quarta-feira, 24 de junho de 2020

JEREMIAS E OS "CALCANHARES" DE JERUSALÉM

O capítulo 13 do livro do profeta Jeremias anuncia a chegada de um inimigo que vem do Norte (Babilônia), apresentado como instrumento da ira divina contra seu povo. No verso 22 o povo pergunta: “qual a razão destas coisas?”. Javé responde:
“Por causa da multidão das tuas iniquidades se descobriram as tuas vestes, e violentaram teus calcanhares”.
Um leitor ingênuo haverá de se perguntar: “qual o significado da expressão ‘violentaram teus calcanhares’?”. Bem, a NTLH capturou o eufemismo e traduziu o verso assim:
“Por que arrancaram as minhas roupas? Por que abusaram de mim?”.
“Calcanhares”, aí, é uma referência à parte posterior do corpo, ao dorso, mais especificamente às nádegas. Este capítulo, aliás, está impregnado de linguagem sexual. No verso 37, por exemplo, Jerusalém é comparada a uma mulher adúltera que “relincha (matzalah = gritos de gozo) em vergonhosa prostituição”.


Jones F. Mendonça

SOBRE POETAS, MITOS, LIBERDADE E FILOSOFIA

No século VIII a.C., enquanto profetas bíblicos como Amós denunciavam as injustiças cometidas pelo rei e pelos sacerdotes do norte de Israel, Hesíodo escrevia sua Teogonia, texto poético destinado a explicar a origem dos deuses e dos fenômenos cósmicos. Ainda não era uma busca fundamentada na razão, mas já revelava preocupação com as causas primeiras. Não seria exagero dizer que foram os poetas, com sua linguagem mítico-fantástica, que abriram caminho para o desenvolvimento das cosmogonias filosóficas e, portanto, da filosofia.  Uma segunda contribuição foi a religião grega, livre de dogmas rígidos, de textos sagrados revelados e de guardiões da “reta doutrina”. Esse modo de articular a religião favoreceu o desenvolvimento do livre pensamento e do debate de ideias. A autonomia das cidades, seu grau de bem-estar e liberdade política, foram o solo fértil para que as sementes da filosofia finalmente germinassem.  


Jones F. Mendonça

terça-feira, 23 de junho de 2020

POLÍTICA A ASCESE

Tudo começou com sua adesão ao “não vai ter Copa”. Dizia ser inadmissível perder seu tempo com futebol num momento político tão delicado. Para não parecer hipócrita suspendeu suas assinaturas de streaming: abandonou os seriados. Mas queria suprimir todas as distrações: desinstalou o Candy Crush, vendeu sua mesa de sinuca, doou os gatos, cancelou a viagem de lua de mel. Achou pouco. Ainda lhe restavam gotas de prazer. Suspendeu o sexo com a mulher, abandonou a família, transformou-se em pessoa amarga. Sua boca e sua alma eram agora incapazes de esboçar um mínimo sorriso. Aos 81 anos descobriu em Jean de Santeuil a cura para sua doença: “Castigat ridendo mores” (corrige os costumes sorrindo). Mas já era tarde demais: tinha vocação para tolices.



Jones F. Mendonça

AS COISAS FEDORENTAS NA BÍBLIA

O verbo hebraico “ba’ash” significa “cheirar mal”, “ser fedorento”, “malcheiroso”. Quando o rio se converte em sangue, em Ex 7,17, suas águas “cheiram mal” (ba’ash). Mas este é seu significado primário. Em boa parte das vezes “ba’ash” aparece como metáfora. Veja:

“Jacó disse a Simeão e a Levi: ‘vocês me transformaram num FEDORENTO ( = pessoa repugnante) entre os habitantes da terra’” (Gn 34,30).

Um substantivo derivado do verbo é “beosh”. Ele aparece em Is 34,3: “dos seus cadáveres subirá o MAU CHEIRO” e em Am 4,10: “Fiz subir às vossas narinas o MAU CHEIRO de vossos acampamentos”.


Jones F. Mendonça


O MAU HÁLITO DE JÓ

Traduzido literalmente, Jó 19,17a fica assim: “MEU ESPÍRITO tornou-se repugnante à minha mulher”. Na maioria das vezes que “meu espírito” aparece em Jó, a tradução mais indicada é “minha vida”, como em Jó 6,4: “o ardente veneno suga o meu espírito” ( = “meu ânimo” > “minha vida”). Assim teríamos: “minha vida tornou-se repugnante à minha mulher”.

Mas a palavra traduzida por “espírito” também pode significar “alento”, “fôlego”, por isso há quem traduza assim: “MEU HÁLITO tornou-se repugnante à minha mulher”. Neste caso a referência seria ao “bafo”, ao cheiro ruim que saía da boca dele. A questão seria facilmente resolvida se tivéssemos certeza que a continuação do verso diz que seu MAU CHEIRO afugenta seus próprios filhos. Assim, teríamos:
  • A - hálito ruim > mulher
  • B - cheiro ruim > filhos (a parte B reforçaria o que é dito em A)
Mas a parte “b” de Jó 19,17 é um caso à parte. A tradução “mau cheiro”, presente em boa parte das Bíblias, baseia-se numa suposição. Enfim, para sabermos a tradução correta da parte “a” (“vida” ou “hálito”?), precisamos traduzir corretamente a parte “b” (e vice versa). Não é fácil a vida dos tradutores.



Jones F. Mendonça

SOBRE A IDADE MÉDIA

Meu primeiro contato com algum tipo de rejeição ao termo “Idade das Trevas” usado para qualificar a Idade Média foi em uma obra sobre a história da arte (“Idade Média”, aliás, já carrega dimensão pejorativa). O livro destacava a beleza, a singularidade e a sofisticação da arquitetura medieval. Encontrei o mesmo tipo de crítica num livreto sobre a filosofia medieval. As autoras, católicas, insistiam em destacar aspectos positivos desse período tão controverso que durou cerca de mil anos. Fui forçado a rever meus conceitos. A abandonar alguns rótulos.

Recentemente tive contato com a obra do medievalista francês Alain de Libera. Na introdução de sua “filosofia Medieval” (Jorge Zahar, 1990) o autor rejeita duas teses muito difundidas: 1) Toda a filosofia medieval é, no fundo, apenas teologia (Bertrand Russell); 2) A “filosofia medieval” é mero resultado do casamento entre o aristotelismo e as doutrinas judaico-cristãs (Martin Heidegger). Bem, acho que já foi suficientemente destronada a ideia de que a “Idade Média” foi um período essencialmente obscurantista. Mas vamos com calma.

Tenho encontrado aqui e ali, sobretudo no ambiente reformado, pastores fazendo declarações de amor ao medievo. Revelam grande saudade do tempo em que a teologia era a rainha das ciências. Cavando fundo, como bem fazia Nietzsche, filósofo da suspeita, não é difícil descobrir a razão desse anunciado amor: é que sendo a teologia a rainha, serão eles os reis...


Jones F. Mendonça


sexta-feira, 19 de junho de 2020

PRINCÍPIO ARQUITETÔNICO E PRINCÍPIO HERMENÊUTICO

Toda a construção teológica – seja o de um Edir Macedo (barata) ou a de um Rudolf Bultmann (sofisticada) – é norteada por dois princípios: o princípio arquitetônico e o princípio hermenêutico. O primeiro é um tema das Escrituras, o segundo uma filosofia. Dois exemplos:

1) A teologia da prosperidade usa como princípio arquitetônico a prosperidade material (um tema das Escrituras) e como princípio hermenêutico a confissão positiva (uma “filosofia”); 2) A teologia de Bultmann usa como princípio arquitetônico a Palavra de Deus (um tema das Escrituras) e como princípio hermenêutico o existencialismo de Heidegger (uma filosofia).

Assim também foi com Theilhard Chardin (Cristo/evolução), Karl Rahner (encarnação/tomismo transcendental), Bonhoeffer (amor ao próximo/secularização), etc. Quem estiver interessado em ler mais sobre o assunto, sugiro a seguinte obra (muito didática e repleta de exemplos): MONDIN, Battista. Antropologia teológica. São Paulo: Paulinas, 1979.



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 15 de junho de 2020

AS DUAS ARCAS DA ALIANÇA: MILITAR E RITUAL

Embora a tradição cristã enxergue no texto do AT referências a uma arca da aliança apenas, tanto a tradição rabínica quanto a crítica das fontes notam a presença de duas arcas: uma arca militar e uma arca sacerdotal. De acordo com o Rabbi Tzemah Yoreh, em artigo publicado no TheTorah, a arca militar teria sido convertida em arca ritual pelos sacerdotes com o propósito de “domar” um objeto mágico problemático, transformando-o em móvel do templo. O mesmo teria acontecido com outros objetos, como o Éfode e o Urim e o Tumim: antes, instrumentos da atividade divinatória; depois, elementos da roupa dos sacerdotes. Leia mais clicando aqui.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 4 de junho de 2020

CAIM E ABEL, POR WILLIAM BLAKE


Um Adão assombrado, uma Eva em prantos, um Abel desfalecido e um Caim arrependido (?) ilustram esta tela fantasmagórica do mestre William Blake (~1805). Muito mais aqui.


Jones F. Mendonça