quinta-feira, 27 de junho de 2019

AS “TOCADORAS DE FLAUTA” NA GRÉCIA E NA BÍBLIA

Simone de Beauvoir diz em seu magistral “O segundo sexo”, que na Antiga Grécia havia uma classe de prostitutas conhecidas como Auletrides, dançarinas tocadoras de flautas, como Lâmia, amante de Ptolomeu do Egito.

O toque de flauta também aparece associado à prática da prostituição em Is 23,16:

Toma uma cítara, perambula pela cidade,
prostituta esquecida!
Toca a tua flauta o melhor que puderes, repete a tua canção,
para que se lembrem de ti!”.

A imagem da prostituta, no texto, funciona como metáfora para indicar o ofício de Tiro, cidade famosa por sua riqueza, habilidade na navegação e exuberância comercial.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 17 de junho de 2019

O PARALELISMO JANUS

Em Cantares 2,12 a palavra hebraica “zamiyr” pode ser traduzida tanto por “poda” como por “canto” (são homógrafas). Ela foi colocada ali de propósito. Veja:

1) As flores florescem na terra, 
o tempo da PODA vem vindo, 
e o som da rola está-se ouvindo em nosso campo. 

2) As flores florescem na terra, 
o tempo do CANTO vem vindo, 
e o som rola está-se ouvindo em nosso campo.

No primeiro caso as flores anunciam a PODA. No segundo caso o CANTO anuncia a rola. O paralelismo janus é uma técnica literária muito engenhosa. Encontre muitos exemplos na seguinte obra: 

NOEGEL, Scott B. Janus parallelism in the Book of Job. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1996. 


Jones F. Mendonça

domingo, 16 de junho de 2019

AMY BALOGH: O MOISÉS DE CHIFRES É UM ÍDOLO

Moisés dá a seguinte resposta a Javé após ser convocado a pedir ao Faraó a libertação do povo: “Sou incircunciso de lábios; como, pois, me ouvirá Faraó?” (6,12; 6,30). Javé resolve o problema elevando o status de Moisés de “incircunciso de lábios” a “um deus para Faraó” (7,1a). Na sequência Aarão é escolhido como seu porta-voz: “teu irmão, será o teu profeta” (Ex 7,1b).

De acordo com Amy L. Balog, em artigo publicado na Asor, a melhor analogia encontrada no Antigo Oriente Próximo para esse novo status, é a de um... ídolo! Na Mesopotâmia o ídolo precisava passar por um ritual capaz de lhe “abrir a boca” (Mīs Pî) permitindo que fizesse a mediação entre os reinos divino e celeste. Ao dizer a Javé duas vezes (ou três, cf. 4,10) que possui “lábios incircuncisos”, Moisés estaria se queixando com razão.

De acordo com Balogh, seria de se esperar que Moisés exibisse um sinal físico capaz de evidenciar esse novo status, como chifres ou raios de luz.  Este sinal teria aparecido finalmente em Ex 34,29-35. O nível de elevação de Moisés seria alto o suficiente para “ver a forma (temunah) de Javé” (Nm 12,8). Balog finaliza seu artigo com a seguinte conclusão:
Embora os autores bíblicos rejeitem abertamente o uso de ídolos, eles entendem a importância dos ídolos na imaginação religiosa e moldam ativamente sua apresentação de Moisés para atender aos desejos e expectativas da audiência, mas de maneiras compatíveis com a adoração a Javé. 

Jones F. Mendonça

terça-feira, 11 de junho de 2019

ABBA NÃO É “PAIZINHO”, ÁGAPE NÃO É “AMOR INCONDICIONAL” E KAIRÓS NÃO É O “TEMPO DE DEUS”

1. Investigo a origem de interpretações equivocadas do texto bíblico do Novo Testamento. A ideia tão difundida de que o aramaico “abba” significa “paizinho” (Mc 14,36) vem de um livro do renomado e competente teólogo alemão Joachim Jeremias (The prayers of Jesus, 1967). Sua tese foi derrubada por James Barr num artigo publicado em 1988 (“Abba isn’t Daddy”). Aliás, o próprio Jeremias reconheceu seu erro numa edição posterior de sua Teologia do Novo Testamento (Devo essa ao Lucas Fernandes). “Abba” significa simplesmente “pai” como o hebraico “ab”.

2. Apesar do NT não dar um sentido diferenciado ao termo grego “ágape” (amor), não faltam publicações teológicas argumentando que ágape significa, no NT, “amor de Deus” ou “amor incondicional”. A origem dessa confusão talvez venha de outro teólogo alemão: Paul Tillich. Em sua teologia sistemática, Tillich discorreu sobre os diferentes tipos de amor existentes no pensamento grego (ágape, fileo, eros, storge). Meu palpite é o seguinte: leitores apressados talvez tenham atribuído ao “ágape” do NT o mesmo sentido que Tillich quis dar em sua teologia sistemática.

3. Um terceiro grande equívoco ocorre em relação ao termo grego “kairós”. Não faltam citações e sermões que atribuem ao termo um significado que ele jamais teve no NT. O que se diz é: “’chronos’” é o tempo cronológico e ‘kairós’ é o tempo da salvação, tempo de Deus”. Mas a tese não resiste a um exame cuidadoso. É falsa. Oscar Cullmann, em seu “Cristo e o tempo” (1946) refletiu sobre o tempo a partir da obra salvífica de Cristo, dando especial destaque ao termo “kairós” (“chronos” e “aiôn” ganham pouco espaço). Ele jamais definiu “kairós” como “tempo de Deus”, mas sua ênfase na ação divina no “kairós” (tempo) talvez tenha dado origem ao equívoco.



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 3 de junho de 2019

SAUL EM ÊXTASE PROFÉTICO; DAVI EM DANÇA FRENÉTICA

Cerca de 25% das palavras presentes na Bíblia Hebraica ocorrem uma única vez (são “hápax legomena”), tornando sua tradução uma tarefa difícil. No texto abaixo, os verbos “pazaz” (Gn 49,24; 2Sm 6,16) e “karar” (2Sm 6,14.16), geralmente traduzidos por “saltando” e “dançando” aparecem, cada qual, apenas duas vezes:
Micol olhava pela janela e viu o rei Davi SALTANDO (?) e DANÇANDO (?) diante do Senhor, e, no seu coração, ela o desprezou (2Sm 6,16).
É simplesmente impossível saber exatamente que tipo de ação Davi desempenhava “diante do Senhor”. Certo mesmo é que ele fazia isso com intensidade (cf. 6,14) e que sua nudez foi exposta durante a performance, algo que incomodou Micol, filha de Saul (2Sm 6,20). Haveria alguma relação entre a “dança” frenética de Davi e o êxtase profético de Saul, em Sm 19,23-24? (repare que Saul também fica nu).



Jones F. Mendonça

JUDÁ NA "ORDEM DE MELQUISEDEQUE"

O livro de Hebreus apresenta Jesus como único sacerdote capaz de oferecer um sacrifício definitivo pelos pecados (Hb 7,27).  Mas seus destinatários, oriundos do ambiente judaico, certamente rejeitariam este argumento, uma vez que os sacerdotes precisavam pertencer à tribo de Levi. Ora, sendo Jesus da tribo de Judá, como ele poderia ser sacerdote? A questão é colocada em Hb 7,14.

A solução: Jesus pertenceria a uma ordem especial de sacerdotes, “não por regras relativas à linhagem” (7,16). Hebreus até menciona um exemplo para fundamentar seu argumento: Melquisedeque exerceu a função de sacerdote e sequer era israelita (Gn 14,18; Sl 110,4). Sim foi uma grande sacada. Mas Hebreus poderia ter mencionado outro exemplo de sacerdócio não levítico, como o que foi exercido pelos filhos de Davi (2 Sm 8,18).

Com um pouco de paciência a gente sempre encontra uma segunda brecha na lei...



Jones F. Mendonça