domingo, 31 de maio de 2009

O ABSOLUTISMO E O RELATIVISMO TEOLÓGICO

Por Jones Mendonça

No meio protestante vigora uma tendência obsessiva pela certeza. É o que Rubem Alves denomina Protestantismo de Reta Doutrina (PRD)[1]. Nele não há lugar para dúvidas, a fé deve buscar a certeza, a infalibilidade, o conhecimento absoluto. É por isso que nos primeiros passos um novo convertido já é surpreendido pela pergunta: “tens certeza da tua salvação?”. Por esse modo de pensar, o discurso sobre o objeto (a doutrina protestante) confunde-se com o próprio objeto do discurso (a Bíblia, Deus, a salvação, etc.).
No artigo “Relativismo, certeza e agnosticismo em teologia”[2], escrito pelo pastor Augusto Nicodemos, vemos um belo exemplo da tentativa de transformar a teologia em um paradigma eterno e imutável. Ele faz distinção entre “teologia certa” e “teologia errada”, estabelecendo um evidente contraste entre a “teologia verdadeira”, ortodoxa, baseada nos antigos credos cristãos e nas confissões reformadas, e a “teologia falsa”, heterodoxa, articulada pelos teólogos liberais. Mas como bem analisa Rubem Alves: “heresia e ortodoxia são palavras criadas pelos ortodoxos. Mas [...] ortodoxos são aqueles que tiveram o poder para impor suas idéias. Heresia e ortodoxia têm muito pouco a ver com falsidade e verdade”[3]. Numa matéria publicada num jornal presbiteriano na década de 60 o atrito entre essas duas correstes já se fazia notar:
Duas correntes se chocam, duas mentalidades colidem, duas concepções ideológicas se contrapõem. De um lado estadeia-se a ala representada pelo magistério clássico e tradicional, seguro de suas convicções teológicas [...]. De outro, alinham-se espíritos irrequietos, inconformados, revolucionários, iconoclastas e presumidos, que as auras da atualização mesmerizaram frementes[4].
Logo no início do artigo o autor desdenha um teólogo por ter afirmado que “a teologia é apenas um construto humano, limitado, provisório, subjetivo...”. Mais adiante ele mesmo confessa: “Não me entendam mal. Eu também acredito que a teologia é um construto humano, e como tal, imperfeito, incompleto e certamente relativo (grifo nosso)”. Se a percepção humana da verdade é relativa, como poderemos afirmar que somos os únicos certos? Mas o autor se recusa a aceitar as conseqüências de sua própria conclusão: “reluto em aceitar as conseqüências plenas dessa declaração”.
É verdade que o relativismo absoluto nos conduz a um mundo caótico onde sequer é possível construir uma ética global. Como condenar o infanticídio em alguns países africanos se o “certo” e o “errado” dependem da cultura e da ótica pessoal?
Verdade, mentira, certo, errado. Essa tensa dialética persegue e aterroriza o ser humano. John Dominic Crossan, famoso estudioso do Jesus histórico, assim se expressa em relação a essa tensão presente no pensamento religioso moderno:
A razão e a revelação, ou a história e a fé, ou a reconstrução histórica e a articulação da crença não podem contradizer uma à outra a menos que não estejamos entendendo uma delas, ou ambas [...] Ser humano é viver na sua tensa dialética, e a nossa humanidade pode ser igualmente perdida quando a dialética falha em muito, em qualquer direção[5].
A teologia é mera tentativa de sistematizar a fé, sendo, portanto, falha. A fé vai além da razão, é supra-racional. Toda construção teológica que visa uma confissão de fé é especulativa e serve para dar certa coesão a um grupo, mas jamais deve ser fechada e inflexível. Ao mesmo tempo somos confrontados com a necessidade de estabelecer alguns pontos fundamentais, sem os quais seria impossível construir uma teologia. “Nós não necessitamos nem de uma ditadura do relativismo, nem de uma ditadura do absolutismo”[6], disse certa vez Hans Küng numa entrevista.

A tradução da Bíblia para uma outra língua e o trabalho exegético implicam em uma interpretação. Os pais da igreja interpretavam a Bíblia de acordo com os métodos exegéticos da época. Como bem analisou Rudolf Bultmann:
A reflexão sobre a hermenêutica (sobre o método de interpre­tação) mostra claramente que a interpretação, isto é, a exegese des­cansa sempre em alguns princípios e concepções que atuam como pressuposições do trabalho exegético, ainda que amiúde os intérpre­tes não sejam conscientes disto[7].
No cristianismo dos primeiros séculos a filosofia grega exerceu forte influência na construção dos dogmas de fé cristãos, ainda que muitos negassem tal fato. Hoje há teólogos influenciados pelo marxismo, pela psicanálise, pela filosofia existencialista, e tantas outras correntes de pensamento. Ninguém está isento de influências externas na exegese de um texto.
A vida nos prega peças. Em busca de uma opinião sensata, corajosa e honesta sobre a relação entre o absolutismo e o relativismo me deparei com um dos maiores ícones da ortodoxia moderna, o Papa Joseph Hatzinger, que na época era Cardeal. Confesso que a sua opinião a respeito de certezas teológicas me surpreendeu:
crente e incrédulo, cada qual a seu modo, participam da dúvida e da fé, caso não se ocultem de si mesmos e da verdade da sua existência. Nenhum é capaz de evadir-se completamente à dúvida; nenhum pode escapar de todo à fé. Para um, a fé torna-se presente contra a dúvida; para outro, pela dúvida e em forma de dúvida. Temos aí a figura fundamental do destino humano: ser capaz de encontrar o definitivo de sua existência somente nesse inevitável embate de dúvida e fé, de agressão e certeza[8].
Creio que uma teologia que faça jus ao nome “cristã” não pode abrir mão de que a Bíblia é produto de uma revelação divina, ainda que consideremos que foi escrita em linguagem humana, sendo, portanto, tosca, incompleta e limitada. Também não pode abrir mão que Jesus é Deus revelado, verbo encarnado, homem-Deus entre a humanidade desumanizada pela corrupção da sua consciência. Mas tais verdades essenciais, da forma como foram expostas, são minhas apenas, jamais terei a pretensão de torná-las inflexíveis. Entre a dúvida e a certeza fico com a esperança: “Porque na esperança fomos salvos. Ora, a esperança que se vê não é esperança; pois o que alguém vê, como o espera? “(Rm 8,24).


Notas:
[1] Para Rubem Alves o PRD se caracteriza pelo fato de privilegiar a concordância com uma série de formulações doutrinárias, tidas como expressões da verdade, e que devem ser afirmadas sem nenhuma sombra de dúvida, como condição para participação na comunidade eclesial. Em sua opinião o PRD é predominante na Igreja Presbiteriana do Brasil, apesar de não se restringir a esta denominação.
[2] Publicado originalmente no site: http://tempora-mores.blogspot.com/2009/01/relativismo-certeza-e-agnosticismo-em.html. Acesso em 15 de fevereiro de 2009.
[3] ALVES, Rubem. Religião e repressão, 2005, p. 327.
[4] O Brasil Presbiteriano. São Paulo, Casa Ed. Presbiteriana. Março de 1963, 10 apud ALVES, Rubem. Religião e repressão, 2005, p. 331.
[5] CROSSAN, Dominic. Quem Matou Jesus? As raízes do anti-semitismo na história evangélica da morte de Jesus, 1995, p.249.
[6] Revista do Instituto Humanitas Unisinos. São Leopoldo, 22 de outubro de 2007. Edição 240, p.7.
[7] BULTMANN, Rudolf. Jesus Cristo e a mitologia, 2003, p. 37.
[8] RATZINGER, Joseph. Introdução
ao Cristianismo, 1970, p. 14.

Tábua rasa?


Quem assistiu ao filme “Amadeus”, adaptação de uma peça de teatro de Peter Shaffer, conhece a frustração de Antônio Salieri diante da genialidade de Mozart. Salieri era um compositor ofuscado pela sombra desse prodígio austríaco. Ele se julgava injustiçado por Deus, pois na sua concepção Mozart era indigno daquele magnífico “dom divino” que ele desejava tanto para si. Há no filme um momento inesquecível que mostra o assombro de Salieri ao ter diante de seus olhos uma partitura de Mozart. A harmonia e o brilhantismo da obra eram tais que seus olhos não puderam conter as lágrimas. No filme, Salieri se tornou tão obcecado pelo talento de Mozart que acabou esquecido num manicômio.

As mentes mais inquietas podem ser levadas a fazer a seguinte pergunta após refletirem sobre a trama envolvendo essas duas personagens: O talento de Mozart era inato, ou foi adquirido pela experiência?

O modo de pensar de Salieri demonstra ser ele um inatista, ou seja, ele acreditava que as pessoas herdavam de berço um talento especial para determinadas tarefas. A arte de compor, por exemplo, estaria reservada a algumas poucas pessoas divinamente abençoadas. Mas seria isso verdade?

John Locke (1632-1704), pensador inglês, afirmava que o homem não tem nem idéias nem princípios inatos, mas sim que os extrai da vida, da experiência. Locke dizia que a nossa alma é como uma folha em branco, limpa de qualquer letra e sem idéia nenhuma. Locke não concordaria com Salieri. Ele diria que o que tornava Mozart tão genial eram suas experiências vividas. Ele era um empirista.

Na época, ao invés da expressão “folha em branco”, os empiristas utilizavam a expressão “tábua rasa”, pois os romanos utilizavam tábuas recobertas de cera, para escrever com um estilete, raspando depois a escrita e reutilizando a tábua para novos escritos. Assim era a “tabula rasa”. Desse fato nasceu o termo “fazer tábua rasa”, ou seja, raspar tudo, não deixar traço de nada.

A batalha entre inatistas e empiristas atravessa séculos, sendo discutida tanto por filósofos como por desconhecidos numa mesinha de bar. Quem nunca teve sua bochecha apertada por uma tia inatista e ouviu algo do tipo: “é inteligente como o pai”, ou ainda “é teimoso como o avô”. Por outro lado há aqueles que afirmam com uma convicção inabalável: “o homem é produto do meio”, dizendo com isso que a “tábua” é realmente “rasa” e que vai sendo escrita de acordo com as experiências do dia-a-dia.

Bem, minha idéia era escrever um texto com trinta e cinco linhas e essa seria a minha última, mas confesso que estou um tanto indeciso. Vêm em minha mente uma cena onde discutem inatistas e empiristas. Alguns inatistas levantam a voz dizendo uma de suas frases prediletas: “quem nasceu pra tostão não chega a mil réis!”. Os empiristas, já irritados, revidam dizendo que “quem com porcos anda, farelo come!”, dizendo com isso que é o ambiente que faz o cidadão. E eu, que estou mais pra desconhecido numa mesinha de bar que pra filósofo, fico nesse dilema.

Como dizia Horácio “Est modus in rebus”[1] (Em tudo deve haver um meio termo), digamos que a tábua pode até ser rasa, mas que algumas vezes ela parece ter sido muito mal raspada, ah parece! São dessas “tábuas mal raspadas” que nascem figuras como Pelé, Einstein, Shakespeare, Nietzsche e tantos outros gênios. E que isso sirva de consolo para Salieri...


[1] Horácio, Satirae 1.1.106