sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

JÓ E A TEOLOGIA DA RETRIBUIÇÃO

1. Sofar de Naamat olhou para o Jó moribundo e disse assim: “Não sabes que o júbilo dos ímpios é efêmero e a alegria do malvado só dura um instante?” (20,4-5). E acrescentou, olhando de forma desdenhosa as feridas de Jó: “Esta é a sorte que Deus reservou ao ímpio” (v. 29).

2. Desafiando a teologia da retribuição, segundo a qual o sofrimento só se explica como resultado de alguma falta, Jó respondeu: “Então por que os ímpios continuam a viver, e ao envelhecer se tornam ainda mais ricos?” (21,7).

Jó padecia do corpo, mas não do cérebro.


Jones F. Mendonça

O BEIJO NA BÍBLIA

1. Faço investigações a respeito das demonstrações de afeto no Antigo Testamento, particularmente do beijo. É possível encontrar beijos paternos (Gn 31,55), beijos ardentes (Ct 1,2), beijos de reconciliação entre irmãos (Gn 34,4), beijos de despedida no leito de morte (Gn 50,1), beijos entre sogra e noras (Rt 1,9.14) e até beijos entre homens guerreiros (1Sm 20,41).

2. Em minha pesquisa também procurei saber como as versões traduzem tais textos. Para minha surpresa a Bíblia de Jerusalém troca “nashaq” (beijo, em hebraico) por “abraço” quando Jônatas beija Davi (1Sm 20,41 – além de se beijarem, choram copiosamente) e quando Noemi beija suas noras (Rt 1,9.14). Faz isso certamente para evitar que o leitor veja nos versos qualquer indício de relação homoafetiva.

3. Na epopeia de Gilgamesh, uma das histórias mais antigas da terra, o herói Gilgamesh chora amargamente enquanto se despede de seu inseparável amigo Enkidu, morto por derrotar o touro celeste enviado pela deusa Ishtar. Não seria prudente dizer, de forma precipitada, que Enkidu e Gilgamesh (e Davi e Jônatas) desenvolveram uma relação homoerótica. Ao mesmo tempo não é honesto torcer o texto com finalidade moralizante.

4. Quem estiver interessado em ler a história de Enkidu e Gilgamesh em formato HQ, pode encontrar duas obras muito bem ilustradas: “Cânone Gráfico 1” (autores diversos) e “Os melhores inimigos” (Jean-Pierre Filiu). Aos interessados em uma análise da relação entre Enkidu/Gilgamesh; Davi/Jônatas, sugiro: "When Heroes Love: The Ambiguity of Eros in the Stories of Gilgamesh and David", escrito por Susan Ackerman.


Jones F. Mendonça

APOCALIPSES E ANIMAIS FANTÁSTICOS


1. No livro bíblico de Daniel, capítulo 7 (4-7), quatro impérios opressores aparecem representados por animais fantásticos, bestas cujas aparências mesclam características de animais diferentes: leão alado, leopardo policéfalo, etc. No Apocalipse essas bestas ressurgem com um visual ainda mais estranho e sinistro: “a besta que eu via parecia uma pantera: seus pés, contudo, eram como os de um urso e sua boca como a mandíbula de um leão” (Ap 13,2).

2. Representar forças caóticas ou ameaçadoras como animais fantásticos de aparência híbrida era uma prática muito difundida na Antiguidade. No Egito, por exemplo, uma besta com cabeça de crocodilo, membros anteriores de leão e membros posteriores de hipopótamo era usada para representar Ammit, o devorador de mortos (cf. imagem). Como no livro de Daniel a intenção era realçar a capacidade destrutiva das forças que representavam. 

3. Em contraste às quatro bestas malignas, Daniel apresenta em suas visões noturnas um quinto ser. Este, no entanto, não se parece com uma besta, mas com um “bar enash” (do aramaico “filho do homem”). A expressão reaparece em diversos livros bíblicos do AT (cf. Is 51,12; Jr 51,43; Ez 2,1; etc.) para indicar a humanidade do personagem. No caso de Daniel o propósito é mostrar que o quinto ser é de natureza diferente: tinha aparência humana, não bestial, como os demais. 

4. O domínio deste quinto ser, destaca o texto, não será passageiro nem opressor, mas justo e eterno. A mensagem de Daniel é simples, mas para entendê-la é preciso situá-la corretamente no tempo e no espaço. O Apocalipse releu Daniel e deu novo fôlego às esperanças escatológicas. Reler e ressignificar tradições religiosas é algo que faz parte de qualquer religião. Mas ressignificar não é, como muita gente imagina, uma solução para as leituras fundamentalistas. O fundamentalista também saberá reler... para o mal. 


Jones F. Mendonça

A CAPTURA DE SANÇÃO EM GUERCINO


Repare que nesta tela de Guercino as mãos dão movimento à cena da captura de Sansão, que aparece com os cabelos cortados. Eu contei 12 mãos. A única personagem que não exibe mãos é a moça debruçada sobre a coluna. Quem é ela? Nas representações artísticas da captura de Sansão, Dalila por vezes aparece sendo ajudada por outra mulher. Mas qual das duas é Dalila?


Jones F. Mendonça

JESUS COMO “NOVO MOISÉS” E “NOVO DAVI”

1. É bem conhecida a presença de elementos da vida de Moisés na narrativa da natividade apresentada por Mateus: ambos se estabelecem provisoriamente no Egito, ambos escapam da morte ordenada por um rei, ambos passam um período no deserto relacionado ao número 40, etc. Mas Lucas também retoma antigos temas tradicionais do AT.

2. O terceiro evangelho está repleto de referências ao livro de Samuel, personagem que prepara o caminho de Davi, o ungido (messias) de Javé. Note que em Lucas, a história de João Batista se relaciona com a de Samuel: os dois pertencem a uma família de levitas, tanto a mãe de Samuel com de João Batista são estéreis; Ana e Isabel entoam um cântico com vários elementos em comum.

3. Mas as semelhanças não param por aí: Davi nasce em Belém e é ungido por Samuel; Jesus nasce em Belém e é batizado por João Batista. Assim, João Batista funciona como um “novo Samuel” e Jesus como um “novo Davi” (ou um “novo Samuel”, compare 1Sm 2,26 com Lc 2,40). Caso você tenha interesse em conhecer mais paralelos entre o relato da natividade e histórias do AT, visite o site da Biblical Archaeology Society clicando aqui.

 

Jones F. Mendonça