sexta-feira, 8 de março de 2024

LUTERO, BEAUVOIR E OS BEBÊS


1. Quando Lutero diz, em suas Preleções sobre o Gênesis, que a mulher possui uma habilidade especial para acalentar bebês, em contraste com o homem, inapto para a tarefa, está naturalizando algo que é aprendido, e não implantado no DNA da fêmea.

2. Em "O segundo sexo", ao declarar que "ninguém nasce mulher, torna-se mulher", Simone de Beauvoir está dizendo exatamente isso: ser fêmea é algo dado pela natureza, ser "mulher" é uma construção social.

3. Assim, quando alguém diz: "isso não é coisa de mulher", está dizendo, "isso não é coisa que a sociedade [patriarcal] consolidou como papel reservado à fêmea". Mas Beauvoir não é tonta a ponto de dizer que tudo é construção social.

4. Quem faz isso é a chamada "esquerda identitária", que nada tem a ver com Marx ou com o socialismo. A direita conservadora, por outro lado, milita pela naturalização daquilo que é construído. Como se os edifícios dos costumes tivessem caído do céu.


Jones F. Memdonça

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

SOBRE GUERRAS E VERMES QUE NUNCA MORREM


1. Até onde pude constatar, a crença no cumprimento literal das profecias do Antigo Testamento relacionadas ao retorno dos judeus à terra prometida remonta ao século XVIII. Nasceu em ambiente puritano, grupo de fiéis fervorosos que se desvincularam da Igreja Anglicana. No século XIX, precisamente em 1844, George Bush, avô presbiteriano do ex-presidente dos Estados Unidos, escreveu “The Valley of Vision; or, The Dry Bones of Israel Revived”, livro que pregava, assim como os puritanos, o restauracionismo.

2. No ambiente cristão, até então, imaginava-se que as profecias relacionadas à restauração de “Israel” (ou melhor, de Judá/Jerusalém) já haviam sido cumpridas no século VI a.C., concretizadas após o Edito de Ciro, rei persa mencionado no livro do profeta Isaías (44,28):
Digo a Ciro: "Meu pastor".
Ele cumprirá toda a minha vontade,
dizendo a Jerusalém: "Tu serás reconstruída",
e ao Templo: "Tu serás restabelecido”.
3. De fato, Jerusalém e seu templo foram reconstruídos. No tempo de Jesus o santuário ainda estava de pé e os judeus viviam na Palestina tal como declaravam as antigas promessas. Além disso, as profecias messiânicas foram projetadas em Jesus, reconhecido como sendo “da linhagem de Davi” (Is 1,1; Mt 1,1). E como sua missão foi ressignificada, percebida por seus seguidores como estando relacionada à salvação “dos pecados” e não mais à salvação “dos impérios hostis” (Lc 24, 21.47), tudo parecia cumprido, restando apenas o juízo final, a ressurreição do corpo e o triunfo do reino sem males.

4. No primeiro século os judeus ainda estavam reunidos, ainda ocupavam a terra de seus ancestrais e já possuíam – na perspectiva cristã – um rei “da linhagem de Davi”. Na expectativa de Paulo, por exemplo, só restava aguardar o retorno, a parousia de Cristo. Por isso ele diz aos Tessalonissenses: “nós... os que estivermos vivos, seremos arrebatados como ele” (1Ts 4,17). O texto revela com muita clareza que Paulo cultivava forte expectativa pela iminência do retorno de Cristo, ainda enquanto estivesse vivo. Na Segunda Carta, mais maduro, ele recua e pede paciência (2Ts 2,2).

5. Ocorre que no ano 70 Jerusalém foi destruída pelo exército romano. No início do segundo século, após nova revolta judaica, os judeus foram expulsos de Jerusalém sob o governo do imperador Adriano. Diante disso, o cumprimento literal e definitivo das Escrituras – posse da terra, reino terreno sob o governo de Cristo, paz definitiva em Jerusalém – foi projetado para o futuro, para o milênio. E assim nasceu o restauracionismo. E assim foi gerado o dispensacionalismo (John Nelson Darby e Cyrus Ingerson Scofield), roteiro hollywoodyano de mau gosto criado no século XIX.

6. No século XXI, em um mundo ainda assolado por tantas guerras cruéis, o dispensacionalismo permanece sendo usado para legitimar crimes de guerra, deportações forçadas, roubo de terras, violação de sepulturas e santuários, fraldas manchadas de sangue e tripas suspensas no varal. É política travestida de piedade. Crueldade sob o manto da Cruz. Crenças ruins são como o verme do Evangelho de Marcos: ardem nas chamas, mas nunca morrem (Mc 9,48).



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

O CARNAVAL DE IVETE E O ARMAGEDOM


1. Desde que Cristo deixou fisicamente a terra, diversas questões passaram a ocupar a mente daqueles que se reuniam em seu nome. Duas delas aparecem relacionadas: 1) Qual a razão de sua morte? (Lc 24,20-21), 2) Quando e como voltará? (1Ts 4,13-18). Na tentativa de expor em detalhes a questão n° 2, teólogos das mais diversas épocas se debruçaram sobre livros como Ezequiel, Daniel, Mateus, Tessalonicenses e, obviamente, o Apocalipse.

2. A explicação mais criativa, fantástica e popular é o dispensacionalismo. De acordo com essa visão, um dos mais evidentes sinais de que o mundo caminha para um colapso final é o chamado ARREBATAMENTO: cristãos piedosos de diversas partes do mundo desaparecerão de forma abrupta, resgatados por Cristo, inaugurando na terra um período de sete anos de extrema angústia: a terrível e temida GRANDE TRIBULAÇÃO.

3. No final desses sete anos Jerusalém estará cercada pelos exércitos de Gog e Magog, desencadeando a não menos dramática GUERRA DO ARMAGEDOM. Mas Jerusalém sairá ilesa graças à interferência de Cristo, que sairá em auxílio da Cidade Santa e derrotará o malvado ANTICRISTO. Sentado em um trono, com coroa e tudo, Cristo reinará em Jerusalém por mil anos e a terra experimentará fartura e prosperidade. Tudo perfeito, como naquelas ilustrações das Testemunhas de Jeová.

4. Mas... como nos filmes da Marvel, é preciso estar atento às cenas pós-crédito. Inesperadamente, para surpresa dos telespectadores, ou melhor, dos sobreviventes do Armagedom, no ano 1000 o Capiroto lançará seu último bote. Ocorre que o roteiro foi tornado público (tem spoiler), então todos sabem que o Zarapelho será derrotado e lançado definitivamente no lago de fogo ardente juntamente com a Besta e o Falso Profeta (Ap 20,10).

5. Bem, com essa coisa de guerra entre Israel e Hamas, conflito na Ucrânia, Houthis no Yêmen, China ameaçando Taiwan e alertas sobre os perigos da inteligência artificial, os dispensacionalistas estão em polvorosa. Em pleno festejo de carnaval, Baby do Brasil disparou: “o arrebatamento tem tudo para acontecer entre cinco e dez anos” (Puxa, assim tão rápido nem vou conseguir comprar meu primeiro carro elétrico).

6. Mas nem tudo está perdido. Ivete, que não leva desaforo pra casa, disse que vai macetar o Apocalipse. Se entendi bem, a moça vai pedir uma prorrogação de prazo ao Altíssimo.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

GUARATIBA ESTÁ QUEIMANDO, O MUNDO ESTÁ FERVENDO

Praia da  Marambaia, Rio de Janeiro
Praia da Marambaia, Guaratiba, RJ

1. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em fevereiro de 2022, jornais “ocidentais” e os “não ocidentais” divulgavam informações bem diferentes a respeito do andamento do conflito. Em nome da verdade, teve até boicote aos canais de notícias russos, como o Russia Today e o Sputnik, bloqueados no Facebook e no YouTube por supostamente divulgarem informações falsas.

2. Enquanto isso, nos jornais ditos “ocidentais”, comprometidos com “a verdade”, líamos coisas como “Putim sofre com um câncer em estágio terminal, dizem fontes”, ou “soldados russos sequer possuem botas para o combate”. Falava-se ainda a respeito de falta de munição, incompetência de generais, armas obsoletas, canibalismo russo no campo de guerra e outras bobagens.

3. Na prática todos sabemos que a Rússia está vencendo a guerra. As sanções não funcionaram. A ajuda militar oferecida pelos membros da OTAN foi insuficiente. A ordem de prisão emitida pelo TPI contra Putin ficou só no papel. O confisco de ativos russos não surtiu o efeito desejado. Nada parece deter o líder russo em seu obstinado avanço em direção à Ucrânia (e à Europa?).

4. O eixo que conhecemos como “Ocidente”, formado pela Europa Ocidental e pelos Estados Unidos, parece desorientado. Sem Ângela Merkel a Europa perdeu força e lucidez. Os Estados Unidos precisam escolher entre um Biden patético e um Trump canalha. No meio de toda essa balbúrdia, ainda temos o conflito entre Israel x Hamas que a cada dia ganha novos atores.

5. Acha que paramos por aí? Boa parte dos analistas acredita que mais cedo ou mais tarde haverá guerra entre os Estados Unidos e a China pela disputa por Taiwan. A vitória de Lai Ching-te nas urnas – um candidato pró-independência – tornou esse conflito mais provável e mais iminente. Fora as tensões políticas, ainda sofremos com os efeitos das mudanças climáticas (em Guaratiba, onde trabalho, a sensação térmica é de 60 graus!).

6. A gente não precisa ser tão pessimista (como o chato do Pondé), mas com um cenário como este – o do mundo, não o da foto de Guaratiba – dá pra ser otimista?


Jones F. Mendonça

DOUGLAS WILSON E A ESCRAVIDÃO NO SUL DOS EUA


1. Ganhou grande repercussão na mídia o convite feito ao teólogo reformado Douglas Wilson para participar como palestrante em um evento organizado pela Consciência Cristã. O motivo do estranhamento: Douglas Wilson seria um defensor da escravidão, desde que seja feita "de acordo com padrões bíblicos".

2. Como não tenho o costume de acolher acriticamente informações vindas de segunda mão, fui consultar "Southern Slavery: as it was" (Escravidão no Sul: como era"), escrita pelo referido teólogo. Na página 8 você lê o seguinte: "A verdade é que a escravatura no Sul está sujeita a críticas porque não seguiu o padrão bíblico em todos os pontos”.

3. Parei por aí...


Jones F. Mendonça

"CONTRA A TEOLOGIA LIBERAL", DE ROGER OLSON


1. Em dezembro do ano passado foi publicado em português “Contra a teologia liberal”, escrito por Roger Olson, teólogo batista conhecido por publicações relacionadas à história da teologia cristã. Não julgue o livro pelo título [apologético], ou pela editora [pobre em produções teológicas mais densas]. Nem de longe as críticas de Olson à teologia liberal lembram os ataques acalorados, imprecisos e intelectualmente desonestos feitos por apologetas despraparados que se multiplicam em canais do YouTube. 

2. Embora trate com respeito amigos que simpatizam com a teologia liberal, Olson considera problemáticos alguns pontos defendidos por teólogos liberais mais radicais, tais como a negação da inspiração das Escrituras, da ressurreição física de Jesus ou da realidade histórica de seus milagres. Assim, defende que os liberais não devem ser considerados verdadeiros cristãos, uma vez que rompem com dogmas formulados nos primeiros séculos e aceitos tanto por católicos como protestantes. Faz uma avaliação [quase] estritamente técnica.

3. O autor reconhece neles verdadeira piedade, verdadeiro entusiasmo religioso, além das mais elevadas intenções. Mas enfatiza que o liberalismo teológico se distanciou da ortodoxia cristã tanto quanto o cristianismo se distanciou do judaísmo. Enfim, fez nascer uma religião nova, diferente, distinta do seu tronco de origem. Olson faz uma ressalva importante logo no início do livro: “não seja tonto, liberalismo teológico é uma coisa, progressismo teológico é outra totalmente diferente”. É claro que ele não usa essas palavras, mas eu uso. E repito: “não seja tonto”.

4. Além dos livros assinados por Olson, duas obras de peso sobre a teologia do século XX (ao contrário de Olson, meramente descritivas, evitam fazer juízo de valor) são "Deus na filosofia do século XX" e "Teologia do século XX", escritos por Rosino Gibellini.



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

A APOSTASIA, O AMOR E A DOR EM AGOSTINHO DE HIPONA


1. Um provérbio popular muito repetido no universo evangélico é “se [a conversão religiosa] não for pelo amor, será pela dor”. Mas de onde veio esta sentença? Minha hipótese é que nasceu a partir da leitura um tanto quanto livre do livro bíblico de Provérbios feita por Agostinho de Hipona, teólogo e filósofo do V século.

2. Atormentado pela insubmissão dos donatistas, grupo cristão cujas doutrinas foram consideradas cismáticas e heréticas, Agostinho entendeu que era preciso tomar medidas mais duras a fim de preservar a comunhão e o respeito às lei imperiais. Em uma carta endereçada a Bonifácio, o teólogo africano saiu-se com essa:
3. A inspiração vem de Pv 23,14: “Quanto a ti, deves bater-lhe com a vara, para salvar-lhe a vida do inferno”[1]. (Na vulgata: tu virga percuties eum et animam eius de inferno liberabis). Mas na verdade o texto hebraico não fala de “inferno”, nem tem como objetivo dirigir-se àqueles que se distanciaram da “reta doutrina”.

4. O texto de provérbios é dirigido aos “meninos” (na’ar), instruídos na arte da sabedoria, dos bons modos e dos bons pensamentos. A "vara" era um instrumento antigo de educação. A violência como forma de disciplina também era praticada pelos mestres da Babilônia, que recorriam ao método com a finalidade de corrigir seus discípulos.

Nota: [1] No texto hebraico “sheol” é mundo dos mortos e não inferno. A mensagem do provérbio é clara: “a vara não mata” (v. 13), mas, pelo contrário, “livra a néfesh (=vida) do sheol” (=da morte, cf. v. 14)”. Trocando em miúdos: “a vara da disciplina fere a carne, mas livra da morte"


Jones F. Mendonça

domingo, 14 de janeiro de 2024

DEUS LÍQUIDO


Arte: Robert Crumb

1. Por mais de mil anos os dogmas cristãos mantiveram-se sob o controle da Igreja com grilhões de ferro. Mas desde que Lutero ganhou projeção ao questionar a autoridade do Papa e da tradição em textos produzidos a partir da segunda década do século XVI, os dogmas cristãos formam enfraquecendo em proveito de crenças mais pessoais, “à la carte”. A reforma herdou o individualismo humanista renascentista.

2. É verdade que os dogmas mais elementares, como a trindade, o nascimento virginal, a ressurreição e a parousia de Cristo ainda são compartilhados pela esmagadora maioria dos diversos segmentos cristãos em atividade (ao menos no papel). Mas todas essas crenças, outrora percebidas como fundamentais, têm sido realmente relevantes nos sermões e na piedade individual e coletiva?

3. A cada alvorada, a cada gota de orvalho que seca sob os primeiros raios de sol, uma nova igreja cristã dá seus primeiros sinais de vida. Seus discursos são muitas vezes contraditórios, assim como seus padrões de moral, suas liturgias, suas crenças e até suas posições políticas. Há o evangelho coach, da prosperidade, da confissão positiva, da reta doutrina, da esquerda, da direita, da ação social, do êxtase, da cura, da ladainha sem fim.

4. Em um mundo que se dissolve em meio a tantas crenças como caramujo ao sal, cientistas da religião têm refletido a respeito do papel desempenhado pela religião na sociedade contemporânea. Como ela dialoga com a política, com a arte, com as relações de consumo, com a diversidade cultural, com as demais religiões? Como dialogará com a inteligência artificial, com um eventual prolongamento extraordinário da vida humana?

5. Não há respostas fáceis ou definitivas. Certo mesmo é que atualmente a religião ainda está viva nos monumentos, nos nomes de batismo, no discurso político, nos ritos fúnebres, na conversa barata da esquina, no tropel ofegante dos pregadores televisivos. Mas todas essas manifestações expressam a face de um mesmo Deus? Nietzsche estava errado: Deus não morreu. Deus se dissolveu.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

OS JOELHOS NA ANATOMIA DA BÊNÇÃO E DOS AFETOS


1. A palavra “joelho” em hebraico é “berekh” (ברך), cuja raiz é a mesma de “barakh”, “abençoar”. Considerando que o hebraico é uma língua extremamente visual, há boas razões para supor que há vinculação entre o ato de abençoar e a imagem de uma pessoa ajoelhada. Seria esta a posição exigida do candidato a palavras de bendição?

2. Além de aparecer relacionado ao ato de abençoar, os joelhos também ganham espaço importante no universo simbólico. Quando Raquel se vê incapaz de gerar filhos, diz a Jacó: “Eis minha serva Balah...que ela dê à luz sobre os meus joelhos. Por ela também terei filhos” (Gn 30,3). Ou seja, “o útero é dela, o filho, todavia, será acolhido em meus joelhos, será meu”.

3. Por vezes os joelhos são incorporados à linguagem corporal dos afetos, do cuidado. Em 2Rs 4,20, por exemplo, um menino adoecido permanece “sobre os joelhos de sua mãe” até que morre, sendo ressuscitado mais tarde pelo profeta Eliseu (4,35). A imagem à qual se deseja aludir é a de uma mãe, sentada, tendo sobre os joelhos uma criança enferma sob seus cuidados (Cf. Is 66,12).

4. Os joelhos também podem servir para revelar falta de rusticidade para a batalha (Jz 7,5), indicar humilhação (2Rs 1,13), fraqueza (Jó 4,4), submissão (Ex 34,8; Is 45,23) e medo (Ez 21,7; Na 2,10). Em sentido concreto, como articulação da perna, os joelhos aparecem, por exemplo, em Dt 28,35. Voltemos aos joelhos na anatomia do cuidado.

5. Gn 48, 8-12 Efraim e Manassés, filhos de José, são afetuosamente abraçados e beijados por Jacó e acomodados sobre seus joelhos. O livro de Juízes situa o momento em que Sansão revela suas fraquezas enquanto relaxava deitado sobre aconchegantes joelhos de Dalila (16,19). Gn 50,23, querendo enfatizar longevidade de José, diz que seus netos nasceram “sobre seus joelhos”.

6. Na Bíblia Hebraica os joelhos falam.



Jones F. Mendonça

domingo, 3 de setembro de 2023

SOBRE NORMAS

1. Sempre que retorno dirigindo para casa, após o fim do expediente, sintonizo na CBN e ouço “A nossa língua de todo dia”, apresentado pelo professor Pasquale Neto. Uma coisa que ele não cansa de enfatizar é o seguinte: os dicionários não determinam o significado das palavras, apenas reproduzem o significado que os falantes atribuíram/atribuem a elas.

2. Um exemplo: de acordo com a norma padrão, “membro” é um substantivo sobrecomum masculino, por isso não deve ser flexionado. Mas caso se torne comum tratar uma componente de um conselho como “membrA” do conselho, os gramáticos poderão se sentir autorizados a incorporar nas páginas dos dicionários a forma feminina de “membro”.

3. Muitos tratam a “norma padrão” como uma espécie de divindade – “Norma Padrão” – cujos desígnios não podem jamais ser mudados. Mas a “norma padrão” é mera invenção humana, uma convenção. É claro que ela tem sua utilidade, mas nem a “norma padrão” nem os dicionários são deuses. Não são. Nem devem ser tratados como se fossem.

4. As línguas progridem na constante tensão entre a norma, o cânone, e a força criativa e imprevisível dos falantes.



Jones F. Mendonça

sábado, 26 de agosto de 2023

OS REPHAIM E A NECROMANTE DE ENDOR


1. Na religião dos cananeus os rephaim eram reis mortos deificados, habitantes do submundo. Sabemos disso a partir da descoberta do chamado “Ciclo de Baal”, um conjunto de textos religiosos encontrados nas ruinas da antiga Ugarit (atual Síria), cidade descoberta acidentalmente por um agricultor no final da década de 1930.

2. Os rephaim aparecem na Bíblia Hebraica em diversos textos, como em Jó 26,5: “os rephaim se contorcem debaixo da terra...”. O livro do profeta Isaías (14,9) apresenta o mundo dos mortos despertando os rephaim para receberem o rei da Babilônia: “O Sheol se agita por causa de ti... para receber-te despertou os rephaim”.

3. Muita gente acha estranho que a necromante de 1Sm 28,13 trate o espectro do morto que "sobe da terra” como um “elohim”. O termo mais adequado seria “rephaim”, um rei divinizado invocado dos mortos para anunciar o futuro. Embora seja verdade que Samuel não era exatamente um rei, a função que ocupava elevava-se acima dos reis.

4. Mas por que o texto chama um defunto invocado de “elohim” e não de "rephaim"? Ora, se eram autoridades divinizadas, faz todo o sentido tratar esses rephaim como um “elohim” ( = uma divindade). Elohim é termo com significado bastante versátil: serve para indicar Yahweh, divindade tutelar de Israel, membros da corte celeste, divindades estrangeiras e até um rei (cf. Sl 45,6).

5. Além de "elohim" e "rephaim", o espírito de um defunto invocado por uma necromante poderia ser chamado de "ov", como em Is 29,4: "a tua voz será como a de um OV que se encontra debaixo da terra. O teu falar será um murmúrio que brota do chão".


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

AS TROVOADAS DE EDOM

Arte produzida por IA

1. Quatro textos da Bíblia Hebraica situam no Sul do Levante ( = de Canaã) a origem de Yahweh: Jz 5, Dt 33, Hab 3 e Sl 68. Além da indicação geográfica, esses textos também apresentam Yahweh como uma divindade guerreira, associada à tempestade, e que sai à frente do seu povo contra os inimigos. De acordo com o Livro do Profeta Habacuque, o segredo da sua força está no “nos raios que saem da sua mão” (3,4). O aguaceiro que se derrama é tão forte que chega a “fender o solo”, desnudando os fundamentos da terra “até a rocha” (3,9.13).

2. Além dos raios e da torrente, Yahweh utiliza outros instrumentos na batalha: à sua frente avança a peste (Deber?); na retaguarda quem o acompanha é a febre (Reshef?). Todo esse movimento desperta no profeta um grande terror: “agitam-se minhas entranhas, meus lábios tremem, penetra a podridão nos meus ossos, meus passos vacilam”. A poesia hebraica valoriza, com sua extrema concretude, os reflexos do pavor do profeta em sua estrutura física: suas entranhas, seus lábios, seus ossos, seus pés... Todo o seu corpo entra em colapso diante do poder de Yahweh.

3. Esta tradição poética, dotada de traços de memória bastante antigos, é utilizada em contextos diferentes na Bíblia Hebraica. Em Habacuque funciona como canto de vitória sobre os caldeus, povo mesopotâmico que ameaçava Judá com sua força no final do século VII; Em Juízes celebra a vitória de Débora e Barak sobre o exército de Sísera, general de Jabin, rei de Hazor, cidade ao Norte do Mar da Galileia; No Deuteronômio foi inserida na bênção de Moisés, proferida pelo patriarca antes de morrer; No Salmo dirige-se a todos os povos que "têm prazer na guerra” (68,30).

4. Uma só tradição poética, quatro sentidos. Os hebreus eram mestres na arte da ressignificação.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

YAHWEH COM TETAS E VENTRE


1. A partir do capítulo 12, o Livro do Gênesis basicamente se detém na história de Abraão, Isaac, Jacó e José. O capítulo 50, o último do livro, expõe ao leitor a morte de Jacó e José, seu filho. Ambos são embalsamados de acordo com a tradição funerária egípcia (50,2.26). Mas antes de morrer, no capítulo 49, Jacó anuncia uma série de bênção aos filhos.

2. A bênção, marcada por extrema beleza poética, dedica alguns versos a José, filho outrora perdido, mas reencontrado. O texto fala de arcos quebrados, de nervos rompidos, de flores, de espinhos, de colinas verdejantes. Tudo muito bonito e magistralmente pensado. No v. 25 o leitor se depara com a seguinte declaração:
Pelo El de teu pai, que te socorre,
por Shaddai que te abençoa:
Bênçãos dos céus no alto,
bênçãos do abismo deitado embaixo,
bênçãos das MAMAS [שדים]
e do VENTRE [ורחם].
4. Trocando em miúdos: é bênção para todo o lado. Chama a atenção o emprego de “mamas” e “ventre” na última linha, uma vez que é rara a apresentação de Yahweh com atributos femininos na Bíblia Hebraica. Eles enfatizam um Deus que dá suporte tanto na geração de filhos como no seu sustento (veja os reflexos em Lc 11,27 e Lc 23,29).

5. Alguns tradutores, talvez escandalizados com a descrição de Yahweh como uma divindade dotada de atributos exclusivamente femininos, substituem “mamas” por “fartura", e “ventre” por "fertilidade" (NVI). A NTLH foge completamente do assunto: “bênçãos de muitos animais e muitos filhos”(!!?).



Jones F. Mendonça

sábado, 29 de julho de 2023

ICONISMO A ANICONISMO NO ANTIGO ISRAEL

1. Quando examinados com o devido cuidado, alguns textos da Bíblia Hebraica revelam ser frágil a difundida crença no culto anicônico em Jerusalém no período do Primeiro Templo. Assim como Ea ou Marduk na Babilônia; El, Athirat e Baal em Ugarit, o culto em Jerusalém comportava a presença de uma representação de Yahweh. Em Israel, no Norte, o iconismo é evidente.

2. A confecção da representação do bezerro, ordenada por Jeroboão, não era mero pedestal de Yahweh (ou de outra divindade), mas uma imagem de culto zoomórfica de Yahweh, tal como ocorria com El, igualmente representado por um bovino. Note que Jeroboão relaciona o bezerro à mesma divindade que fez o povo “sair da terra do Egito” (1Rs 12,28).

3. Talvez você esteja se perguntando: mas que textos evidenciam a presença de uma representação de Yahweh no Templo de Jerusalém? Um bom exemplo pode ser tomado do Sl 17,15: “Quanto a mim, com justiça eu verei tua FACE / ao despertar, eu me saciarei com tua IMAGEM”. O paralelismo semântico, “face” (paniym) e “imagem” (temunah), sugere a presença de uma imagem no Templo.

4. Lançando mão de outro paralelismo, o Sl 63 claramente relaciona essa imagem ao Templo: “Quero contemplar-te no santuário / avistar o teu poder e a tua glória”. Alguns textos indicam a existência de procissões nas quais Yahweh era introduzido no Tempo: “Abram-se, ó portais; abram-se, ó portas antigas, para que o Rei da glória entre” (Sl 24,7.9).

5. Mas o que teria levado os judaítas a adotarem o aniconismo no período pós-exílico? Para Herbert Niehr, a mudança ocorreu devido a dois movimentos: 1) Como consequência da destruição do Templo (e da imagem de Yahweh), o trono divino foi deslocado para os céus, novo local de sua morada. Apenas seu nome passou a habitar na terra, como uma espécie de hipóstase.

6. 2) A presença divina na terra também foi pensada a partir de sua kabod, sua glória. Ela enche o Templo para sempre, substituindo a antiga estátua destruída. Alguns círculos sacerdotais, incapazes articular sua fé sem a presença de algum tipo de símbolo cultual da presença de Yahweh, introduziram a Menorah em suas cerimônias religiosas (Ex 25,31).

7. Você pode ter acesso à hipótese de Herbert Niehr consultando a seguinte obra: NIEHR, Herbert. In search of YHWH's Cult Statue in the First Temple. In: VAN DER TOORN, Karel (ed.). The image and the book: iconic cults, aniconism, and rise of Book religion in Israel and the Ancient Near East. Leuven: Peeters Publishers, 1997, p. 73-95. Boa leitura.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 28 de julho de 2023

POR QUE OS DEUSES HABITAM NOS CÉUS?


1. Os antigos hebreus, como qualquer outro povo, usavam elementos de seu mundo particular para expressar a relação com a divindade. Assim, são comuns na Bíblia Hebraica descrições de Yahweh em diálogo com as imagens sociais de “pai”, “senhor”, “guerreiro”, “rei”, “redentor”, etc. Em alguns casos essas imagens vinham das coisas fabricadas pelo homem, tais como “fortaleza”, “escudo”, etc. Outras podiam ser tomadas da natureza: “meu Deus é a rocha em que me abrigo” (Sl 94,22).

2. Mas além dos contextos sociais e ambientais, essa relação inevitavelmente alcançava uma dimensão espacial mais ampla, expressa em três níveis: o céu, a terra e o subsolo. De modo geral os deuses benéficos mais elevados do panteão viviam nos céus (como El Elyon); divindades guerreiras podiam habitar na terra, em montanhas elevadas (como Baal); e divindades maléficas habitavam o submundo (como Mot ou Yam). Do submundo também podiam emergir criaturas teriomórficas como Lotan/Leviatan.

3. Ciente dessa divisão tripartida e impulsionado por aspirações anicônicas e monolátricas, o livro do Deuteronômio faz o seguinte alerta: "Não farás para ti nenhuma escultura, nenhuma imagem de qualquer coisa NO CÉU, NA TERRA ou NAS ÁGUAS DEBAIXO DA TERRA” (Dt 5,8). Bem, como ando bastante interessado na dimensão espacial dos céus nas religiões do Antigo oriente Próximo, dedico parte do meu tempo ao livro “The Early History of Heaven”, escrito por J. Edward Wright.

4. O autor é professor de Bíblia Hebraica e cristianismo primitivo na Universidade do Arizona


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 27 de julho de 2023

A TERRA DOS MORTOS E A TERRA DOS VIVOS


1. Nas cidades, a posse dos espaços é indicada pela presença de muros; nos campos, de cercas; nos mares, de linhas imaginárias, as milhas náuticas. Em cidades como Jerusalém os espaços podem ser reivindicados a partir da presença de túmulos, afinal não atuam eles como memoriais, como gavetas caiadas, como janelas para o passado?

2. Um exemplo pode ser buscado em 2004, quando os partidários do líder palestino Yasser Arafat tentaram uma autorização para enterrá-lo na Cidade Santa. Yosef Lapid, Ministro da Justiça de Israel à época, rejeitou o pedido com o seguinte argumento: “[Jerusalém] é uma cidade onde os judeus enterram seus reis”.

3. O episódio despertou na teóloga britânica Francesca Stavrakopoulou o desejo de investigar a relação entre vivos e mortos na antiga cultura israelita. E foi assim que nasceu: “Land of our fathers: the roles of ancestor veneration in biblical land claims” (Terra de nossos pais: os papéis da veneração dos ancestrais nas reivindicações bíblicas de terras).

4. A moça também é autora de "God: an anayomy" (Deus, uma anatomia).


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 26 de julho de 2023

ARJUNA EM TERRASSECA



Arjuna cismou de conhecer o deserto de Terrasseca. Fez a viagem aconselhado por Sanjaya, cunhada de sua tia Odara. Tomou o avião e desembarcou no aeroporto de Pinossolto. O céu do lugar até tinha nuvens, mas eram nuvens secas; até tinha lagos, mas eram lagos insalubres; até tinha árvores, mas eram árvores sem flor, sem fruto e com raízes amargas. Percebeu, após longa jornada, que era possível encontrar na região alguma fagulha de esperança, mas era esperança projetada em horizontes absolutamente inalcançáveis. Angustiado, resolveu voltar para casa. Só então percebeu que o aeroporto fora tragado para o coração da terra. Arjuna sentou-se então para chorar, mas de seus olhos não saía água. Eram agora olhos secos, como tudo que o cercava.


Jones F. Mendonça

PARÁGRAFOS

1. Adquiri o costume de escrever parágrafos numerados com Osvaldo Luiz Ribeiro, que ordenava seus pensamentos assim em seu Blog, Peroratio, hoje em inatividade. Esta prática me ajuda a ordenar os pensamentos, a encadear melhor as ideias. Nietzsche fazia algo parecido, mas os parágrafos preservavam poucos vínculos entre si. Seu cérebro era dinamite (como o de Osvaldo).

2. Com o tempo comecei a desenvolver certa obsessão pelo formato dos parágrafos: curtos e com a mesma quantidade de linhas. Deixar um parágrafo um pouco maior ou menor que os outros é algo que logo me aborrece. Então quebro a cabeça para eliminar ou acrescentar palavras sem que o texto fique prolixo ou incompreensível. Gosto do laconismo espartano.

3. Os dois parágrafos acima têm, respectivamente, 57 e 57 palavras; 314 e 292 caracteres; 05 linhas (no meu PC). Estão dentro do limite esperado. Mas este último, com apenas 03 linhas, já vai me deixando aborrecido😊




Jones F. Mendonça

OS OLHOS EM JÓ


1. No livro de Jó os olhos desempenham papeis variados com a finalidade de potencializar a força poética dos versos. Defendendo-se da acusação de que seu sofrimento era causado por alguma falta, Jó diz assim: “fiz um pacto com MEUS OLHOS para não olhar para uma virgem” (31,1). Aqui, como em diversos outros momentos, Jó expõe as incoerências da lógica da retribuição. Enfim, “como posso estar sendo punido se meus olhos sempre se desviaram do mal?”

2. Em 29,15, mais uma vez destacando suas ações sempre dispostas para o bem, Jó recorre à imagem dos olhos, que vêm acompanhados dos pés: “eu era OLHOS PARA O CEGO, e pés para o coxo”. No verso seguinte ele acrescenta: “eu era o pai dos pobres...”. Ora, pergunta-se mais uma vez o servo sofredor, “se fiz o que era justo, por que sofro? Por que Shadday pisa sobre mim como o grão na moenda; esmaga-me como a lama das ruas?”.

3. Em 10,5, reconhecendo que a natureza divina é absolutamente distinta da dos homens, o personagem que dá nome ao livro faz a seguinte pergunta retórica ao Supremo Juiz: “porventura tens OLHOS DE CARNE, ou vês com veem os homens?”. Em sua angústia, como Jeremias perseguido por seus opositores, Jó lamenta: “MEUS OLHOS se consomem na angústia, meus membros definham como sombra”. É significativo que em 42,5 os olhos reapareçam, mas sob nova condição:
“Conhecia-te só de ouvido,
mas agora MEUS OLHOS te veem”.
4. Mas o que Jó vê exatamente? A que tipo de conclusão ele chega? Considerando que a nova percepção de Jó acerca da divindade é inserida no ambiente de uma tormenta (סערה; cf. 38,1), certamente o que ele vê não é um Deus que pode ser domado, que pode ser esquadrinhado pelos olhos e pelas lentes da teologia sistemática. Assim, o que ele vê é um Deus que se comporta de forma imprevisível, que agita violentamente a poeira das estepes em dia de ventania. No meio dessa tempestade Jó se vê como pó, como cinza que rodopia ao sabor do vento. E só.



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 24 de abril de 2023

JEREMIAS E O "FLUXO DOS VALES"


1. Jr 49,4 dirige o seguinte oráculo contra os amonitas: “Por que tu te glorias nos vales, fluxo do teu vale, filha rebelde”. Alguns tradutores pensam que “fluxo do teu vale” é uma referência às orgias sexuais praticadas no vale, daí a tradução: “teus luxuriantes vales” (Almeida Revista e Corrigida).

2. Neste caso, o tradutor parece supor que o verbo “fluir” (זוב) é uma referência ao fluxo seminal. De fato, em muitos casos este verbo aparece relacionado ao fluxo de sêmen, como Lv 15,2: “Quando um homem tem fluxo que sai do seu corpo...”. Ocorre que o verbo também pode ser usado para falar dos alimentos que “fluem” da terra.

3. Um exemplo clássico é o “terra que mana leite e mel(Ex 3,8). O verbo traduzido por “mana” é o mesmo de Jr 49,4 e significa exatamente isso: manar, jorrar, fluir. Neste caso, é empregado de forma metafórica, afinal, nem o mel nem o leite “jorram” literalmente da terra, mas podem ser abundantes na terra.

4. No caso de Jr 49,4 o contexto sugere que a crítica se dirige à confiança que os amonitas depositam na fartura de alimentos produzida em seus vales irrigados – no “fluxo dos teus vales” – e nos seus “tesouros” (אוצר), ou seja, em sua riqueza de modo geral. Toda essa discussão pode parecer infrutífera e desnecessária, mas no fim das contas o tradutor precisa decidir.

5. Nunca é demais repetir: não é fácil a vida do tradutor.



Jones F. Mendonça

sábado, 22 de abril de 2023

BÍBLIA, EXEGESE E RACISMO

1. Os versos 7 e 8 do capítulo 4 do livro bíblico de Lamentações parecem indicar que indivíduos com pele “mais branca do que o leite” são mais desejáveis do que aquelas “mais negras do que o carvão” (NVI). Uma leitura apressada sugere que pessoas de pele negra tinham pouco valor na antiga sociedade israelita. Será?

2. Em minha opinião a palavra hebraica traduzida por “branca” (tzahah) não indica cor, mas outra característica presente no leite e na neve. Explico. Embora “tzahah” só apareça neste verso de Lamentações (daí a dificuldade em traduzi-la), ela deriva de outra palavra (tzah) que significa “ofuscante”, “resplandecente”, “abrasador”, etc.

3. No livro bíblico de Cantares (5,10), por exemplo, o amado é descrito como “tzah” e “adom”. O texto destaca o VIGOR da pele de seu amado e sua aparência AVERMELHADA ( = corada, saudável): "meu amado é ALVO [ou melhor, "resplandecente"] e rosado" . Ou seja, é "puro vigor", um "homão". 

4. No caso de Lamentações a pele “enegrecida” [hashakh] não é desvalorizada pela cor, mas pela imagem evocada. Repare que no v. 8 a pele “enegrecida” faz alusão a uma pele seca, sem vigor: “sua pele [enegrecida] se lhe colou aos ossos, ela é seca como a lenha”. A mesma descrição aparece em Jó 30,30: “Minha pele se enegrece [shahar] e cai”.

5. Não é minha intenção aqui fazer uma leitura politicamente correta das Escrituras. No Antigo Testamento determinadas condutas são nitidamente reprováveis à luz dos valores éticos e morais adotados em nossa sociedade moderna. Mas racismo não há (até onde pude constatar).


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 13 de abril de 2023

JEZABEL, POR TINA PIPPIN


1. Jezabel, princesa fenícia dada como esposa ao rei Acab, converteu-se em uma espécie de ícone da imagem feminina considerada degradante: vulgar, sedutora, mentirosa, feiticeira, traiçoeira, duas caras, desavergonhada, e por aí vai. Na década de 80 – lembro-me bem – mulheres que tingiam o cabelo eram acusadas de estar possuídas pelo “espírito de Jezabel”. Isso na igreja batista...

2. Em “Jezebel re-vamped”, Tina Pippin rastreia o desenvolvimento da representação dessa rainha nos textos e na tradição. Para a autora, o discurso sobre Jezabel muitas vezes foi utilizado para aviltar a imagem do “outro”, sobretudo da mulher estrangeira, considerada perigosa, sedutora, má, como as negras africanas escravizadas no Sul dos Estados Unidos.

3. O artigo de Pippin pode ser lido no volume 69/70 da Revista Semeia (1995, pp. 221-233). 


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 12 de abril de 2023

A FILHA DE JÓ E O ANTIMÔNIO NOS OLHOS


1. No capítulo quatro, o livro do profeta Jeremias compara Jerusalém a uma mulher extremamente bela, porém desprezada. Ela veste púrpura, tem enfeites de ouro, e seus olhos estão “rasgados com antimônio” (4,30), ou seja, alargados, pintados com tintura. O antimônio já era conhecido por suas qualidades cosméticas por indianos e egípcios. Era bom para sombrear os olhos.

2. Esse metal sólido, acinzentado e de constituição quebradiça reaparece poucas vezes na Bíblia Hebraica. Sua ocorrência mais inusitada surge em Jó 42,14. De acordo com o texto, Jó teve três filhas: Jemimah, Qetziah e Qeren-Hapukh. Os significados de Jemimah e Qetziah são incertos, mas o de Qeren-Hapuk é claro. Significa “chifre de antimônio” (קרן הפּוךְ).

3. Bem, se o antimônio fosse um metal dotado de grande dureza, seu nome poderia indicar força, uma vez que a palavra hebraica qeren (chifre) é usada como metáfora para "força" (cf. Sl 18,2). A moça seria conhecida por algo como “chifre/força de aço”. Mas não é este o caso. Minha hipótese é que “chifre” podia funcionar como referência visual para o prolongamento dos olhos pelo antimônio.

4. Assim, "chifre de antimônio" seria uma alusão à sua beleza, a seus olhos alongados. Quer saber se tenho certeza? Claro que não, mas esta é minha melhor hipótese.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 7 de abril de 2023

OS SALMOS, EM CINCO PARÁGRAFOS CURTOS


1. O Livro dos Salmos, tal como se encontra em nossas Bíblias, é fruto de um longo trabalho feito por compositores, colecionadores e editores. Estes últimos dispuseram os Salmos de acordo com alguns esquemas programáticos. Algumas vezes esse esquema segue a lógica da autoria: 42-49 (Coré); 50 (Asaf); 51-72 (DAVI); 72-83 (Asaf) e 84-89 (Coré). Note que o “Salmo de Davi” aparece no centro, cercado por Asaf e Coré (disposição quiásmica).

2. Mas até mesmo os títulos de “autoria” parecem ter sido incluídos pelos editores. Aliás, a tradução “Salmo de...” (Davi, Coré, Asaf...) tem sido objeto de muita discussão. Afinal, o Salmo 51 foi escrito por Davi, foi inspirado na vida de Davi ou o nome “Davi” é apenas uma homenagem à personalidade a qual se atribuía o patrocínio da coleção? Está confuso? Eu explico.

3. Na abertura do Salmo 3 lemos assim: “mizmor LeDavid”. Uma tradução mais fiel seria “Salmo para Davi” ou “Salmo a Davi” (o “Le”, antes do nome de Davi é preposição). Em alguns casos esse “Le” (לְ) indica pertencimento, como consta, por exemplo em um selo encontrado em Jerusalém datado para a época de Ezequias: “PERTENCE a Ezequias, filho de Acaz” (LeEzequias).

4. Na Bíblia essa preposição também funciona como indicativo de pertencimento quando aparece antes de nomes próprios. Quer exemplos? Lá vai. Veja o caso de Rt 4,9: “comprei da mão de Noemi tudo o que PERTENCIA a Elimelec” (לאלימלך). Veja agora 1Sm 27,6: “É por isso que Siceleg PERTENCE aos reis de Judá” (למלכי). Assim sendo, porque não devemos ler: “Salmo pertencente a Davi”?

5. Seja como for, esses títulos deixam uma coisa bem clara: de alguma maneira o editor via afinidade entre o Salmo e a personalidade referida no título. Talvez pensasse que era seu autor, talvez patrocinador, talvez que essas personalidades apenas funcionavam como inspiração para um poeta posterior, que se imaginava, por exemplo, na pele de Davi. Quem saberá?


Jones F. Mendonça

sábado, 1 de abril de 2023

JEREMIAS E AS SOMBRAS DA GUERRA



1. O livro do profeta Jeremias, no capítulo 6, descreve os sinais de uma guerra que aponta no horizonte, conduzida pelo “mal que vem no Norte” (v.1). Na cidade de Jerusalém, a “bela e delicada Filha de Sião”, o povo está em polvorosa: pastores recolhem seus rebanhos, atravessam os portões e tentam protegê-los, cada qual a seu modo (vv. 2-3).

2. Com a intenção de materializar o terror que assola a população de Jerusalém, o texto busca auxílio em imagens que ainda fazem parte do nosso cotidiano. A noite, tão temida por quem experimenta um cerco inimigo, é anunciada poeticamente pelo efeito da luz do sol sobre os corpos. Uma luz que se despede e dá lugar às sombras, que dá lugar à morte:
“ai de nós que o dia declina,
que se alongam as sombras da tarde” (Jr 6,4).


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 22 de março de 2023

SOBRE "NUVENS", AGOUREIROS E CANNABIS


1. A palavra “nuvem”, em hebraico, é ‘anan (ענן). Ela aparece, por exemplo, em Gn 9,13: “porei nas NUVENS o meu arco”. Pode parecer bem estranho, mas o hebraico possui um verbo usado para designar a ação de fazer nuvens. Veja: “E acontecerá que quando eu ENEVOAR (verbo) NUVENS (substantivo) sobre a terra...” (Gn 9,14).

2. “Enevoar” e “nuvem” são palavras de mesma raiz e grafadas do mesmo modo: ענן. Bem, mas a afinidade entre verbo e substantivo é algo muito comum, até em nosso idioma. Estranho mesmo é que os “adivinhos” ou “agoureiros” eram tratados como “enevoadores” ou “produtores de nuvens” (verbo no poel, forma intensiva). Por quê?

3. Inicialmente é preciso dizer que ‘anan serve para designar “nuvem” ou “fumaça”, como em Ez 8,11: "[cada um] elevava o perfume de uma NUVEM de incenso". O texto descreve a fumaça produzida pelos incensos dos 70 anciãos que adoravam divindades estrangeiras (aparentemente, Tamuz) no Templo de Jerusalém.

4. Assim, talvez os adivinhadores tenham recebido o rótulo de “enevoadores” ou “produtores de fumaça” porque executavam seus rituais de adivinhação em meio à fumaça produzida pelo incenso ou, quem sabe, por outros materiais, como ervas. Não é muito difícil imaginar o cenário.

5. Em 2020 um grupo de arqueólogos descobriu incenso misturado com maconha em um antigo altar localizado em Tel Arad, ao sul de Jerusalém. Bem, as demais conclusões ficam por tua conta😃. Sobre a maconha encontrada em Tel Arad, leia aqui.


Jones F. Mendonça

terça-feira, 21 de março de 2023

O HEBRAICO E SEU ALFABETO REDUZIDO

1. Uma das primeiras coisas que o estudante de hebraico aprende é que seu alfabeto possui 22 consoantes e que palavras de mesma raiz geralmente carregam algum tipo de conexão, como ‘ebed (servo) e ‘abad (trabalho). Ambas as palavras são grafadas com as mesmas consoantes: עבד. Uma vez que o hebraico não possui vogais, a vocalização era transmitida de pais/mães para filhos(as).

2. Mitchell First, em artigo publicado no Jewish Link, chama a atenção para o seguinte: assim como o árabe moderno, há boas razões para pensar que o hebraico mais antigo possuía 27 ou 29 consoantes e não 22 como atualmente. Ele explica que algumas consoantes foram aglutinadas em uma única, fenômeno observado no ayn, o het, o shin, o zayin e o tzad.

3. O resultado prático disso é que algumas palavras hebraicas, embora visualmente aparentem possuir a mesma raiz, na verdade podem conter consoantes que foram modificadas pela aglutinação. Assim, o fenômeno pode conduzir o exegeta a buscar relações que jamais existiram entre palavras formadas pelas mesmas consoantes, como entre עצם, que significa “forte”, e עצם, que significa “próximo”.

4. Interessou-se pelo o assunto? Siga o link.



Jones F. Mendonça

SOBRE O JEJUM DE DANIEL

1. Muita gente se pergunta a respeito das razões que levaram o autor do livro de Daniel a registrar a rejeição dos judaítas empregados na corte babilônica às “iguarias do rei” (1,8). Seriam esses alimentos oferecidos a divindade locais? A abstenção visava evitar o luxo e demonstrar humildade? Uma dieta de legumes é mais saudável? Seria Daniel um vegetariano ou vegano? Nada disso. A razão é outra.

2. O episódio tem finalidade didática, e é destinado às comunidades judaicas da diáspora, expostas diariamente aos costumes estrangeiros, vistos como uma ameaça à sua fé e às suas tradições. Veja que Daniel rejeita alimentos de origem animal, mas aceita alimentos “semeados” (זרע; “legumes” não é uma boa tradução), ou seja, tudo o que vem da terra (exceto o vinho, cf. 1,8), como frutas, legumes, verduras, azeite e cereais.

3. O profeta aparece como modelo de como se portar em terras estrangeiras no que diz respeito à dieta judaica, baseada em um conjunto de regras alimentares estabelecidas pela tradição (Torah/Talmud). Assim, fez opção por uma alimentação especial, atualmente chamada de kosher. As regras preveem uma série de restrições relacionadas aos alimentos de origem animal e ao vinho, mas poucas em relação aos frutos da terra.

4. Legumes, frutas, verduras e cereais precisavam passar por um exame relativamente simples: deveriam ser bem lavados para e evitar a ingestão de pequenos moluscos e insetos. Assim, o texto quer enfatizar que o vigor de Daniel e de seus companheiros (cf. 1,15) vem da fidelidade a seu Deus, e não dos alimentos em si. A Lei judaica jamais proibiu o consumo de carne ou de vinho.

5. Talvez você não saiba, mas atualmente existe até telefone kosher e um KosherTube!




Jones F. Mendonça

segunda-feira, 20 de março de 2023

GABRIEL, O VALENTE DE DEUS


1. Além de Ish/Ishah (homem/mulher) e zakar/neqebah (macho/fêmea), o hebraico emprega os termos gibbor/geberet para designar um homem ou mulher dotados de grande poder. São classificados como Gibbor: Ninrode, Jefté, Davi e Jeroboão, dentre outros.

2. Geberet é aplicado, por exemplo, a mulheres como Sara, “poderosa” em relação a Hagar, em Gn 16,4: “Quando [Hagar] se viu grávida, começou a olhar sua GEBERET (גברת) com desprezo”. A tradução “sua senhora”, funciona bem aqui.

3. Tanto gibbor como geberet vêm da raiz verbal GaBaR = ser forte, poderoso. Também deriva da mesma raiz o nome Gabriel (GaBRi-el), que significa “poderoso de El”, ou “poderoso de Deus” (Dn 8,16; 9,21).



Jones F. Mendonça

SOBRE BÊNÇÃOS E SOBRE JOELHOS


1. O verbo “abençoar”, no hebraico, é barakh (lê-se baraR, com o “r” pronunciado na garganta). É no mínimo curiosa a semelhança entre barakh (abençoar) e berekh (joelho). Seria mera coincidência? Suponho que não.

2. Vale dizer que barakh pode ser traduzido tanto por “abençoar” como por “ajoelhar”. Considerando que o hebraico é um idioma muito visual, é provável que o ato de abençoar envolvesse alguma ação relacionada aos joelhos.

3. Há poucos casos em que “barakh” deve ser traduzido por “ajoelhar” e não por “abençoar”. Um exemplo poder ser tomado de 2Cr 6,13: “E AJOELHOU [Salomão] sobre os joelhos dele na frente de toda a assembleia”.

4. É difícil saber se o ato de abençoar aparece relacionado aos joelhos do abençoador ou do abençoado. Provavelmente do abençoado, que dobrava os joelhos diante do abençoador, esperando o anúncio da bênção.

5. Ou, talvez indique os joelhos do abençoador, sobre os quais o abençoado se debruçava (cf. imagem, produzida por Gustave Doré).



Jones F. Mendonça

sábado, 18 de março de 2023

DOS NOMES


1. Não é difícil encontrar gente dizendo que "nome não se traduz". Assim, argumentam que nomes bíblicos como Abraão, Moisés e Jacó devem ser pronunciados como no hebraico: Avraham, Mosheh e Ya'aqov. Jesus – dizem os mais puristas – deve ser tratado como Yeshua ou Yehoshua. Que canseira...

2. Ocorre que alguns judeus do primeiro século não pareciam ver problemas em ajustar seus nomes à cultura na qual estavam inseridos. O nome judaico de Paulo, por exemplo, é Shaul (Saul; שאול). No mundo grego ficou conhecido como Saulos (σαυλος) e no mundo latino como Paulos (παυλος).

3. Tiago é outro exemplo. Na carta que leva seu nome, o personagem é tratado como Iakobos (Ιακωβος). Mas Iakobos é versão grega do hebraico Ya'aqov (Jacó; יעקב). Na Espanha ficou conhecido como Saint Iago, daí Santiago. Nosso "João" era Yohanan (יוחנן) em hebraico e Iohannes (Ιοαννης) em grego.

4. Na boca do povo os nomes são como foca ensaboada e manteiga escorrendo pelos dedos.


Jones F. Mendonça