sexta-feira, 13 de novembro de 2020

O "DEDO MÍNIMO" DE ROBOÃO

1. No Primeiro livro bíblico de Reis (12,10), o rei Roboão aparece dando um recado ao povo, que pede um jugo menos pesado. O rei responde assim: “Meu qoten é mais grosso que a cintura de meu pai!”, ou seja, meu governo vai ser ainda mais rígido que o de meu pai, Salomão.

2. Ocorre que o significado de qoten é incerto (só aparece novamente em 2Cr 10,10), mas os tradutores geralmente chutam “dedo mínimo”. É que o substantivo qoten possui mesma raiz de qaton, adjetivo que significa “pequeno”, daí imaginaram que a referência seja ao dedo mínimo

3. Quer saber? Eu acho que estão errados. 


Jones F. Mendonça

EXEGESE FUNDAMENTALISTA

Debate entre dois cristãos fundamentalistas sobre a posse de armas. Bobinho, a favor, cita as Escrituras: “cada um conservava sua ARMA na mão direita” (Nee 4,23). Depois menciona uma “profecia” sobre a liberação das armas no Brasil: “Eis que vou fazer voltar as ARMAS” (Jr 21,4).

Tontinho não perde tempo e também apanha sua Bíblia. Abre na Carta de Paulo aos Coríntios e contesta Bobinho: “Na verdade, as ARMAS com que combatemos não são carnais (2 Co 10,4). E então cita o Eclesiastes: “Mais vale sabedoria do que ARMAS” (Ecl 9,18).

Parece piada, mas é a partir de leituras assim que muitos debates se desenvolvem no ambiente religioso de matriz fundamentalista. Aqui posso citar dois nomes: Yago Martins e Augustus Nicodemus.

  

Jones F. Mendonça

A NEGRITUDE EM CANTARES

1. A amada, no livro bíblico de Cantares, diz assim: “sou morena, mas formosa” (1,5). Vale destacar que o “mas” é indicado pela consoante “vav” (uma conjunção), que pode significar “e”, “mas”, “porém”, “então” e até “porque”. Neste caso, a tradução “sou morena E formosa” não estaria errada.

2. Ocorre que no verso seguinte a mesma mulher diz “não olheis que sou morena”. Aqui fica claro que “ser morena” não era uma característica desejável. Essa nova informação sugere que o v. 5 deve de fato ser lido como “sou morena, MAS formosa”. Ela enfatiza que é bela, apesar da tonalidade de sua pele. 

3. Há outra questão no texto. A palavra traduzida por morena é “shahor”. Em Ecl 11,10 (no plural) o termo parece indicar a negritude dos cabelos (de um jovem). Outra palavra de mesma raiz (sharar) parece indicar a pele escura e adoecida de Jó (30,30). Em Ct 5,11 indica a cor de uma ave (um corvo?). 

4. Não é fácil traduzir cores no hebraico. Há quem sugira que a amada tinha pele negra como uma etíope. Mas há um problema com a tese. O v. 6 dá as razões para a pele “enegrecida”: “o sol me queimou” (lit. “o sol me avistou”). E por que o sol a avistou/queimou? Ela explica: “fizeram-me guardar vinhas”. 

5. Em minha opinião “ter a pele escura” (ou seja, bronzeada) era algo mal visto não por uma questão racial, mas por questões sociais. Ela não era negra (sob a perspectiva étnica), mas estava “bronzeada”, “queimada pelo sol”, afinal era “cuidadora de vinhas”. Era alguém – como dizem hoje – “da ralé”. 


Jones F. Mendonça

terça-feira, 10 de novembro de 2020

PROFETAS, IMPÉRIOS E MILÍCIAS

1. Por volta de 705 a.C., com Samaria já conquistada pelos assírios, Judá vive sob enorme pressão. Em Jerusalém Ezequias ensaia a segunda tentativa de se livrar da humilhante relação de vassalagem ao qual seu reino foi submetido no tempo de seu pai, Acaz. O capítulo 7 do profeta Isaías mostra um Acaz pouco confiante na proteção de Javé, deus nacional. Isaías diz: “pede um sinal”. Acaz responde: “não pedirei” (Is 7,11-12). Voltemos a Ezequias.

2. Não havia soluções fáceis para o rei. Os tributos cobrados pela Assíria eram pesados. O povo amargava com altos impostos. Rebelar-se, por outro lado, era coisa bastante arriscada. Uma das soluções mais viáveis era buscar apoio no Egito, grande potência do norte da África. É nesse contexto que o profeta Isaías – contrariado – anda nu descalço, anunciando teatralmente o futuro de seus aliados egípcios: serão levados ao cativeiro assim, peladões (Is 20,4). 

3. Quando Senaqueribe, rei da Assíria, percebeu a rebeldia de Judá, tratou imediatamente de acionar sua poderosa máquina de guerra. O Prisma de Senaqueribe registra os resultados de sua mão pesada: “Sitiei 46 das suas cidades fortificadas [...]. Eu o prendi em Jerusalém, a sua residência real, como um pássaro em uma gaiola”. Isaías diz algo parecido: “Só restou a cidade de Sião como tenda numa vinha, como abrigo numa plantação de melões, como uma cidade sitiada” (Is 1,8). 

4. Os grandes impérios agiam como as milícias do Rio de Janeiro: se você não paga, eles queimam sua Kombi. Ezequias, que não era bobo, certamente não ia querer sua “Kombi” queimada. Então se retrata “Cometi um erro! Retira-te de mim e aceitarei as condições que me impuseres” (2Rs 18,14). A assíria, é claro, não deixou barato. O texto de Reis diz que Ezequias pagou 300 talentos de prata e trinta talentos de ouro. Para pagar a vultosa despesa o rei teve que retirar ouro do templo e de seu palácio. 

5. De Laquis, cidade vizinha de Jerusalém, o rei da Assíria mandou o recado: "Confias no apoio do Egito, esse caniço quebrado..." (2Rs 18,21). O povo, condenado a "beber da própria urina e comer do próprio excremento" durante o cerco (v. 27), ainda teve que ouvir insultos em seu próprio idioma: "Dentre todos os deuses das nações, quais os que livraram sua terra da minha mão?" (V. 35). 



Jones F. Mendonça

INDULGÊNCIAS

1. De modo geral não são mal compreendidas as críticas de Lutero às indulgências. Não é difícil encontrar gente dizendo que o monge agostiniano se impôs contra a “venda de terrenos no céu” ou que criticou uma doutrina católica que dava ao Papa o poder de perdoar pecados. Nada mais falso.

2. De acordo com a doutrina católica, as indulgências tinham o poder de perdoar as penas temporais e não os pecados. Explico. As penas temporais eram uma espécie de reparação pelo pecado exigida pela Igreja. Sempre que um fiel se sentisse arrependido pelo pecado (contrição) ele precisava declarar esse pecado ao padre (confissão auricular), que indicava uma tarefa que visava reparar a falta cometida (penitência). 

3. Ocorre que havia um entendimento de que essas penitências (e não os pecados, só perdoados por Deus) podiam ser apagadas pelo papa por meio das chamadas indulgências. Essa indulgência podia ser dada gratuitamente em uma data especial (chamadas de indulgências plenárias) ou por meio do pagamento em dinheiro. Bem, todos sabemos o que acontece quando o dinheiro monta no cavalo da fé... 

4. A igreja queria reformar a basílica de São Pedro e a grana forte arrecadada com indulgências apontou no horizonte como a melhor solução para transformar a basílica na imponente construção que é hoje. Lutero via tudo isso com desprezo e achava que o Papa não sabia desses abusos. Por conta de insatisfações como essa, o reformador escreveu suas famosas 95 teses contras as indulgências. Os teólogos dominicanos do Vaticano não gostaram. O Papa não gostou. E a gente sabe no que deu essa história. 


Jones F. Mendonça

MALAQUIAS E O DISCO SOLAR ALADO



1. Malaquias 4,2, na versão NVI, diz assim: “o sol da justiça se levantará trazendo cura em suas asas”. É muito tentador pensar que a imagem que se evoca é a do sol alado, símbolo usado por antigas potências, como o Egito, a Assíria, a Babilônia e a Pérsia. Esse tipo de representação era tão comum que aparece até mesmo no selo de Ezequias, encontrado em 2015 em Jerusalém (cf. imagem*). Mas será que o texto está mesmo fazendo alusão ao sol alado? Acho que não.

2. Fiz uma tradução bem literal do texto. Ficou assim: “Resplandecerá para vós, tementes de meu nome, o sol da justiça e a cura na sua ORLA/ASA...” (Mal 4,2). A questão talvez possa ser resolvida aqui: a palavra hebraica “canaph” pode ser traduzida tanto por “asa” como por “orla”. Estou mais inclinado a pensar que a ideia transmitida pelo texto é a de que o “sol da justiça” resplandece e “cura” através de seus raios (que saem de sua orla).  

3. Note que o v.1 ameaça os arrogantes com algo que “queima como um forno”. Diz ainda que eles “queimarão como palha” de forma que não lhes restará nem raiz nem ramo. No v. 2 esse calor, representado pelo “sol da justiça”, não queima os que "temem o seu nome", mas traz cura. E de onde sai essa cura? Ora, de “sua orla”, do calor que emana do disco solar e que alcança a terra. Não seria nenhum escândalo o profeta usar o símbolo solar com asas, mas parece que não é este o caso. 

4. É claro que sempre posso estar errado. 

*No selo vem escrito o seguinte: "Pertencente a Ezequias [filho de] Acaz, rei de Judá". O reino de Judá tornou-se vassalo da Assíria sob Acaz e seu filho Ezequias. 


Jones F. Mendonça

SOBRE PRESSUPOSTOS

“A fé cristã afirma a necessidade de abraçarmos, com todo nosso coração, certos pressupostos, que determinarão como interpretamos as Escrituras”[1]. 

Pergunta: de onde vêm os “pressupostos” de Ferreira? Obviamente não podem vir das Escrituras, porque determinam sua leitura. 

Por trás das peles, dos músculos, dos nervos, das tripas, o que a gente enxerga é a "boa" e velha teologia medieval. 

[1] FERREIRA, Franklin. Curso Vida Nova de teologia básica – Vol 7. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 20.


Jones F. Mendonça

ANACRONISMOS REFORMADOS

Embora se diga repetidamente que as “cinco solas” (Sola fide, Sola scriptura, Solus Christus, etc.) são os pilares da Reforma, não existe tal formulação assim, tão arrumadinha, entre os reformadores. Kevin Vanhoozer diz que as cinco declarações latinas só ganharam essa disposição no século XX.

Saiba mais:

VANHOOZER, Kevin J. Biblical Authority after: Retrieving the solas in the Spirit of Mere Protestant Christianity: Grand Rapids: Brazo, 2006, p. 26-27.

SOBRE TEOLOGIAS FRÁGEIS

1. Sofar de Naamat olhou para o Jó moribundo e disse assim: “Não sabes que o júbilo dos ímpios é efêmero e a alegria do malvado só dura um instante?” (20,4-5). E acrescentou, olhando de forma desdenhosa as feridas de Jó: “Esta é a sorte que Deus reservou ao ímpio” (v. 29). 

2. Desafiando a teologia da retribuição, segundo a qual o sofrimento só se explica como resultado de alguma falta, Jó respondeu: “Então por que os ímpios continuam a viver, e ao envelhecer se tornam ainda mais ricos?” (21,7). 

3. Jó padecia do corpo, mas não do cérebro



Jones F. Mendonça

sábado, 7 de novembro de 2020

WAYNE GRUDEM: "OS BENS SÃO PARA GLORIFICAR A DEUS" (SEI...)

“Tal sistema [o comunismo] é maligno porque permite às pessoas possuir apenas alguns bens e, dessa maneira, as impede de ter a oportunidade de glorificar a Deus pela posse de um bem, de uma casa ou de um negócio” (GRUDEM, Wayne. Negócios para a glória de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 21). 

O trecho “glorificar a Deus pela posse de um bem” e o próprio título do livro: "Negócios para a glória de Deus" foi um pouco demais pra mim... 


Jones F. Mendonça

REBECA NÃO CAI DO CAMELO

1. Investigo a hipótese de que Gn 24,64 descreva Rebeca “caindo do camelo” ao avistar Isaac, homem que lhe havia sido prometido em casamento. Seria aquele tipo de queda causada pela paixão à primeira vista. Será?

2. As versões traduzem o verbo “naphal” por “desceu”, “apeou”, ou “saltou” [do camelo]. De fato o verbo pode ser traduzido por “caiu”, como em Nm 14,32: “vosso cadáver cairá [naphal] neste deserto”. 

3. Mas o sentido primário do verbo não é exatamente “cair”. Uma análise atenta revela que sua função é indicar uma descida súbita [não voluntária ou voluntária]. José, por exemplo, “desce” [com sua cabeça] ao pescoço de Benjamim, para abraçá-lo (Gn 45,14). Uma tradução melhor seria “se lança”. 

4. Eu poderia citar muitos outros exemplos. 2Rs 5,21 expõe um caso muito parecido com Gn 24,64 (Rebeca/Isaac). O texto apresenta Naamã “saltando/se lançando do carro” para encontrar Geazi, que o persegue. Não há qualquer indício, no texto, de que tenha “caído do carro” (2 Rs 5,21). 

5. Minha opinião: na verdade Rebeca não “cai” do camelo (até porque ela se feriria). O texto usa o verbo “naphal” para destacar sua descida súbita. Ela estava ansiosa para conhecer seu pretendente. Assim que tem certeza de que é a pessoa certa, Rebeca coloca o véu (v. 65) e entra com ele numa tenta (v. 67). 

6. Acho que não é preciso dizer o que eles fizeram lá dentro... 


Jones F. Mendonça 

LUTHER KING: LA FUERZA DE AMAR

Leio “La fuerza de amor” (“A força do amor”), obra de Martin Luther King publicada em 1963. O capítulo 12 fala da relação entre comunismo e cristianismo. Apesar de criticar o comunismo por uma série de razões – sobretudo por sua negação a Deus – o pastor batista pontua alguns elementos positivos de sua formulação teórica, que “prevê uma sociedade mundial que transcende as superficialidades de raça, cor, classe e casta”. Em seguida faz uma crítica à igreja de seu tempo:
O colonialismo não teria se perpetuado se a Igreja Cristã o tivesse confrontado diretamente. Um dos defensores do sistema vicioso de apartheid na África do Sul é atualmente a Igreja Reformada Protestante Holandesa [1]. 
[1] KING, Luther. La fuerza de amar. Madrid: Acción Cultural Cristiana, 1999, p. 113. 



Jones F. Mendonça

LUTHER KING E A TEOLOGIA LIBERAL

1. Luther King foi criado num ambiente de tradição fundamentalista. Em certo momento de sua vida despertou de seu “sonolento dogmatismo” após iniciar uma “viagem intelectual estimulante”. Leu obras escritas por teólogos liberais; examinou com atenção a produção teológica da neo-ortodoxia. Foi uma jornada frutífera. Chegou a algumas conclusões.

2. Achou que os teólogos liberais eram demasiadamente otimistas em relação à natureza humana. Ao mesmo tempo percebeu que a neo-ortodoxia apresentava uma percepção excessivamente pessimista dessa mesma natureza (absolutamente decaída). Então teve contato com o trabalho de Kierkegaard e de Nietzsche. Depois leu Jaspers, Heidegger e Sartre. Finalmente acabou tendo contato com Paul Tillich. O pastor batista sorriu. 

3. Hoje Luther King seria chamado por essa galera da “Coalizão pelo Evangelho” (TGC) de “teólogo liberal”, dada sua afinidade com o existencialismo e com a teologia de Paul Tillich. Ainda estão engatinhando no fundamentalismo que sufocava Luther King e que não lhe dava instrumentos para lutar pelas causas que tanto o incomodavam. 

4. Você pode ler a história dessa trajetória intelectual de Luther King em “La fuerza de amar” (Acción Cultural Cristiana, 1999, p. 151-153). 


Jones F. Mendonça 

SOFONIAS E AMÓS: ORÁCULOS INVERTIDOS

Uma das maiores desgraças que poderiam se abater sobre civilizações agrárias do Antigo Mediterrâneo Oriental – como no Antigo Israel – era plantar e não poder colher, construir uma casa e não poder morar nela.

Esse tipo de infortúnio geralmente acontecia nos períodos de guerra, sobretudo quando os inimigos eram potências como o Egito, a Assíria e a Babilônia. Repare que o oráculo de salvação presente em Amós é justamente o inverso do oráculo de juízo de Sofonias
Eles construíram casas, mas NÃO as habitarão, 
Plantaram vinhas, mas NÃO beberão do seu vinho” (Sf 1,13). 

RECONSTRUIRÃO as cidades devastadas e as habitarão, 
Plantarão vinhas e BEBERÃO o seu vinho (Am 9,14).
Em Sofonias a imagem aparece como desgraça. Em Amós como salvação. Ao que parece, Amós (ou melhor, o "acréscimo a Amós") inverteu um dito profético de juízo mais antigo (veja ainda Am 5,11; Dt 28,39). 



Jones F. Mendonça

BRUXAS, INQUISIÇÃO E MISOGINIA


Quem estiver interessado no modo como as bruxas eram vistas nos séculos XV e XVI pode começar por duas obras: “Malleus Maleficarum” (um manual medieval da Inquisição) e “De la démonomanie des sorciers” (um compêndio antibruxaria). O segundo foi escrito por Jean Bodin (1529-1595), catedrático de Direito Romano na Universidade de Toulouse. Eis uma pequena fala dele: 
Seja qual for o castigo que ordenemos contra as bruxas, assá-las ou cozê-las ao fogo lento não é realmente demais e não tão ruim quanto [...] as agonias eternas que lhes estão preparadas no inferno, porque o fogo aqui não pode demorar muito mais do que ao redor de uma hora até que a bruxa morra (BODIN, Jean. On Demon-mania of witches. Toronto: CRRS publications, 2001, p.173). 
Todo esse ódio certamente não vinha do medo da bruxaria ou da zelosa piedade, mas da misoginia, de certa repulsa pelas mulheres, as maiores vítimas da inquisição. E por trás dessa perseguição certamente havia uma sexualidade muitíssimo reprimida. 



Jones F. Mendonça