sábado, 26 de agosto de 2023

OS REPHAIM E A NECROMANTE DE ENDOR


1. Na religião dos cananeus os rephaim eram reis mortos deificados, habitantes do submundo. Sabemos disso a partir da descoberta do chamado “Ciclo de Baal”, um conjunto de textos religiosos encontrados nas ruinas da antiga Ugarit (atual Síria), cidade descoberta acidentalmente por um agricultor no final da década de 1930.

2. Os rephaim aparecem na Bíblia Hebraica em diversos textos, como em Jó 26,5: “os rephaim se contorcem debaixo da terra...”. O livro do profeta Isaías (14,9) apresenta o mundo dos mortos despertando os rephaim para receberem o rei da Babilônia: “O Sheol se agita por causa de ti... para receber-te despertou os rephaim”.

3. Muita gente acha estranho que a necromante de 1Sm 28,13 trate o espectro do morto que "sobe da terra” como um “elohim”. O termo mais adequado seria “rephaim”, um rei divinizado invocado dos mortos para anunciar o futuro. Embora seja verdade que Samuel não era exatamente um rei, a função que ocupava elevava-se acima dos reis.

4. Mas por que o texto chama um defunto invocado de “elohim” e não de "rephaim"? Ora, se eram autoridades divinizadas, faz todo o sentido tratar esses rephaim como um “elohim” ( = uma divindade). Elohim é termo com significado bastante versátil: serve para indicar Yahweh, divindade tutelar de Israel, membros da corte celeste, divindades estrangeiras e até um rei (cf. Sl 45,6).

5. Além de "elohim" e "rephaim", o espírito de um defunto invocado por uma necromante poderia ser chamado de "ov", como em Is 29,4: "a tua voz será como a de um OV que se encontra debaixo da terra. O teu falar será um murmúrio que brota do chão".


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

AS TROVOADAS DE EDOM

Arte produzida por IA

1. Quatro textos da Bíblia Hebraica situam no Sul do Levante ( = de Canaã) a origem de Yahweh: Jz 5, Dt 33, Hab 3 e Sl 68. Além da indicação geográfica, esses textos também apresentam Yahweh como uma divindade guerreira, associada à tempestade, e que sai à frente do seu povo contra os inimigos. De acordo com o Livro do Profeta Habacuque, o segredo da sua força está no “nos raios que saem da sua mão” (3,4). O aguaceiro que se derrama é tão forte que chega a “fender o solo”, desnudando os fundamentos da terra “até a rocha” (3,9.13).

2. Além dos raios e da torrente, Yahweh utiliza outros instrumentos na batalha: à sua frente avança a peste (Deber?); na retaguarda quem o acompanha é a febre (Reshef?). Todo esse movimento desperta no profeta um grande terror: “agitam-se minhas entranhas, meus lábios tremem, penetra a podridão nos meus ossos, meus passos vacilam”. A poesia hebraica valoriza, com sua extrema concretude, os reflexos do pavor do profeta em sua estrutura física: suas entranhas, seus lábios, seus ossos, seus pés... Todo o seu corpo entra em colapso diante do poder de Yahweh.

3. Esta tradição poética, dotada de traços de memória bastante antigos, é utilizada em contextos diferentes na Bíblia Hebraica. Em Habacuque funciona como canto de vitória sobre os caldeus, povo mesopotâmico que ameaçava Judá com sua força no final do século VII; Em Juízes celebra a vitória de Débora e Barak sobre o exército de Sísera, general de Jabin, rei de Hazor, cidade ao Norte do Mar da Galileia; No Deuteronômio foi inserida na bênção de Moisés, proferida pelo patriarca antes de morrer; No Salmo dirige-se a todos os povos que "têm prazer na guerra” (68,30).

4. Uma só tradição poética, quatro sentidos. Os hebreus eram mestres na arte da ressignificação.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

YAHWEH COM TETAS E VENTRE


1. A partir do capítulo 12, o Livro do Gênesis basicamente se detém na história de Abraão, Isaac, Jacó e José. O capítulo 50, o último do livro, expõe ao leitor a morte de Jacó e José, seu filho. Ambos são embalsamados de acordo com a tradição funerária egípcia (50,2.26). Mas antes de morrer, no capítulo 49, Jacó anuncia uma série de bênção aos filhos.

2. A bênção, marcada por extrema beleza poética, dedica alguns versos a José, filho outrora perdido, mas reencontrado. O texto fala de arcos quebrados, de nervos rompidos, de flores, de espinhos, de colinas verdejantes. Tudo muito bonito e magistralmente pensado. No v. 25 o leitor se depara com a seguinte declaração:
Pelo El de teu pai, que te socorre,
por Shaddai que te abençoa:
Bênçãos dos céus no alto,
bênçãos do abismo deitado embaixo,
bênçãos das MAMAS [שדים]
e do VENTRE [ורחם].
4. Trocando em miúdos: é bênção para todo o lado. Chama a atenção o emprego de “mamas” e “ventre” na última linha, uma vez que é rara a apresentação de Yahweh com atributos femininos na Bíblia Hebraica. Eles enfatizam um Deus que dá suporte tanto na geração de filhos como no seu sustento (veja os reflexos em Lc 11,27 e Lc 23,29).

5. Alguns tradutores, talvez escandalizados com a descrição de Yahweh como uma divindade dotada de atributos exclusivamente femininos, substituem “mamas” por “fartura", e “ventre” por "fertilidade" (NVI). A NTLH foge completamente do assunto: “bênçãos de muitos animais e muitos filhos”(!!?).



Jones F. Mendonça