segunda-feira, 27 de agosto de 2018

DAS RESSIGNIFICAÇÕES JUDAICAS E CRISTÃS

O judaísmo, desde cedo, aprendeu a exercitar a prática da ressignificação de seus textos sagrados. O texto abaixo, presente em Gn 49,11-12, fala de abundância (de vinho, de leite), mas será ressignificado mais tarde, como veremos. Os versos identificados pela mesma letra são sinônimos:
(A) “Liga à vinha seu jumentinho,
(A) à cepa o filhote de sua jumenta,
(B) lava sua roupa no vinho,
(B) seu manto no sangue das uvas,
(C) seus olhos estão turvos de vinho,
(C) seus dentes brancos de leite”.
O Targum, interpretação judaica preservada em aramaico, vê no texto uma alusão à vingança do messias:
[O Messias] desceu e organizou a batalha contra os seus adversários...Suas vestes, imersas em sangue, são como o sumo de uvas...Seus dentes, mais puros que o leite (Targum do Pseudo-Jonathan).
A expressão “sangue de uvas” - ou seja, “vinho”, como sugerem os versos anterior e posterior - converteu-se no sangue dos adversários do Messias. Os “dentes brancos de leite” em símbolo de sua pureza.

Mas a primeira reinterpretação de Gn 49,1-12 talvez já apareça em Is 63,1-8, que vê em uvas esmagadas uma referência aos povos destruídos pelo Messias no dia da vingança:
(A) Is 63,3 Pisei as uvas na minha ira,
(A) na minha cólera as esmaguei.
(B) O seu sangue salpicou as minhas vestes;
(B) com isto sujei toda a minha roupa.
(A) Is 63,6 Na minha ira calquei aos pés os povos,
(A) na minha cólera os despedacei
(B) e derramei por terra o seu sangue.
O texto será ressignificado também pelos cristãos. O livro do Apocalipse retoma a imagem do “manto embebido em sangue”, usado pelo “Verbo de Deus” no dia do juízo (19,13). Justino de Roma, um cristão do II século, viu na passagem uma alusão à encarnação do Verbo:
Fala-se também do "sangue da uva", para dar a entender que aquele que havia de aparecer teria certamente sangue, mas não de sêmen humano, e sim de virtude divina (Apologia I, 32).
A preocupação com o sentido do texto em seu contexto original finalmente aparece em Calvino:
Ele agora fala da situação do território reservado aos filhos de Judá. Tão grande seria a abundância de videiras ali, que em todos os lugares eles se apresentariam tão prontamente quanto os arbustos.
Mas o reformador não deixa passar em branco uma observação moral em relação à expressão “olhos turvos de vinho”:
Não parece apropriado, que uma profusão de intemperança ou extravagância deva ser considerada uma bênção. Embora a fertilidade e a riqueza sejam aqui descritas, ainda assim o abuso delas não é sancionado”.
Jones F. Mendonça

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

PRETÉRITOS PERFEITOS

Tonta cultiva uma espécie de saudosismo doentio. Perde horas imersa em seu intestino de melancolias: sonha com suas fitas cassete da década de 80; lembra emocionada os cafunés da tia Mafalda; morre de saudade dos banhos mornos e coloridos de permanganato de potássio. É comum vê-la suspirando pelos cantos: “no meu tempo era tão bom...”. Certo dia pôs a tocar LP do Nirvana ao contrário. Diziam que ouviria conselhos atrozes do próprio Satanás. Mas era um juízo bom: “Acorda, Tonta, teu tempo é agora!”


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

O BILAU DE ABRAÃO SOB O SOL DO MEIO-DIA

A primeira tradução (oral) dos textos bíblicos do AT para outro idioma – o aramaico – é o Targum. Mas o targum não se limita a traduzir. É nítido o esforço que dispensa visando preencher lacunas do texto. Por exemplo: por que cargas d’água Abraão aparece sentado na entrada da tenda “no calor do dia”, em Gn 18,1? A resposta do Targum: porque Abraão estava sentindo muita dor, incapacitado, uma vez que havia sido circuncidado no final do capítulo anterior. Justificam a ociosidade do patriarca a partir da “dor no bilau”. Criativos esses rabinos...



Jones F. Mendonça

domingo, 5 de agosto de 2018

CONFISSÕES

Pôs no bolso um verso curto,
escrito em papel rasgado.
Garrancho de letra,
traste de grafia.

Nas linhas tortas,
do bilhete abortado,
dizia coisas adormecidas
nas entranhas do coração.


Jones F. Mendonça

ISRAEL NO BRONZE TARDIO [MAPA]

Clique para ampliar

Leio “O Reino esquecido” (Paulus, 2015, 226 p.), obra escrita pelo arqueólogo israelense Israel Finkelstein sobre o reino de Israel do Norte. Além de me atualizar em relação às recentes descobertas produzidas a partir de escavações realizadas no Norte, aproveito para confeccionar novos mapas para meus alunos de geografia bíblica. Fiz o mapa acima a partir da figura 3, pg. 31 (Canaã no Bronze Tardio = 1350-1050 a.C.).

As cidades destacadas em vermelho formavam o que Finkelstein chama de “coalisão de Siquém”, lideradas por Labayu, governante de Siquém que ambicionava controlar o vale de Jezrael (Meguido e Rehov, em azul, acima de Siquém). Se tivesse alcançado seus propósitos, Labayu teria estabelecido uma dominação equivalente às mesmas áreas que alguns séculos depois foram governadas pelo Reino do Norte.

Contra a “coalisão de Siquém” estavam o Egito e seus aliados da “coalisão anti-Siquém” (em azul), formada pelas cidades de Miguido, Rehov, Acsaf, Aco e Hazor (a cidade-Estado mais importante do Norte). Embora Labayu tenha sido capturado e morto (cf. Cartas de Amarna), seus filhos deram continuidade às ambições políticas de seu pai. 

Finkelstein vê semelhanças entre o contexto no qual estava inserido Labayu e o dos líderes tribais mencionados no livro de Juízes. A história de Abimelec (Juízes 9) poderia ser um resquício dos acontecimentos que tiveram lugar antes da ascensão do Reino do Norte.

Algumas informações sobre o mapa: a reconstrução da divisão territorial de Canaã no Bronze Tardio – antes do estabelecimento de uma unidade política chamada Israel – tem se tornado possível graças a três ferramentas notáveis:

1) A evidência textual – a mais importante são as Cartas de Amarna, do século XIV a.C.. Trata-se de uma série de correspondências diplomáticas registradas em tabletes de argila entre os Faraós Amenófis III e Amenófis IV e governantes das cidades-Estado em Canaã (as cidades aparecem no mapa).

2) A investigação petrográfica – a sede do remetente de uma dada tabuleta pode ser identificada graças ao estudo mineralógico da argila na qual foi registrado o texto. A investigação petrográfica foi capaz de confirmar que Labayu, um rei cananeu citado nas cartas de Amarna, governou a parte norte da região das terras centrais de Canaã.

3) A arqueologia – as escavações podem revelar a arquitetura pública, assim como palácios e templos. O cruzamento das informações coletadas pelos arqueólogos com a evidência textual e petrográfica tem dado resultados extremamente positivos.


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

QUE FALTA FAZ ARISTÓTELES

O argumento “negros também venderam negros como escravos”, usado como justificativa para deslegitimar tentativas de reparar injustiças revela uma confusão que se repete em cada canto. A relação “escravizadores” versus “escravos” nunca foi entre “brancos maus” e “negros bons”, mas entre dominadores e dominados. Historicamente, no entanto, o abismo social entre brancos e negros no Brasil é o resultado da dominação da população negra escravizada pela população branca escravizadora.  O racismo é o resultado de uma luta entre classes, não entre etnias. Não é a causa da luta, mas o seu produto.


Jones F. Mendonça