quinta-feira, 27 de outubro de 2016

NEURA

Neura era dessas escritoras compulsivas. Escrevia em areia, em redes sociais, em caderno, em guardanapo, em parede, em vidro embaçado pelo vapor. Seus dedos pareciam corcéis sem freio desbravando superfícies.

No repouso dos dedos ativava os olhos. Lia como uma louca: jornal velho, rabisco em placa de trânsito, bilhete amassado, bula de remédio sem uso, embalagem de shampoo, epitáfio em leito mortuário. Insaciável essa Neura.

Certo dia, nas instalações de um alfarrabista qualquer, na obsessão da leitura, tomou nas mãos três velhos exemplares da revista Veja: “Geisel, um comando firme”, “Collor, caçador de marajás” e “O poder de Aécio”. Estremeceu. Deixou de ler coisas inúteis. Curou-se.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

ENTORPECIDA

Insânia sustentava sua existência nos finos fios da fantasia.
Tudo o que sonhava era tudo o que queria.
Tudo o que queria (Ah, como queria...), era tudo o não existia.
Vivia no mundo concreto.
Bailava entorpecida no salão da imaginação.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 25 de outubro de 2016

O NESCAU DE ARISTÓTELES

Enquanto lambia o resíduo de Nescau no fundo de uma grande xícara, Zé Bobinho descuidou e a deixou o cair em seu pé. Ganhou cinco pontos e uma pequena fratura na falange proximal do quinto dedo. Sua interpretação do acidente: comer resíduo de Nescau é perigoso.

A lógica é a mesma usada para deslegitimar as ocupações nas escolas públicas depois da morte de um menino de 16 anos no Paraná: alguém morreu enquanto uma escola era ocupada por alunos, logo todos são delinquentes. Logo é preciso deixar as coisas como estão.

Que falta faz Aristóteles...



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

OUTUBRO, MÊS DA REFORMA: LIBERDADES LÍQUIDAS

John Wyclif e Jan Hus já declaravam , nos séculos XIV e XV, que “os sacerdotes que violam os mandamentos do Senhor” estão em pecado, e que, portanto, devem ser vistos como usurpadores. No século XVI Lutero usou o mesmo argumento para romper com a Igreja.

A rebeldia do monge agostiniano migrou para o campo político. No fim de 1524 cerca de 30.000 camponeses na Alemanha meridional se recusavam a pagar imposto ao governo, dízimos ou direitos feudais. Ousaram criticar a servidão, dizendo que haviam sido “comprados e redimidos com o precioso sangue de Cristo”. Inicialmente Lutero apoiou o grupo, mas depois explicou que a liberdade que o cristão deve gozar é a espiritual: 
Abraão e os outros patriarcas não tinham escravos? [...] Um reino terreno não pode sobreviver se nele não houver uma desigualdade de pessoas, de modo que algumas sejam livres e outras presas, algumas soberanas outras súditas (Lutero, Works, IV, p. 240).
As elites latifundiárias das colônias americanas do século XVIII comportaram-se como Lutero. Usaram com toda a força ideias revolucionárias para justificar sua rebelião contra o opressor, neste caso, a Inglaterra (“qualquer um tem o direito de defender-se e de resistir ao agressor”, John Locke) e ao mesmo tempo temeram que negros e pobres interpretassem as ideias de liberdade como aplicáveis também a eles. Não deixaram, como Lutero.

Moral da história? “Quae vult rex fieri, sanctae sunt congrua legi” (vão as leis como querem os reis). Revolução legítima, só a das elites...



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

OUTUBRO, MÊS DA REFORMA: INTOLERÂNCIAS

Enquanto Lutero, Calvino, Zwínglio e outros reformadores discutiam (e até se matavam por) especulações a respeito da natureza de Cristo, da Trindade, da predestinação, do livre arbítrio, da Eucaristia e do batismo, Sebastian Castellio chamava a atenção para a necessidade da tolerância religiosa. Uma voz praticamente única num mundo religioso acostumado a punir com a morte o pecado da heresia.

Vendo como absurdo o apoio de Calvino à condenação de Serveto, Castellio escreveu em março de 1554 o tratado “De haereticis na sint persequendi?” (Os hereges devem ser perseguidos?). Não via razão para condenação dos hereges à morte uma vez que considerava que a Bíblia contém passagens difíceis, que constantemente deixam margens para dúvidas (não é o que admite 2Pe 3,16?). Insistia em colocar o caráter e o amor ao próximo acima das especulações doutrinárias.

Theodore Beza, escolhido por Calvino para elaborar uma resposta, reagiu dizendo que a tolerância religiosa é impossível para aqueles que aceitam a inspiração das Escrituras. Qualificou as vozes que se opuseram à morte dos hereges como “emissários de Satanás”. Castellio voltou à luta em “Contra libellum Calvini”. Mais tarde, em seu “De arte dubitandi” ("A arte de duvidar”), antecipou-se a Descartes, colocando a dúvida como elemento fundamental na busca da verdade.

Castellio combateu o fanatismo religioso como nenhum outro de seu tempo. Sua postura lança por terra a tese que justifica os discursos de ódio de Lutero dirigidos aos judeus e a condenação de Serveto à fogueira pelo conselho de Genebra como sendo atitude aceitável por todos naquele tempo. Com uma voz extraordinariamente dissonante, Castellio morreu na miséria aos 48 anos (1563). Calvino, em seu conhecido fanatismo, declarou que a morte prematura de seu opositor fora o resultado de uma sentença divina.

No próximo dia 31 - data em que os protestantes comemorarão 499 anos da Reforma - Castellio não pode ser esquecido.



Jones Mendonça

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

OUTUBRO, MÊS DA REFORMA (II)

João Calvino (1509-1564), um dos maiores expoentes da Reforma, defendia que todos os acontecimentos foram pré-ordenadas por Deus: a criação do mundo, a morte das estrelas, a forma exuberante dos lírios, o terremoto que devora vidas, a boca que morde, a mão que afaga. Linhas invisíveis escrevendo com muito arrojo e precisão o destino da humanidade.

Sua obsessão pela divina providência foi levada às últimas consequências: 
Eu concedo mais: os ladrões e os homicidas, e os demais malfeitores, são instrumentos da divina providência, dos quais o próprio Senhor se utiliza para executar os juízos que ele mesmo determinou. Nego, no entanto, que daí se deva desculpá-los por seus maus feitos (As Institutas, Livro I, Capítulo XVII, seção 5).
“Decretum quidem terribile”, ele mesmo confessou. Eu acrescentaria: é terrível e repugnante.



Jones F. Mendonça

DAS NÃO NEUTRALIDADES ASSUMIDAS

Digamos que você queira traduzir e interpretar um documento escrito – digamos - há 2000 anos. Sua cabeça, levada pela crença de que é impossível fazer pesquisas e leituras neutras, tem a seguinte ideia: “ora, uma vez que não é possível fazer leituras neutras, então vou assumir essa não neutralidade e interpretar o documento tal como orientam os ‘guardiões da tradição’”.

Quem sugere isso na maior cara de pau? Augusto Nicodemus.



Jones F. Mendonça

ARTIGOS GRATUITOS SOBRE LAQUIS NA BAR

No embalo das últimas descobertas arqueológicas em Laquis, a cidade mais importante de Judeia depois de Jerusalém, a AWOL (The Ancient World Online) fez uma apanhado de artigos gratuitos publicados na BAR (Biblical Archaeology Review) sobre a cidade.

Laquis foi conquistada e destruída em 701 a.C. pelo governante assírio Senaqueribe (sob o governo de Ezequias, cf. 2Rs 18,13-16). Sofreu nova destruição em 588/6 a.C. por Nabucodonosor da Babilônia (Jr 34,7).



Jones F. Mendonça

OUTUBRO: MÊS DA REFORMA (I)

Durante cerca de 1500 anos a Igreja dominou as rédeas da interpretação. No século XVI Lutero desafiou a Igreja e inaugurou o “livre exame”. A “verdade” do texto, antes una, tornou-se múltipla. São bem conhecidas as farpas trocadas entre Lutero e Zwínglio a respeito da interpretação de Mt 26,26 (“isto é o meu corpo” → simbólico ou literal?).

Herdeiros do “livre exame”, mas ainda obcecados pela precisão das definições teológicas, os protestantes logo trataram de enclausurar o livre exame nas chamadas confissões doutrinárias. A vocação protestante para o cisma, para a divisão, talvez não seja produto da ausência de um lastro, de uma autoridade única capaz de determinar a interpretação correta, mas do medo doentio das lacunas, dos espaços em branco, das incertezas.

A maldição protestante: quanto mais quer definir, mais se divide.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

MESSIANISMO NO ANTIGO EGITO

Então um rei virá,
Pertencendo ao sul, Ameni, o triunfante, será seu nome.
Ele é o filho de uma mulher da Núbia,
Ele nasceu no Alto Egito… .
Rejubilem-se, povo de seu tempo!
O filho de um homem fará seu nome durar para todo o sempre.
Aqueles que se inclinam para o mal e que tramam revoltas vão abaixar suas vozes por medo dele.
Os Asiáticos cairão perante sua espada, e os Líbios cairão perante sua chama.
Os rebeldes pertencem a sua ira, e os traidores, a seu assombro.

“Profecias de Neferrohu”, do princípio do reino de Amenemhet I (2000-1970 a.C.), Pritchard (ed.), Ancient Near Eastern Texts, 445-446.



Jones F. Mendonça

A LATRINA DE LAQUIS E AS REFORMAS DE EZEQUIAS

Foto: Daily Mail
Laquis, destruída em 701 a.C. pelos assírios e localizada no sopé de Judá, foi considerada a segunda cidade mais importante do Reino de Judá depois de Jerusalém. A descoberta do portão da cidade, neste ano, revelou vasos de armazenamento contendo a inscrição lmlk (=pertencente ao rei), um assento esculpido em pedra (FOTO) e um altar com as pontas (chifres) quebradas.

Sa’ar Ganor, líder das escavações, pensa que o lmlk seja uma referência ao rei Ezequias, governante que reinou em Judá no período da destruição do altar. Ele também acredita que os altares destruídos sejam os vestígios do projeto de reforma rei Ezequias, marcado pela tentativa de centralizar o culto em Jerusalém e abolir altares construídos fora da cidade santa (veja 2 Reis 18, 4). Na opinião de Ganor, até o assento de pedra confirma o relato das Escrituras.

O arqueólogo acredita que o assento (que tem um furo no centro) seja uma latrina, colocada no local possivelmente com a intenção de profanar o templo de Baal, tal como descrito em 2Rs 10,27: “Derrubaram a estela de Baal, demoliram também o templo de Baal e no lugar dele fizeram umas latrinas, o que permanece até hoje”. Uma vez que os testes de laboratório indicaram que o banheiro de pedra jamais foi usado, Ganor concluiu que a colocação do objeto no local de culto foi simbólica.

A descoberta ainda promete render uma boa discussão. Alguns pontos importantes sobre Laquis, Ezequias e a invasão assíria: 1. Embora o nome “Ezequias” não apareça ao lado do lmlk (=pertencente ao rei...) impresso nos jarros, seu nome surge nos anais de Senaqueribe; 2. A destruição de Laquis pelos babilônios (cerca de um século após Ezequias) está muito bem documentada nas cartas de Laquis encontradas nos destroços queimados do portão da cidade, e no grande relevo mural encontrado no palácio de Senaquerib, em Nínive; 3. Não ficou claro para mim se há consenso a respeito da natureza do objeto de pedra. É de fato uma latrina? Os testes de laboratório são confiáveis?; 4. O texto de Reis não identifica o local do santuário de Baal demolido por Ezequias (Era mesmo Laquis? O costume de colocar latrinas em templos profanados era comum naquele período/região?).

Leia mais no Bible History Daily e no Mail Online:


Jones F. Mendonça