio que a lua nada tem a ver com a loucura, mas era assim que os antigos entendiam.

3. A passagem descreve um menino que parecia ter pouco controle sobre seus movimentos e suas faculdades mentais. O texto sequer supõe que o menino tinha alguma doença, mas atribui seus descontrole à influência de um daimonion (δαιμονιον), termo que podia ter muitos sentidos no mundo greco-romano, como demonstra o historiador francês Denis Fustel de Coulanges, em sua "Cidade Antiga" (1864). Não faz qualquer sentido o uso de "epilético" em Mt 4,24 e 17,15. É preciso bani-lo, definitivamente, assim como "leproso".



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 22 de março de 2024

SEMINÁRIO TEOLÓGICO BATISTA CARIOCA: AULAS


1. De modo geral, são classificados como “literatura sapiencial” os livros de Provérbios, Jó e Eclesiastes. O primeiro, formado por uma coletânea de sentenças curtas, é assertivo, direto, repleto de declarações imperativas: “escuta, meu filho”, “inclina teu ouvido…” (1,8; 22,17). Os dois últimos possuem natureza bem distinta: expõem muitas perguntas e oferecem poucas respostas. Jó expressa um sentimento de crise diante da dor e da perda material e afetiva. Eclesiastes também é uma literatura de crise, mas a crise, neste caso, é existencial, uma vez que a vida humana parece subsistir meramente como “névoa” e “doença ruim” (6,2).

2. Um leitor atento perceberá que a história de José, em Gn 37,39-50, preserva muitos elementos comuns à chamada literatura sapiencial, por isso foi classificada por von Rad como “romance literário didático” (um conto sapiencial). Inspirado no trabalho de von Rad, Shemaryahu Talmon sugeriu que a história de Ester igualmente revela a influência de uma “mão” sapiencial. R. N. Whybray, nas mesmas pegadas de von Rad, viu na narrativa de sucessão (2Sm 9-20; 1Rs 1-2) as marcas de uma tradição sapiencial. Também parecem preservar traços sapienciais os livros de Jonas, Rute, Daniel e alguns Salmos (como o 39 e 104), dentre outros.

3. Mas será que não estaríamos sendo seduzidos por uma espécie de “pan sapiencialismo”, como sugeriu Will Kynes? Existiu de fato, no Antigo Israel, um grupo de escribas palacianos conhecidos como “sábios” (חכם), atuando ao lado (e muitas vezes em conflito) de figuras bem conhecidas, como os sacerdotes e profetas? Será que a literatura sapiencial expressa a percepção de mundo de um grupo específico? É mesmo possível falar em uma “tradição sapiencial”? Que relação ela possui com os demais livros que compõem a Bíblia Hebraica? E, por fim: quais os limites desse suposto corpus literario?

4. A tentativa de responder a esta e a outras perguntas relacionadas à literatura sapiencial você encontra em “Was There a Wisdom Tradition? New Prospects in Israelite Wisdom Studies”, editado por Mark S. Sneed (Atlanta, SBL, 2015). Esta e outras questões também serão abordadas no curso "Livros Poéticos e Sapienciais da Bíblia Hebraica" do Seminário Teológico Batista Carioca. Espero você em nossa sala virtual. Procure a Viviane, nossa secretária: (21) 96536-9181.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 8 de março de 2024

LUTERO, BEAUVOIR E OS BEBÊS


1. Quando Lutero diz, em suas Preleções sobre o Gênesis, que a mulher possui uma habilidade especial para acalentar bebês, em contraste com o homem, inapto para a tarefa, está naturalizando algo que é aprendido, e não implantado no DNA da fêmea.

2. Em "O segundo sexo", ao declarar que "ninguém nasce mulher, torna-se mulher", Simone de Beauvoir está dizendo exatamente isso: ser fêmea é algo dado pela natureza, ser "mulher" é uma construção social.

3. Assim, quando alguém diz: "isso não é coisa de mulher", está dizendo, "isso não é coisa que a sociedade [patriarcal] consolidou como papel reservado à fêmea". Mas Beauvoir não é tonta a ponto de dizer que tudo é construção social.

4. Quem faz isso é a chamada "esquerda identitária", que nada tem a ver com Marx ou com o socialismo. A direita conservadora, por outro lado, milita pela naturalização daquilo que é construído. Como se os edifícios dos costumes tivessem caído do céu.


Jones F. Memdonça

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

SOBRE GUERRAS E VERMES QUE NUNCA MORREM


1. Até onde pude constatar, a crença no cumprimento literal das profecias do Antigo Testamento relacionadas ao retorno dos judeus à terra prometida remonta ao século XVIII. Nasceu em ambiente puritano, grupo de fiéis fervorosos que se desvincularam da Igreja Anglicana. No século XIX, precisamente em 1844, George Bush, avô presbiteriano do ex-presidente dos Estados Unidos, escreveu “The Valley of Vision; or, The Dry Bones of Israel Revived”, livro que pregava, assim como os puritanos, o restauracionismo.

2. No ambiente cristão, até então, imaginava-se que as profecias relacionadas à restauração de “Israel” (ou melhor, de Judá/Jerusalém) já haviam sido cumpridas no século VI a.C., concretizadas após o Edito de Ciro, rei persa mencionado no livro do profeta Isaías (44,28):
Digo a Ciro: "Meu pastor".
Ele cumprirá toda a minha vontade,
dizendo a Jerusalém: "Tu serás reconstruída",
e ao Templo: "Tu serás restabelecido”.
3. De fato, Jerusalém e seu templo foram reconstruídos. No tempo de Jesus o santuário ainda estava de pé e os judeus viviam na Palestina tal como declaravam as antigas promessas. Além disso, as profecias messiânicas foram projetadas em Jesus, reconhecido como sendo “da linhagem de Davi” (Is 1,1; Mt 1,1). E como sua missão foi ressignificada, percebida por seus seguidores como estando relacionada à salvação “dos pecados” e não mais à salvação “dos impérios hostis” (Lc 24, 21.47), tudo parecia cumprido, restando apenas o juízo final, a ressurreição do corpo e o triunfo do reino sem males.

4. No primeiro século os judeus ainda estavam reunidos, ainda ocupavam a terra de seus ancestrais e já possuíam – na perspectiva cristã – um rei “da linhagem de Davi”. Na expectativa de Paulo, por exemplo, só restava aguardar o retorno, a parousia de Cristo. Por isso ele diz aos Tessalonissenses: “nós... os que estivermos vivos, seremos arrebatados como ele” (1Ts 4,17). O texto revela com muita clareza que Paulo cultivava forte expectativa pela iminência do retorno de Cristo, ainda enquanto estivesse vivo. Na Segunda Carta, mais maduro, ele recua e pede paciência (2Ts 2,2).

5. Ocorre que no ano 70 Jerusalém foi destruída pelo exército romano. No início do segundo século, após nova revolta judaica, os judeus foram expulsos de Jerusalém sob o governo do imperador Adriano. Diante disso, o cumprimento literal e definitivo das Escrituras – posse da terra, reino terreno sob o governo de Cristo, paz definitiva em Jerusalém – foi projetado para o futuro, para o milênio. E assim nasceu o restauracionismo. E assim foi gerado o dispensacionalismo (John Nelson Darby e Cyrus Ingerson Scofield), roteiro hollywoodyano de mau gosto criado no século XIX.

6. No século XXI, em um mundo ainda assolado por tantas guerras cruéis, o dispensacionalismo permanece sendo usado para legitimar crimes de guerra, deportações forçadas, roubo de terras, violação de sepulturas e santuários, fraldas manchadas de sangue e tripas suspensas no varal. É política travestida de piedade. Crueldade sob o manto da Cruz. Crenças ruins são como o verme do Evangelho de Marcos: ardem nas chamas, mas nunca morrem (Mc 9,48).



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

O CARNAVAL DE IVETE E O ARMAGEDOM


1. Desde que Cristo deixou fisicamente a terra, diversas questões passaram a ocupar a mente daqueles que se reuniam em seu nome. Duas delas aparecem relacionadas: 1) Qual a razão de sua morte? (Lc 24,20-21), 2) Quando e como voltará? (1Ts 4,13-18). Na tentativa de expor em detalhes a questão n° 2, teólogos das mais diversas épocas se debruçaram sobre livros como Ezequiel, Daniel, Mateus, Tessalonicenses e, obviamente, o Apocalipse.

2. A explicação mais criativa, fantástica e popular é o dispensacionalismo. De acordo com essa visão, um dos mais evidentes sinais de que o mundo caminha para um colapso final é o chamado ARREBATAMENTO: cristãos piedosos de diversas partes do mundo desaparecerão de forma abrupta, resgatados por Cristo, inaugurando na terra um período de sete anos de extrema angústia: a terrível e temida GRANDE TRIBULAÇÃO.

3. No final desses sete anos Jerusalém estará cercada pelos exércitos de Gog e Magog, desencadeando a não menos dramática GUERRA DO ARMAGEDOM. Mas Jerusalém sairá ilesa graças à interferência de Cristo, que sairá em auxílio da Cidade Santa e derrotará o malvado ANTICRISTO. Sentado em um trono, com coroa e tudo, Cristo reinará em Jerusalém por mil anos e a terra experimentará fartura e prosperidade. Tudo perfeito, como naquelas ilustrações das Testemunhas de Jeová.

4. Mas... como nos filmes da Marvel, é preciso estar atento às cenas pós-crédito. Inesperadamente, para surpresa dos telespectadores, ou melhor, dos sobreviventes do Armagedom, no ano 1000 o Capiroto lançará seu último bote. Ocorre que o roteiro foi tornado público (tem spoiler), então todos sabem que o Zarapelho será derrotado e lançado definitivamente no lago de fogo ardente juntamente com a Besta e o Falso Profeta (Ap 20,10).

5. Bem, com essa coisa de guerra entre Israel e Hamas, conflito na Ucrânia, Houthis no Yêmen, China ameaçando Taiwan e alertas sobre os perigos da inteligência artificial, os dispensacionalistas estão em polvorosa. Em pleno festejo de carnaval, Baby do Brasil disparou: “o arrebatamento tem tudo para acontecer entre cinco e dez anos” (Puxa, assim tão rápido nem vou conseguir comprar meu primeiro carro elétrico).

6. Mas nem tudo está perdido. Ivete, que não leva desaforo pra casa, disse que vai macetar o Apocalipse. Se entendi bem, a moça vai pedir uma prorrogação de prazo ao Altíssimo.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

GUARATIBA ESTÁ QUEIMANDO, O MUNDO ESTÁ FERVENDO

Praia da  Marambaia, Rio de Janeiro
Praia da Marambaia, Guaratiba, RJ

1. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em fevereiro de 2022, jornais “ocidentais” e os “não ocidentais” divulgavam informações bem diferentes a respeito do andamento do conflito. Em nome da verdade, teve até boicote aos canais de notícias russos, como o Russia Today e o Sputnik, bloqueados no Facebook e no YouTube por supostamente divulgarem informações falsas.

2. Enquanto isso, nos jornais ditos “ocidentais”, comprometidos com “a verdade”, líamos coisas como “Putim sofre com um câncer em estágio terminal, dizem fontes”, ou “soldados russos sequer possuem botas para o combate”. Falava-se ainda a respeito de falta de munição, incompetência de generais, armas obsoletas, canibalismo russo no campo de guerra e outras bobagens.

3. Na prática todos sabemos que a Rússia está vencendo a guerra. As sanções não funcionaram. A ajuda militar oferecida pelos membros da OTAN foi insuficiente. A ordem de prisão emitida pelo TPI contra Putin ficou só no papel. O confisco de ativos russos não surtiu o efeito desejado. Nada parece deter o líder russo em seu obstinado avanço em direção à Ucrânia (e à Europa?).

4. O eixo que conhecemos como “Ocidente”, formado pela Europa Ocidental e pelos Estados Unidos, parece desorientado. Sem Ângela Merkel a Europa perdeu força e lucidez. Os Estados Unidos precisam escolher entre um Biden patético e um Trump canalha. No meio de toda essa balbúrdia, ainda temos o conflito entre Israel x Hamas que a cada dia ganha novos atores.

5. Acha que paramos por aí? Boa parte dos analistas acredita que mais cedo ou mais tarde haverá guerra entre os Estados Unidos e a China pela disputa por Taiwan. A vitória de Lai Ching-te nas urnas – um candidato pró-independência – tornou esse conflito mais provável e mais iminente. Fora as tensões políticas, ainda sofremos com os efeitos das mudanças climáticas (em Guaratiba, onde trabalho, a sensação térmica é de 60 graus!).

6. A gente não precisa ser tão pessimista (como o chato do Pondé), mas com um cenário como este – o do mundo, não o da foto de Guaratiba – dá pra ser otimista?


Jones F. Mendonça

DOUGLAS WILSON E A ESCRAVIDÃO NO SUL DOS EUA


1. Ganhou grande repercussão na mídia o convite feito ao teólogo reformado Douglas Wilson para participar como palestrante em um evento organizado pela Consciência Cristã. O motivo do estranhamento: Douglas Wilson seria um defensor da escravidão, desde que seja feita "de acordo com padrões bíblicos".

2. Como não tenho o costume de acolher acriticamente informações vindas de segunda mão, fui consultar "Southern Slavery: as it was" (Escravidão no Sul: como era"), escrita pelo referido teólogo. Na página 8 você lê o seguinte: "A verdade é que a escravatura no Sul está sujeita a críticas porque não seguiu o padrão bíblico em todos os pontos”.

3. Parei por aí...


Jones F. Mendonça

"CONTRA A TEOLOGIA LIBERAL", DE ROGER OLSON


1. Em dezembro do ano passado foi publicado em português “Contra a teologia liberal”, escrito por Roger Olson, teólogo batista conhecido por publicações relacionadas à história da teologia cristã. Não julgue o livro pelo título [apologético], ou pela editora [pobre em produções teológicas mais densas]. Nem de longe as críticas de Olson à teologia liberal lembram os ataques acalorados, imprecisos e intelectualmente desonestos feitos por apologetas despraparados que se multiplicam em canais do YouTube. 

2. Embora trate com respeito amigos que simpatizam com a teologia liberal, Olson considera problemáticos alguns pontos defendidos por teólogos liberais mais radicais, tais como a negação da inspiração das Escrituras, da ressurreição física de Jesus ou da realidade histórica de seus milagres. Assim, defende que os liberais não devem ser considerados verdadeiros cristãos, uma vez que rompem com dogmas formulados nos primeiros séculos e aceitos tanto por católicos como protestantes. Faz uma avaliação [quase] estritamente técnica.

3. O autor reconhece neles verdadeira piedade, verdadeiro entusiasmo religioso, além das mais elevadas intenções. Mas enfatiza que o liberalismo teológico se distanciou da ortodoxia cristã tanto quanto o cristianismo se distanciou do judaísmo. Enfim, fez nascer uma religião nova, diferente, distinta do seu tronco de origem. Olson faz uma ressalva importante logo no início do livro: “não seja tonto, liberalismo teológico é uma coisa, progressismo teológico é outra totalmente diferente”. É claro que ele não usa essas palavras, mas eu uso. E repito: “não seja tonto”.

4. Além dos livros assinados por Olson, duas obras de peso sobre a teologia do século XX (ao contrário de Olson, meramente descritivas, evitam fazer juízo de valor) são "Deus na filosofia do século XX" e "Teologia do século XX", escritos por Rosino Gibellini.



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

A APOSTASIA, O AMOR E A DOR EM AGOSTINHO DE HIPONA


1. Um provérbio popular muito repetido no universo evangélico é “se [a conversão religiosa] não for pelo amor, será pela dor”. Mas de onde veio esta sentença? Minha hipótese é que nasceu a partir da leitura um tanto quanto livre do livro bíblico de Provérbios feita por Agostinho de Hipona, teólogo e filósofo do V século.

2. Atormentado pela insubmissão dos donatistas, grupo cristão cujas doutrinas foram consideradas cismáticas e heréticas, Agostinho entendeu que era preciso tomar medidas mais duras a fim de preservar a comunhão e o respeito às lei imperiais. Em uma carta endereçada a Bonifácio, o teólogo africano saiu-se com essa:
3. A inspiração vem de Pv 23,14: “Quanto a ti, deves bater-lhe com a vara, para salvar-lhe a vida do inferno”[1]. (Na vulgata: tu virga percuties eum et animam eius de inferno liberabis). Mas na verdade o texto hebraico não fala de “inferno”, nem tem como objetivo dirigir-se àqueles que se distanciaram da “reta doutrina”.

4. O texto de provérbios é dirigido aos “meninos” (na’ar), instruídos na arte da sabedoria, dos bons modos e dos bons pensamentos. A "vara" era um instrumento antigo de educação. A violência como forma de disciplina também era praticada pelos mestres da Babilônia, que recorriam ao método com a finalidade de corrigir seus discípulos.

Nota: [1] No texto hebraico “sheol” é mundo dos mortos e não inferno. A mensagem do provérbio é clara: “a vara não mata” (v. 13), mas, pelo contrário, “livra a néfesh (=vida) do sheol” (=da morte, cf. v. 14)”. Trocando em miúdos: “a vara da disciplina fere a carne, mas livra da morte"


Jones F. Mendonça

domingo, 14 de janeiro de 2024

DEUS LÍQUIDO


Arte: Robert Crumb

1. Por mais de mil anos os dogmas cristãos mantiveram-se sob o controle da Igreja com grilhões de ferro. Mas desde que Lutero ganhou projeção ao questionar a autoridade do Papa e da tradição em textos produzidos a partir da segunda década do século XVI, os dogmas cristãos formam enfraquecendo em proveito de crenças mais pessoais, “à la carte”. A reforma herdou o individualismo humanista renascentista.

2. É verdade que os dogmas mais elementares, como a trindade, o nascimento virginal, a ressurreição e a parousia de Cristo ainda são compartilhados pela esmagadora maioria dos diversos segmentos cristãos em atividade (ao menos no papel). Mas todas essas crenças, outrora percebidas como fundamentais, têm sido realmente relevantes nos sermões e na piedade individual e coletiva?

3. A cada alvorada, a cada gota de orvalho que seca sob os primeiros raios de sol, uma nova igreja cristã dá seus primeiros sinais de vida. Seus discursos são muitas vezes contraditórios, assim como seus padrões de moral, suas liturgias, suas crenças e até suas posições políticas. Há o evangelho coach, da prosperidade, da confissão positiva, da reta doutrina, da esquerda, da direita, da ação social, do êxtase, da cura, da ladainha sem fim.

4. Em um mundo que se dissolve em meio a tantas crenças como caramujo ao sal, cientistas da religião têm refletido a respeito do papel desempenhado pela religião na sociedade contemporânea. Como ela dialoga com a política, com a arte, com as relações de consumo, com a diversidade cultural, com as demais religiões? Como dialogará com a inteligência artificial, com um eventual prolongamento extraordinário da vida humana?

5. Não há respostas fáceis ou definitivas. Certo mesmo é que atualmente a religião ainda está viva nos monumentos, nos nomes de batismo, no discurso político, nos ritos fúnebres, na conversa barata da esquina, no tropel ofegante dos pregadores televisivos. Mas todas essas manifestações expressam a face de um mesmo Deus? Nietzsche estava errado: Deus não morreu. Deus se dissolveu.



Jones F. Mendonça