sexta-feira, 30 de outubro de 2015

REFORMA E ARTE CRISTÃ

A relação dos primeiros reformadores com obras de arte religiosa não foi boa. Para Karlstadt os “ídolos de óleo” seriam “invenção do demônio”. Zwinglio, querendo purificar as igrejas, baniu delas os órgãos e os corais. Lutero teve uma posição mais cautelosa: 
Os homens podem sucumbir diante do vinho e das mulheres. Vamos então proibir vinho e abolir as mulheres? O sol, a lua e as estrelas foram adorados. Vamos então arrancá-los do céu?.
Reconhecendo o valor didático das imagens, Lutero encomendou esta tela (“Lei e graça”) a seu amigo Lucas Cranach, em 1529:



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

BOBINHO E AS JAULAS MEDIEVAIS

Zé Bobinho vai ao cinema ver “Noé” e “Moisés” pensando que lá estarão Lagoinha cantando aos prantos e Malafaia pregando aos berros. Trata-se apenas de um filme, mas ele pensa que é culto. Irrita-se porque a arca não tem as medidas do Gênesis e Moisés não é gago como nas linhas da Torá. Imagina que é evangelismo, mas é apenas “película do capital” em 3D.

No final de semana foi fazer prova do ENEM. Pensava encontrar citações de São Paulo e dos Evangelhos, como se o exame fosse classe de catecúmenos, primeira comunhão ou profissão de fé. Bobinho não se dá conta de que já saímos do medievo, que universidade não é catedral, que a ciência não é mais serva da religião. Quer jogar dados medievais no tabuleiro da modernidade.

Com saudade de chãos mais sólidos e castelos menos fluidos, Bobinho tem revelado certa simpatia por movimentos radicais, autoritários, misóginos, xenofóbicos e até mesmo violentos. Revela-se disposto a trocar liberdade por segurança, asas por clausuras coletivas. Mostra-se incapaz de articular sua fé no confuso movimento de “sacralização do profano” e “profanação do sagrado”.

Haverá esperança para Bobinho?



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

ENEM SOB CENSURA

Ano de 2016. Os responsáveis pela elaboração das provas do ENEM encontram-se diante de um grave dilema. Sentem-se desconfortáveis em inserir citações de Karl Marx nas provas após os protestos nas redes sociais. Tudo porque o filósofo teria traído sua esposa com a empregada, vivido às custas de um burguês e perdido três de seus filhos para o suicídio. Deram-se conta de que boa parte do povo não consegue distinguir a vida acadêmica da vida pessoal. Uma pena.

Depois dos protestos de Bolsonaro e Feliciano, a filósofa francesa Simone de Beauvoir também acabou banida. Em sua ficha constam muitas imoralidades, tal como o triângulo amoroso com Sartre e Olga Kosakiewicz. Simone também é acusada de delitos graves como roer unhas, faltar às missas e, o pior: só tomar banho aos sábados. Um absurdo!

Após pequeno burburinho alguém sugeriu o nome de Martinho Lutero, mas foi imediatamente advertido de que - apesar de sua posição firme (e até “virtuosamente violenta”) contra os camponeses insurgentes de 1524 – o reformador foi um rebelde! Sua ousadia ao desafiar o papa, maior autoridade religiosa da época, pode ser um estímulo à indisciplina dos jovens. Há ainda aquele texto de 1543 incentivando a queima de sinagogas... “Um perigo esse Lutero!”, gritariam os fundamentalistas milenaristas pró-Israel.

Um jovem professor negro anunciou com entusiasmo o nome de Luther King. A indicação, infelizmente, logo perdeu força. Gravações feitas pelo FBI – explicou um jovem doutor - revelaram que o líder batista teve amantes. Além do mais, como Lutero, pode ser visto como má influência para a juventude, pois sua trajetória é marcada pela rebelião contra as leis do Estado.

Um professor de cabelos grisalhos propôs um personagem que teria uma ficha totalmente limpa: Jesus Cristo. Mas o nome também trazia problemas. Sua mãe casou-se grávida (Jesus não se enquadra no padrão familiar proposto pela bancada evangélica, já que teve pai ilegítimo), andava na companhia de gente considerada a “escória da sociedade” (como os sírios e haitianos de Bolsonaro) e foi definido como subversivo pelas autoridades religiosas (“subversivo” não é adjetivo adequado às pessoas de boa família). Para piorar, é bem conhecida sua condenação num tribunal presidido por Pôncio Pilatos, autoridade divinamente constituída.

O ENEM 2016 acabou cancelado por falta de santos.


Jones F. Mendonça

ÉDEM PERDIDO

"Bom era no meu tempo", frase que já era repetida no Antigo Egito, anunciada aos filhos em Persépolis, recitada aos jovens em Roma, proclamada aos mancebos do século XXI.


Utopia do pretérito perfeito.


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

CANTARES E OS JARDINS DE ENGADI

O livro bíblico de Cantares, com sua descrição calorosa da relação carnal entre um homem (Sholomoh?) e uma mulher (Shulamit), sempre foi visto com reservas pelos doutores do judaísmo e do cristianismo. Não foram poucas as tentativas feitas para suprimir o embaraço despertado por sua leitura.  

O rabino medieval Rabi Shlomo Yitzaki (1040-1105), por exemplo, interpretou o saquinho de mirra entre os seios de Sulamita (Ct 1,13), como sendo uma alusão à shekhinah (presença) de Deus entre os querubins da arca da aliança. Trocando em miúdos: o saquinho de mirra representaria a presença de Deus e os seios os dois querubins.

Para Cirilo de Alexandria (378-444 d.C.), os seios representam, respectivamente, o Antigo e o Novo Testamento, entre os quais está Cristo. Justo de Urgel, bispo de Valencia (século VI), identificou os seios com os doutos professores da igreja (!), e o pseudo-Cassiodoro pensou que o versículo se refere à crucificação de Cristo, que é mantido em eterna lembrança entre os seios do crente (!). Será?

Bem, deixemos de lado as leituras alegóricas e atentemos para um detalhe: no v. 13 o amado é comparado a um saquinho de mirra junto ao corpo da mulher: “entre seus seios”. Seria de se esperar que o “cacho de cipro florido” (nova metáfora para o amado, v. 14), fosse situado em outra parte do corpo da mulher, mas o ele é colocado “entre os [ou nos] jardins de Engadi”, um oásis nas proximidades do Mar Morto.

Então talvez os “jardins” não sejam exatamente jardins...


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

SOBRE ALEGORIAS E CRÍTICAS TEXTUAIS MEDIEVAIS

O professor Joy Schroeder passa boa parte do seu tempo livre em cafés, traduzindo comentários bíblicos medievais do latim para o inglês. Alguns dos comentários mais curiosos destacados pelo professor podem ser lidos num artigo publicado no The Bible and Interpretation.

Chamou minha atenção uma interpretação alegórica antijudaica feita pelo monge místico medieval Rupert de Deutz (c. 1075 – c. 1129) a respeito do corvo enviado para fora da arca por Noé (para ele o corvo representa os judeus!?) e alguns ensaios de crítica textual (costuras, variações estilísticas, contradições aparentes, e discrepâncias verbais).

O link já traduzido aqui.

Jones F. Mendonça

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

JOHN WYCLIF: SEXO, RELIGIÃO E POLÍTICA

No século XIV, diante do desejo de não mais recolher tributos ao papa, um teólogo inglês chamado John Wyclif foi contratado pelo rei João de Gante como “peculiares regis clericus” (clérico a serviço especial do rei) a fim de preparar uma defesa contra o envio dos tributos. Com muita astúcia, Wyclif saiu-se com essa: 
O papa não pode pedir este tesouro a não ser por meio de esmolas... Uma vez que toda a caridade principia em casa, seria obra não de caridade, e sim de loucura canalizar as esmolas do reino para o exterior [nessa época o papa residia na França, inimiga da Inglaterra] quando o próprio reino está necessitado delas.
Vendo-se sem saída diante da recusa da Igreja em atender ao pedido, Wyclif recomendou a independência da Inglaterra. Sua proposta soou tão escandalosa à época que os conselheiros do rei recomendaram que não mais fizesse declarações sobre o assunto. Mas as sementes de suas ideias brotaram e fincaram raízes.

Cerca de duzentos anos depois, aproveitando-se do êxito da reforma de Lutero, um rei  levou a cabo a proposta de Wycliff. Henrique VIII confiscou os bens da igreja, casou-se de novo (ignorando recomendações do papa) e criou seu próprio clero. E foi assim que nasceu a igreja anglicana.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 6 de outubro de 2015

LEGEM MOSI

Por fim o Nazareno diz à multidão enquanto risca a terra com o dedo: “aquele que não tem pecado atire a primeira pedra”. E então Zé Bobinho, filho de Bar Hanan, grita lá do fundo: “vai defender bandida, né, Jesus!”

Saindo dali Bobinho fez discípulos que até hoje vivem entre nós (dizem que Bobinho fez mais discípulos que o próprio Jesus).



Jones F. Mendonça

PIA DESIDERIA, DESIDERIA CARNIS

Passa da terceira hora e os santos de Jerusalém descem a Jericó. No caminho, ferido ao chão, jaz um viajante estrangeiro sírio-fenício fugindo da calamidade que assola sua terra. Um estimado sacerdote, guardião da moral e dos bons costumes, passa ao longe e resmunga com desdém: “Escória da sociedade! Que a salvação e o divino auxílio escondam de ti o rosto”.

Em seguida, assobiando deslumbrante canção e exibindo alvas vestes, surge um levita servidor do templo. Ao confundir o agonizante estrangeiro com um assaltante do deserto, o levita profere esta atroz maldição inspirada no Deuteronômio: “Deus te fira com a loucura, a cegueira e a demência. Que a desgraça te alcance como espetáculo aos teus olhos” (Dt 28,28.34). E finaliza: “bandoleiro bom é bandoleiro morto”.

Parece uma história de 2000 anos, mas foi ontem, é hoje, será amanhã. Sempre em nome da santa piedade e dos mais elevados valores da religião. 



Jones F. Mendonça

sábado, 3 de outubro de 2015

JESUS EM CINCO FASES (FASE III)

Falei aqui e aqui a respeito da primeira e da segunda fase da pesquisa sobre o Jesus histórico a partir da proposta de Gerd Theissen (a pronúncia é "Guertáissen"), que divide a pesquisa em cinco fases (“O Jesus histórico, um manual”, Loyola, 2004, 651 páginas). No post de hoje falarei um pouco sobre a terceira fase.

O otimismo em reconstruir a personalidade legitimadora de Jesus e de sua história, marca da segunda fase, deu lugar ao que Theissen chama de “colapso da pesquisa sobre a vida de Jesus” (p. 24). O autor apresenta três estudiosos que contribuíram para o fim desse otimismo:

1. Albert Schweitzer (1875-1965), teólogo e médico que deu nome a um conhecido hospital no Rio de Janeiro, desvelou o “caráter projetivo das imagens das vidas de Jesus”, demonstrando que cada imagem do Jesus da teologia liberal revelava não sua face genuína, mas um ideal ético considerado mais digno de almejar (leia aqui a obra "The quest of historical Jesus", escrita por Schweitzer).

2. Wilhelm Wrede (1856-1906), em sua obra “O segredo messiânico e o Evangelho de Marcos” (1901), apontou o caráter tendencioso das fontes mais antigas existentes sobre a vida de Jesus. Para ele o Evangelho de Marcos seria expressão da dogmática da comunidade pós-pascal projetada sobre a vida intrinsecamente não-messiânica de Jesus (as fontes teriam interesse teológico e catequético). O “segredo messiânico” (cf. 1,34; 1,44; 3,12; 5,43; 7,36; 8,26) seria um recurso literário de Marcos com o objetivo de explicar à comunidade cristã primitiva por que Jesus só foi reconhecido como messias após sua crucificação. Com isso desaba a confiança na possibilidade de distinguir a partir de duas fontes entre a história de Jesus e a imagem do Cristo pós-pascal (leia uma crítica à teoria de Wrede aqui).

3. Karl Ludwig Schmidt (1891-1956) demonstrou o “caráter fragmentário dos evangelhos” ao argumentar que a tradição de Jesus consiste em “pequenas unidades” e que o quadro cronológico e geográfico “da história de Jesus” foi criado secundariamente pelo evangelista Marcos. Dessa forma a busca pela reconstrução da personalidade de Jesus a partir da sequência das perícopes revelou-se impossível. Mesmo as pequenas unidades, apontava a história das formas, são determinadas primariamente por necessidades da comunidade e apenas em segundo plano por recordações históricas.

Uma solução para o pessimismo quanto à possiblidade de reconstruir a figura de Jesus, sem que isso comprometesse os dogmas de fé centrais do cristianismo, foi apresentado por Rudolf Bultmann (1884-1976). Na opinião de Bultmann, mais importante exegeta da teologia dialética, o fator decisivo não era o que Jesus havia feito e dito, mas o que Deus tinha feito e dito na cruz e na ressurreição. A mensagem dessa ação de Deus, o “querigma” neotestamentário, não tem por objeto o Jesus histórico, mas o “Cristo querigmático”, ou seja, o Cristo anunciado pela igreja cristã primitiva.   



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

JAVÉ E OS DRAGÕES

Quando um fiel inserido no ambiente judaico cristão quer ler o relato de como mundo se formou certamente abrirá sua Bíblia nos primeiros capítulos do Gênesis. Em Gn 1,1-2,4a lerá o relato que destaca a criação do universo (cosmogonia) e em Gn 2,4b-25 outro relato destacando a criação do homem e da mulher (antropogonia). Mas estes não são os únicos relatos da criação presentes na Bíblia hebraica.

Salmos, Isaías e Jó contém resquícios de relatos da criação conhecidos pelos hebreus antes da redação do Gênesis, oriundos do ambiente cananeu. Vejamos: 
Sl 74,12-17 Tu porém, ó Elohim, [...] 13 dividiste o mar com teu poder, quebraste as cabeças dos monstros das águas; 14 tu esmagaste as cabeças do Leviatã dando-o como alimento às feras selvagens; 15 Tu abriste fontes e torrentes, tu fizeste secar rios inesgotáveis; 16 o dia te pertence, e a noite é tua, tu firmaste a luz e o sol, 17 tu puseste todos os limites da terra, tu formaste o verão e o inverno.
Textos descobertos no século XX em Ugarit, Síria, revelaram que este texto do Salmo é um resumo de um mito da criação cananeu que descreve Baal, deus da tempestade, derrotando Yam, o deus do mar e seus ajudantes.

Em Is 27,1 e Jó 26,12-13 a luta entre o deus de Israel e os monstros mitológicos (“Leviatan, serpente escorregadia”; “Leviatan, serpente tortuosa”, o “Monstro que habita o mar”, “Rahav” e “Yam”) inquietam leitores desavisados:

Is 27,1 Naquele dia, punirá Javé, com a sua espada dura, grande e forte, a Leviatã, serpente escorregadia (Leviatan nahash bariah), a Leviatã, serpente tortuosa (Leviatan nahash aqalaton), e matará o monstro que habita o mar (hataniyn ’asher bayam). 
Jó  26,12-13 Com seu poder aquietou o Mar (Yam), com sua destreza aniquilou Rahav. 13 O seu sopro clareou os Céus e sua mão traspassou a Serpente escorregadia (nahash bariah).
Descrições semelhantes podem ser encontradas nos mitos ugaríticos: 
Quando você matou Litan, a serpente fugitiva, aniquilou a serpente sinuosa, o potentado de sete cabeças (SMITH, Mark S. The origins of monotheism, p. 33).
O relato de Gênesis, ao invés de se inspirar no mito cananeu, busca na Mesopotâmia elementos para a elaboração de seu relato da criação. O redator israelita atua como uma espécie de C. S Lewis, usando mitologia estrangeira para incutir teologia israelita na mente do povo (C. S. Lewis usou mitologia nórdica em seu “As crônicas de Nárnia” para incutir teologia cristã).

A luta entre divindades e monstros não se restringe aos cananeus (Baal versus serpentes marinhas) ou babilônios (Marduk versus Tiamat). Na mitologia grega, Zeus mata Typhon; na mitologia nórdica Thor mata Jörmungandr; na mitologia hindu, Indra mata Vrtra; na mitologia eslava, Perun mata Veles; e na mitologia hitita; Tarhunt mata Illuyanka.

Até hoje a luta entre heróis e monstros poderosos que ameaçam a ordem fazem sucesso hipnotizando multidões. O tema é muito bem explorado, por exemplo, nas trilogias de J. R. R. Tolkien (“O senhor dos anéis” e “Hobbit”). Quem não se lembra da batalha travada entre o mago Gandalf e o demônio Balrog na ponte Khazad dûn? Ou do confronto entre Bard e o dragão Smaug, morto com uma flecha negra após um certeiro disparo feito de uma torre prestes a ruir?



Jones F. Mendonça