quarta-feira, 27 de maio de 2020

JAVÉ COM NARIZ INFLAMADO

No hebraico bíblico não há uma palavra específica para “ira”. Quando o texto indica uma pessoa perdendo a paciência com outra, diz assim: “E inflamou-se o nariz de Fulano contra Ciclano”. Dois exemplos:

    “E inflamou-se o nariz de Jacó contra Raquel” (Gn 30,2).
    “E inflamou-se o nariz de Javé contra Moisés...” (Ex 4,14).

De modo geral os tradutores trocam “inflamou-se o nariz” por “ficou zangado” ou “ficou irritado”. As "Almeidas" preservam o “acendeu-se/inflamou-se”, mas trocam “nariz” por “ira” (“acendeu-se a ira”).

Bem, no fundo o sentido acaba sendo preservado, mas se você quer entrar na cabeça, no mundo dos escritores bíblicos, então precisa entender como os hebreus usavam as palavras.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 21 de maio de 2020

O CÂNTICO DE DÉBORA SEM CORTES

O livro bíblico de juízes, no capítulo 5, contém um dos mais belos poemas da Bíblia. No v.28 a mãe de um general que lutou contra as tribos de Israel lamenta a demora de seu filho. Ela se debruça sobre a janela e diz: “por que tanto tarda o seu carro a vir?”. O leitor já sabe a resposta: o general, filho desta mãe preocupada, está morto. Mas ela alimenta a expectativa por um cenário melhor para seu filho. Leia com atenção (tradução da Bíblia de Jerusalém):
É que sem dúvida demoram em repartir os despojos:
uma jovem, duas jovens para cada guerreiro!
Finos tecidos bordados e coloridos para Sísara [nome do general],
um enfeite, dois enfeites para meu pescoço!
Duas observações: o texto não diz “jovens/jovens”, mas “ventre/ventres”. Cada guerreiro toma para si mais de um "ventre", ou seja, mais de uma jovem para que se torne seu objeto de prazer. 

Outra coisa. Os “enfeites” do último verso não são para o “meu pescoço” (da mãe esperançosa). O texto diz claramente “para o pescoço do despojo”, ou seja, para o pescoço das jovens (ou melhor, dos “ventres”) que foram tomadas como despojo.




Jones F. Mendonça

quarta-feira, 20 de maio de 2020

CORCUNDAS, ANÕES, VESGOS E CASTRADOS NO LEVÍTICO

O livro bíblico de Levítico lista no capítulo 21 uma série de características físicas que impedem o ingresso de pessoas no ofício sacerdotal. No verso 20 aparecem alguns exemplos: o corcunda, o anão, o doente dos olhos e a pessoa de testículo esmagado. Bem, eu reproduzi aqui as palavras mais comuns empregadas para traduzir os termos hebraicos que aparecem no verso.  

A palavra traduzida por “corcunda” na verdade indica alguém que é “torcido” (o que seria isso?). A segunda palavra, traduzida por “anão” apenas indica alguém que é mirrado ou magro demais (será que fala mesmo de um anão?). Na sequência aparece uma expressão que significa algo como “olho confuso” (seria um olho lacrimejante? Torto? Embaçado? Um vesgo?!).

O exemplo mais curioso aparece na dobradinha: “testículo esmagado”. O problema é que elas surgem na Bíblia apenas neste verso. A palavra traduzida por “testículo” possui a mesma raiz da palavra hebraica para “cacho” (seria uma referência aos “TESTÍCULOS”?). A palavra traduzida por “esmagado” vem da mesma raiz de um verbo que aparece em Is 38,21: “bolo de figos -----” (ESMAGADOS?). Neste caso a referência seria a um eunuco?

Eu sei que você tem na sua casa uma Bíblia antiga, de estimação, talvez uma Almeida. E que você jura que este verso na tradução dela é a mais correta. Mas não se engane. A grande verdade é que o sentido original desses termos talvez tenha se perdido no tempo.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 12 de maio de 2020

O BEIJO DE JUDAS NA ARTE MEDIEVAL

Fonte: Wikimedia Commons
Nesta ilustração, do século XV, os eventos associados à prisão de Jesus se concentram numa só cena, prática comum na arte medieval: 1) Judas denuncia a identidade de Jesus com um beijo (Lc 22,47); 2) Um dos discípulos percebe a arapuca, saca sua espada e corta a orelha do servo do sumo sacerdote (Lc 22,50); 3) Jesus cura a orelha do servo (Lc 22,51); 4) Jesus se entrega às autoridades judaicas (Lc 22,53). O evangelho de João oculta o beijo, mas dá nomes ao “discípulo sangue quente” (Pedro) e ao servo do sumo sacerdote (Malco, cf. Jo 18,10).



Jones F. Mendonça

domingo, 3 de maio de 2020

AZAZEL E OS RITUAIS APOTROPAICOS

No livro bíblico de Levítico a interpretação de um ritual muito estranho divide exegetas. O bode enviado ao deserto “para azazel” (16,21), significa o quê exatamente? Possibilidades: 1) “Para azazel” indica o local para onde era enviado o bode (cf. tradição rabínica); 2) “Para azazel” indica o papel desempenhado pelo bode (seria um bode “emissário”, o que lembra o ritual judaico moderno do kaparot); 3) “Para azazel” indica o nome do demônio a quem o bode era enviado (é o que pensa, por exemplo, Jacob Milgrom).

Muita gente não se dá conta de que Lv 14 descreve um ritual muito parecido, porém realizado com aves e não com bodes. Também é possível encontrar paralelos entre o ritual israelita e outros, feitos por povos como os eblaítas, hititas, ugaríticos e neoassírios. Caso você queira conhecer um pouco mais o assunto, eu sugiro a leitura deste artigo, publicado no TheTorah.com (o texto é assinado por Noga Ayali-Darshan).

E caso queira assistir a um filme que coloca Azazel como um demônio, sugiro “Possuídos” estrelado por Denzel Washington (o filme é de 98). No filme, inspirado no Levítico, Azazel possui corpos humanos.



Jones F. Mendonça