sábado, 29 de julho de 2023

ICONISMO A ANICONISMO NO ANTIGO ISRAEL

1. Quando examinados com o devido cuidado, alguns textos da Bíblia Hebraica revelam ser frágil a difundida crença no culto anicônico em Jerusalém no período do Primeiro Templo. Assim como Ea ou Marduk na Babilônia; El, Athirat e Baal em Ugarit, o culto em Jerusalém comportava a presença de uma representação de Yahweh. Em Israel, no Norte, o iconismo é evidente.

2. A confecção da representação do bezerro, ordenada por Jeroboão, não era mero pedestal de Yahweh (ou de outra divindade), mas uma imagem de culto zoomórfica de Yahweh, tal como ocorria com El, igualmente representado por um bovino. Note que Jeroboão relaciona o bezerro à mesma divindade que fez o povo “sair da terra do Egito” (1Rs 12,28).

3. Talvez você esteja se perguntando: mas que textos evidenciam a presença de uma representação de Yahweh no Templo de Jerusalém? Um bom exemplo pode ser tomado do Sl 17,15: “Quanto a mim, com justiça eu verei tua FACE / ao despertar, eu me saciarei com tua IMAGEM”. O paralelismo semântico, “face” (paniym) e “imagem” (temunah), sugere a presença de uma imagem no Templo.

4. Lançando mão de outro paralelismo, o Sl 63 claramente relaciona essa imagem ao Templo: “Quero contemplar-te no santuário / avistar o teu poder e a tua glória”. Alguns textos indicam a existência de procissões nas quais Yahweh era introduzido no Tempo: “Abram-se, ó portais; abram-se, ó portas antigas, para que o Rei da glória entre” (Sl 24,7.9).

5. Mas o que teria levado os judaítas a adotarem o aniconismo no período pós-exílico? Para Herbert Niehr, a mudança ocorreu devido a dois movimentos: 1) Como consequência da destruição do Templo (e da imagem de Yahweh), o trono divino foi deslocado para os céus, novo local de sua morada. Apenas seu nome passou a habitar na terra, como uma espécie de hipóstase.

6. 2) A presença divina na terra também foi pensada a partir de sua kabod, sua glória. Ela enche o Templo para sempre, substituindo a antiga estátua destruída. Alguns círculos sacerdotais, incapazes articular sua fé sem a presença de algum tipo de símbolo cultual da presença de Yahweh, introduziram a Menorah em suas cerimônias religiosas (Ex 25,31).

7. Você pode ter acesso à hipótese de Herbert Niehr consultando a seguinte obra: NIEHR, Herbert. In search of YHWH's Cult Statue in the First Temple. In: VAN DER TOORN, Karel (ed.). The image and the book: iconic cults, aniconism, and rise of Book religion in Israel and the Ancient Near East. Leuven: Peeters Publishers, 1997, p. 73-95. Boa leitura.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 28 de julho de 2023

POR QUE OS DEUSES HABITAM NOS CÉUS?


1. Os antigos hebreus, como qualquer outro povo, usavam elementos de seu mundo particular para expressar a relação com a divindade. Assim, são comuns na Bíblia Hebraica descrições de Yahweh em diálogo com as imagens sociais de “pai”, “senhor”, “guerreiro”, “rei”, “redentor”, etc. Em alguns casos essas imagens vinham das coisas fabricadas pelo homem, tais como “fortaleza”, “escudo”, etc. Outras podiam ser tomadas da natureza: “meu Deus é a rocha em que me abrigo” (Sl 94,22).

2. Mas além dos contextos sociais e ambientais, essa relação inevitavelmente alcançava uma dimensão espacial mais ampla, expressa em três níveis: o céu, a terra e o subsolo. De modo geral os deuses benéficos mais elevados do panteão viviam nos céus (como El Elyon); divindades guerreiras podiam habitar na terra, em montanhas elevadas (como Baal); e divindades maléficas habitavam o submundo (como Mot ou Yam). Do submundo também podiam emergir criaturas teriomórficas como Lotan/Leviatan.

3. Ciente dessa divisão tripartida e impulsionado por aspirações anicônicas e monolátricas, o livro do Deuteronômio faz o seguinte alerta: "Não farás para ti nenhuma escultura, nenhuma imagem de qualquer coisa NO CÉU, NA TERRA ou NAS ÁGUAS DEBAIXO DA TERRA” (Dt 5,8). Bem, como ando bastante interessado na dimensão espacial dos céus nas religiões do Antigo oriente Próximo, dedico parte do meu tempo ao livro “The Early History of Heaven”, escrito por J. Edward Wright.

4. O autor é professor de Bíblia Hebraica e cristianismo primitivo na Universidade do Arizona


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 27 de julho de 2023

A TERRA DOS MORTOS E A TERRA DOS VIVOS


1. Nas cidades, a posse dos espaços é indicada pela presença de muros; nos campos, de cercas; nos mares, de linhas imaginárias, as milhas náuticas. Em cidades como Jerusalém os espaços podem ser reivindicados a partir da presença de túmulos, afinal não atuam eles como memoriais, como gavetas caiadas, como janelas para o passado?

2. Um exemplo pode ser buscado em 2004, quando os partidários do líder palestino Yasser Arafat tentaram uma autorização para enterrá-lo na Cidade Santa. Yosef Lapid, Ministro da Justiça de Israel à época, rejeitou o pedido com o seguinte argumento: “[Jerusalém] é uma cidade onde os judeus enterram seus reis”.

3. O episódio despertou na teóloga britânica Francesca Stavrakopoulou o desejo de investigar a relação entre vivos e mortos na antiga cultura israelita. E foi assim que nasceu: “Land of our fathers: the roles of ancestor veneration in biblical land claims” (Terra de nossos pais: os papéis da veneração dos ancestrais nas reivindicações bíblicas de terras).

4. A moça também é autora de "God: an anayomy" (Deus, uma anatomia).


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 26 de julho de 2023

ARJUNA EM TERRASSECA



Arjuna cismou de conhecer o deserto de Terrasseca. Fez a viagem aconselhado por Sanjaya, cunhada de sua tia Odara. Tomou o avião e desembarcou no aeroporto de Pinossolto. O céu do lugar até tinha nuvens, mas eram nuvens secas; até tinha lagos, mas eram lagos insalubres; até tinha árvores, mas eram árvores sem flor, sem fruto e com raízes amargas. Percebeu, após longa jornada, que era possível encontrar na região alguma fagulha de esperança, mas era esperança projetada em horizontes absolutamente inalcançáveis. Angustiado, resolveu voltar para casa. Só então percebeu que o aeroporto fora tragado para o coração da terra. Arjuna sentou-se então para chorar, mas de seus olhos não saía água. Eram agora olhos secos, como tudo que o cercava.


Jones F. Mendonça

PARÁGRAFOS

1. Adquiri o costume de escrever parágrafos numerados com Osvaldo Luiz Ribeiro, que ordenava seus pensamentos assim em seu Blog, Peroratio, hoje em inatividade. Esta prática me ajuda a ordenar os pensamentos, a encadear melhor as ideias. Nietzsche fazia algo parecido, mas os parágrafos preservavam poucos vínculos entre si. Seu cérebro era dinamite (como o de Osvaldo).

2. Com o tempo comecei a desenvolver certa obsessão pelo formato dos parágrafos: curtos e com a mesma quantidade de linhas. Deixar um parágrafo um pouco maior ou menor que os outros é algo que logo me aborrece. Então quebro a cabeça para eliminar ou acrescentar palavras sem que o texto fique prolixo ou incompreensível. Gosto do laconismo espartano.

3. Os dois parágrafos acima têm, respectivamente, 57 e 57 palavras; 314 e 292 caracteres; 05 linhas (no meu PC). Estão dentro do limite esperado. Mas este último, com apenas 03 linhas, já vai me deixando aborrecido😊




Jones F. Mendonça

OS OLHOS EM JÓ


1. No livro de Jó os olhos desempenham papeis variados com a finalidade de potencializar a força poética dos versos. Defendendo-se da acusação de que seu sofrimento era causado por alguma falta, Jó diz assim: “fiz um pacto com MEUS OLHOS para não olhar para uma virgem” (31,1). Aqui, como em diversos outros momentos, Jó expõe as incoerências da lógica da retribuição. Enfim, “como posso estar sendo punido se meus olhos sempre se desviaram do mal?”

2. Em 29,15, mais uma vez destacando suas ações sempre dispostas para o bem, Jó recorre à imagem dos olhos, que vêm acompanhados dos pés: “eu era OLHOS PARA O CEGO, e pés para o coxo”. No verso seguinte ele acrescenta: “eu era o pai dos pobres...”. Ora, pergunta-se mais uma vez o servo sofredor, “se fiz o que era justo, por que sofro? Por que Shadday pisa sobre mim como o grão na moenda; esmaga-me como a lama das ruas?”.

3. Em 10,5, reconhecendo que a natureza divina é absolutamente distinta da dos homens, o personagem que dá nome ao livro faz a seguinte pergunta retórica ao Supremo Juiz: “porventura tens OLHOS DE CARNE, ou vês com veem os homens?”. Em sua angústia, como Jeremias perseguido por seus opositores, Jó lamenta: “MEUS OLHOS se consomem na angústia, meus membros definham como sombra”. É significativo que em 42,5 os olhos reapareçam, mas sob nova condição:
“Conhecia-te só de ouvido,
mas agora MEUS OLHOS te veem”.
4. Mas o que Jó vê exatamente? A que tipo de conclusão ele chega? Considerando que a nova percepção de Jó acerca da divindade é inserida no ambiente de uma tormenta (סערה; cf. 38,1), certamente o que ele vê não é um Deus que pode ser domado, que pode ser esquadrinhado pelos olhos e pelas lentes da teologia sistemática. Assim, o que ele vê é um Deus que se comporta de forma imprevisível, que agita violentamente a poeira das estepes em dia de ventania. No meio dessa tempestade Jó se vê como pó, como cinza que rodopia ao sabor do vento. E só.



Jones F. Mendonça