sábado, 27 de abril de 2019

PULSÃO, ÓDIO, PAIXÃO, TRANSBORDAMENTO

O verbo “transbordar”, em hebraico, é “SHUQ”. Ele aparece, por exemplo, em Jl 2,24: “os lagares transbordarão (shuq) de vinho”. Um substantivo derivado deste verbo é “teSHUQah”, encontrado em apenas três passagens: “e para teu marido estará a tua teshuqah” (de Eva em relação a Adão; Gn 3,16), “à porta está estendido o pecado e contra ti está a teshuqah dele” (do pecado em relação a Caim; Gn 4,7) e “eu sou do meu amado e sobre mim está a teshuqah dele” (do amado em relação a amada; Ct 7,10). O termo designa uma pulsão, um desejo. Por alguma razão (que não é difícil compreender) os hebreus viam essa excitação (positiva ou negativa) como um “excesso”, como um “transbordamento”.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 25 de abril de 2019

QUAL A ORIGEM E O SIGNIFICADO DA EXPRESSÃO "PAIXÃO DE CRISTO"?

Muita gente pensa que a expressão “paixão de Cristo” serve para indicar o “amor”, a “paixão” de Cristo pelos pecadores. Não é nada disso. A palavra portuguesa “paixão” vem do latim “passio”, tradução do grego pathos (uma perturbação, emocional ou física). Assim, “passio” pode ser usado para indicar “sofrimento” ou “dor”. O francês “passion d’amour”, por exemplo, significa “dor de amor”. Quando dizemos que uma pessoa está “apaixonada”, queremos com isso indicar que está “sofrendo de amor”. Então não esqueça: “Paixão de Cristo” é o mesmo que “Sofrimento de Cristo”.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 24 de abril de 2019

DO NIILISMO HERMENÊUTICO


A imagem de um copo com 50% de seu volume ocupado por água tem sido usada para legitimar a filosofia relativista que sugere ser impossível descrever a realidade de forma objetiva. Afinal, um copo nesta condição está “meio cheio” ou “meio vazio”? A resposta é simples: se a situação foi alcançada após o enchimento do copo, então está meio cheio. Se foi alcançada após seu esvaziamento, então está meio vazio. A resposta está na história do copo. Sem sua história temos apenas um copo preenchido com água até a metade.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 15 de abril de 2019

GÊNESIS 2: NÃO É “ALMA VIVENTE”, É “GARGANTA VIVA”

O capítulo 2 do Gênesis descreve a criação do homem a partir de um punhado de terra. Ele ganha vida quando Javé Elohim (o Criador) sopra em suas narinas sua neshemah (seu “hálito”). Esse hálito passa por sua néfesh (garganta) e lhe dá vida. Uma tradução honesta nos permite visualizar a cena:
Então Javé Elohim modelou o homem com a argila do solo,insuflou em suas narinas um hálito (neshemah) de vida
e o homem se tornou uma garganta (néfesh) viva (Gn 2,7).
O corpo sem vida torna-se “garganta viva” (e não “alma vivente”). Isso significa que a partir da recepção do hálito divino ele respira, fala, grita, come, bebe, deseja. A ideia de que o corpo que é habitado por uma “alma” ou por um “espírito” é estranha à tradição judaica. O corpo é simplesmente animado pelo hálito (neshemah) ou sopro (ruah) divino. Caso o Criador recolha sua neshemah/ruah, o homem volta a ser pó.

Note que os dois termos aparecem como sinônimos em Jó 34,14-15:

Se levasse de novo a si a sua ruah (“sopro” e não “espírito”), 
se concentrasse em si a sua neshemah (“hálito”, sinônimo de “sopro”)
expiraria toda a carne no mesmo instante,
e o homem voltaria a ser pó.

Eclesiastes reforça essa ideia quando diz que o pó (referindo-se ao corpo) volta à terra e a “ruah” (o sopro divino) volta ao Criador por ocasião de sua morte (Ecl 12,7). Ainda não há qualquer indício de vida eterna. Eclesiastes diz claramente que os mortos não têm recompensa, nem memória (9,5), nem reflexão, nem sabedoria (9,10). A doutrina da vida eterna é desenvolvida aos poucos e só aparece claramente em Dn 12,2:
E muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e desprezo eterno.
Repare que o texto não fala da “imortalidade da alma” (uma crença grega presente nos escritos de Platão, como no “Fédon”), mas da ressurreição DO CORPO. Aliás, o credo de Niceia (325 d.C.) reafirma a crença na ressurreição com muita clareza: “Esperamos a ressurreição dos mortos; e a vida do mundo vindouro”.



Jones F. Mendonça

domingo, 14 de abril de 2019

JEROBOÃO E SISAQUE/SHESHONQ

Apresento aqui um resumo de matéria publicada no Haaretz (por Ariel David, 14/04/19) sobre a incursão do faraó Sisaque em Canaã e sua possível relação com a formação do reino do Norte: 

De acordo com a Bíblia, no quinto ano do reinado de Roboão (por volta de 925 a.C.), um faraó chamado Sisaque (ou Sheshonq) atacou Jerusalém, saqueou a cidade e “tirou os tesouros da casa de Javé e os tesouros da casa do rei”(1 Reis 14,25-26). 

Um texto em Karnak e um bloco de pedra encontrado em Megido mostram que a campanha não foi uma simples incursão, mas um esforço muito mais amplo para restaurar a hegemonia do Egito sobre Canaã e outros territórios que haviam sido governados pelos faraós durante o Império Novo (do século 15 a.C. ao século 12 a.C.).

É apenas uma teoria, mas o arqueólogo israelense Israel Finkelstein apresenta várias pistas que sugerem que o nascimento do Reino do Norte de Israel foi o resultado de arranjos políticos organizados por Sheshonq no rescaldo de sua campanha. Uma das principais peças desse jogo político seria Jeroboão. 

Jeroboão, primeiro rei do Norte, é descrito como um oficial que liderou uma rebelião fracassada contra Salomão e encontrou refúgio na corte de Sisaque para escapar da ira do rei israelita (1 Reis 11). Ele então retornou a Canaã ao ouvir falar da morte de Salomão e liderou o povo contra Roboão, formando o reino do Norte (1 Reis 12).

Na Septuaginta, primeira tradução grega da Bíblia, existem versículos adicionais sobre a permanência de Jeroboão no Egito que não foram incluídos no texto hebraico canônico. Nesta versão, a conexão de Jeroboão a Sisaque/Sheshonq é ainda mais forte: ele se casa com a cunhada do faraó, que lhe dá um filho. A história talvez contenha uma memória histórica. 

Para resumir a teoria de Finkelstein, o nascimento do Reino de Israel pode ter acontecido assim: Sheshonq seguiu para Canaã, viu os habitantes arrogantes das terras altas como uma ameaça, então os conquistou e instalou um governante vassalo sobre eles: Jeroboão.


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 11 de abril de 2019

SOBRE O VERBO HEBRAICO "HUL"

Uma das características mais curiosas da língua hebraica é a quantidade de sentidos que uma palavra pode indicar. O verbo “hul”, por exemplo, pode ser traduzido por “esperar”, “angustiar-se”, “dançar”, “sentir dor”, “gerar (um filho)”, “se contorcer” ou “girar”. Parece estranho, mas há uma explicação para isso.

“Hul” indica, em seu sentido mais primitivo, um movimento circular. Por desdobramento pode designar algo que se contorce. Isso explica o uso do verbo para indicar uma ESPERA ANGUSTIANTE ou a o ato de GERAR UM FILHO, pois nessas condições temos a sensação de que nosso ventre de contorce. Veja:

Ele ESPEROU (no original, “contorceu-se”) ainda outros sete dias e soltou de novo a pomba fora da arca (Gn 8,10).

Olhai para Abraão, vosso pai,
e para Sara, aquela que vos DEU À LUZ (no original, “se contorceu”, cf. Is 51,2).

Em alguns casos o verbo é usado para indicar o movimento corporal de uma dança:

Espiareis e, logo que as filhas de Silo saírem para DANÇAR (no original, “se contorcer”) em seus bailados... (Jz 21,21)”.

Você percebe que encontrou o sentido original de uma palavra hebraica quando ela se encaixa em todos os textos em que aparece. E esse sentido não é encontrado em dicionários, mas pela investigação do termo em diversos textos e pela busca da raiz da palavra. Um exercício divertido.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 9 de abril de 2019

A "CASA DE DAVI" NA ESTELA DE TEL DAN


Em 1993 um grupo de arqueólogos descobriu na região de Tel Dan (norte de Israel) uma estela que celebra a vitória do rei de Damasco sobre a “Casa de Davi”. O artefato – datado para o século VIII a.C. – seria a primeira evidência extrabíblica da existência do rei Davi. Bem, ocorre que o hebraico não possuía vogais, por isso a tradução geralmente não é fácil. Na inscrição aparecem as seguintes consoantes: BYT DVD. Inserindo as vogais (em azul) podemos lê-la como BeYT DaViD (“Casa de Davi”) ou como BeYT DoD (“Casa do amado”). A expressão “Casa de Davi” seria uma referência à dinastia davídica (como “casa de Jeroboão”, cf. 1Rs 13,34). A expressão “Casa do Amado” seria uma referência à Jerusalém (como “casa do Sol”, cf. Js 15,10).

Saiba mais sobre Davi e a estela contendo as consoantes de seu nome lendo este artigo de Thomas L. Thompson.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 5 de abril de 2019

SUBMISSÃO E MODÉSTIA EM PAULO E ROMA

Em 1Tm 2,9-15 Paulo dá a Timóteo algumas recomendações relativas às mulheres (vestuário e submissão ao homem) que estão bem de acordo com a cultura predominante na Antiga Roma.

O discurso (misógino) abaixo, proferido por Marco Catão em 195 d.C., foi uma resposta a um protesto de mulheres contra uma lei que impunha a elas restrições ao vestuário e uso de joias. Os temas são os mesmos:

“Nenhuma proibição dos maridos podia retê-las em casa. [...] Do jeito que as coisas estão, nossa liberdade, derrubada em casa pela indisciplina feminina, está sendo esmagada e pisada também aqui, no Fórum. [...] as mulheres tinham de estar sob o controle de pais, irmãos e maridos” (BURROW, John. Uma história das histórias, 2013, p. 135).



Jones F. Mendonça

SEXO E GÊNERO NO LEVÍTICO

Neste artigo, publicado no The Torah, a Dr. Kristine Henriksen Garroway sugere que o período de purificação da mãe no Levítico (12,1-7), diferenciado para o nascimento de meninos (40 dias) e meninas (80 dias), servia como uma espécie de anúncio ritual do gênero, tal como ocorria na civilização hitita.


Embora entre os hititas o período também seja diferenciado, não indicava o tempo de purificação da mãe, mas o espaço de tempo entre o nascimento e a oferta (chamada de “mala”). Veja:

Q“[uando a mulher] dá à luz, [...] eles realizam a oferta de mala […] do recém-nascido [macho] no sétimo dia”.

“Mas [se] uma criança feminina nasce, [então] daquele mês eles contam [quarto] meses de [arriv] e então eles purificam a criança do sexo feminino...”.

Na civilização ocidental moderna fazemos a diferenciação ritual de gênero vestindo machos com azul e fêmeas com rosa. A cor indica o papel social desejado pelos pais.

Leia mais aqui


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 4 de abril de 2019

PODCAST COM RAPOSA ESCATOLÓGICA

Embora o primeiro podcast brasileiro tenha surgido em 2004, só agora (15 anos depois) fui seduzido por essa nova forma de adquirir conhecimento. Para quem se interessa por teologia, indico “oestadodaarte.com.br”. Hoje, enquanto fazia minha caminhada matutina (até encontrei uma raposa!), ouvi “O livro do Apocalipse”, com a participação de José Adriano Filho, Kenner Terra e Paulo Nogueira. O áudio dura 58 minutos, por isso acabei caminhando mais do que o normal. 



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 3 de abril de 2019

SOBRE O NOME "JOÃO"

De acordo com o evangelho de Lucas, Elisabeth deu a seu filho o nome “João”, mesmo não sendo um nome comum na família (Lc 1,60). “João” é forma portuguesa do grego “Ioannes” (tal como aparece no NT), que por sua vez deriva do hebraico Iohanan, junção de “Io” ou “Yo”(forma abreviada do nome divino) + hanan (gracioso) = “Deus é gracioso” (ver Jr 40,13). Maria, em Lc 1,30, é tratada como “aquela que encontrou graça diante de Deus”. João carrega em seu nome a mesma graça que recaiu sobre a mãe de Jesus.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 2 de abril de 2019

CONSIDERAÇÕES SOBRE O NOME DIVINO

De acordo com o Êxodo, o Deus de Israel era conhecido pelo povo como o “Deus dos pais” (Abraão, Isaque e Jacó). O texto também informa que o nome divino só foi revelado a Moisés em Ex 3,15: “YHVH” (o hebraico primitivo não possuía vogais). Assim, sem vogais, o nome é impronunciável.

A partir do século VI d.C., um grupo de judeus chamados massoretas inseriu vogais no texto. Nesse texto vocalizado o nome divino aparece grafado de formas diferentes (sempre com as mesmas consoantes): YaHVeH (Gn 2,4), YeHVaH (Ex 3,15), YeHoViH (Is 50,4),  YeHViH (Gn 15,2). Sim, é estranho.

Há duas hipóteses para essa variação vocálica: 1) os massoretas não conheciam mais a pronúncia correta; 2) Eles variavam a vocalização para evitar a pronúncia do nome sagrado. Ainda hoje, quando os judeus se deparam com o nome divino por ocasião da leitura do texto, trocam YHVH por Adonai (Senhor).



Jones F. Mendonça