domingo, 14 de janeiro de 2024

DEUS LÍQUIDO


Arte: Robert Crumb

1. Por mais de mil anos os dogmas cristãos mantiveram-se sob o controle da Igreja com grilhões de ferro. Mas desde que Lutero ganhou projeção ao questionar a autoridade do Papa e da tradição em textos produzidos a partir da segunda década do século XVI, os dogmas cristãos formam enfraquecendo em proveito de crenças mais pessoais, “à la carte”. A reforma herdou o individualismo humanista renascentista.

2. É verdade que os dogmas mais elementares, como a trindade, o nascimento virginal, a ressurreição e a parousia de Cristo ainda são compartilhados pela esmagadora maioria dos diversos segmentos cristãos em atividade (ao menos no papel). Mas todas essas crenças, outrora percebidas como fundamentais, têm sido realmente relevantes nos sermões e na piedade individual e coletiva?

3. A cada alvorada, a cada gota de orvalho que seca sob os primeiros raios de sol, uma nova igreja cristã dá seus primeiros sinais de vida. Seus discursos são muitas vezes contraditórios, assim como seus padrões de moral, suas liturgias, suas crenças e até suas posições políticas. Há o evangelho coach, da prosperidade, da confissão positiva, da reta doutrina, da esquerda, da direita, da ação social, do êxtase, da cura, da ladainha sem fim.

4. Em um mundo que se dissolve em meio a tantas crenças como caramujo ao sal, cientistas da religião têm refletido a respeito do papel desempenhado pela religião na sociedade contemporânea. Como ela dialoga com a política, com a arte, com as relações de consumo, com a diversidade cultural, com as demais religiões? Como dialogará com a inteligência artificial, com um eventual prolongamento extraordinário da vida humana?

5. Não há respostas fáceis ou definitivas. Certo mesmo é que atualmente a religião ainda está viva nos monumentos, nos nomes de batismo, no discurso político, nos ritos fúnebres, na conversa barata da esquina, no tropel ofegante dos pregadores televisivos. Mas todas essas manifestações expressam a face de um mesmo Deus? Nietzsche estava errado: Deus não morreu. Deus se dissolveu.



Jones F. Mendonça

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