Por Jones Mendonça
“Originariamente era a designação dos protestantes norte-americanos, que queriam entender ao pé da letra cada versículo da Bíblia. O movimento fundamentalista surgiu por volta de 1875. Aos conhecimentos científicos sobre a criação do mundo contrapunha a narrativa bíblica. Hoje em dia são tidas como fundamentalistas todas as correntes religiosas que se apóiam no sentido literal da Escritura Sagrada, e não desenvolvem sua doutrina em consonância com o mundo moderno e as descobertas científicas. - Do latim “fundamentum” = alicerce, base, fundamento”[1].
Para entender o surgimento do fundamentalismo é necessário conhecer as transformações ocorridas na sociedade européia a partir do Renascimento. O Renascimento foi a redescoberta e revalorização da cultura grega clássica, que provocou transformações em diversos setores da sociedade européia a partir do final do século XIII. Todo o conhecimento científico, antes sob a tutela da Igreja Católica, começava a ser questionado por intelectuais de renome. As grandes navegações, a descoberta de que a terra não é o centro do universo e o contato com a literatura dos grandes filósofos da antiguidade, que começava a chegar nas línguas originais, despertava no homem uma verdadeira obsessão pelo saber. Se na Idade Média Deus era o centro, a partir do renascimento o homem passava a ter lugar de destaque.
No século XVIII, pensadores como Espinosa e Voltaire começaram a questionar muitos dos dogmas de fé do cristianismo. Na Inglaterra o deísmo ganhava a cada dia novos adeptos entre os intelectuais, enfatizando a não interferência de Deus no mundo. A revelação bíblica estava sendo posta em cheque. Deus ia dando lugar à razão.
No século XIX e XX, pensadores como Feuerbach, Nietzsche, Calr Marx e Freud deram continuidade a essa crítica à religião. Muitos teólogos protestantes influenciados por filósofos racionalistas, colocaram a razão como lente necessária para a interpretação dos textos bíblicos. Narrativas como o dilúvio, a abertura do Mar Vermelho por Moisés e os milagres e ressurreição de Jesus passaram a ser consideradas lendas imaginadas pelo povo judeu e cristão. Apesar do exagero de alguns, a pesquisa e reflexão feita por esses teólogos deu grandes contribuições para a compreensão nas narrativas bíblicas.
No final do século XIX muitos imigrantes chegavam da Europa com essas novas idéias, gerando incertezas e abalando a fé de muitos cristãos. A teoria da evolução, proposta por Darwin, provocou um rebuliço entre os crentes, pois parecia contradizer a história da criação do Gênesis. Ficou famoso o embate entre o fundamentalista Willian J. Bryan e um professor de biologia chamado John T. Scopes, que insistia em ensinar a teoria da evolução nas escolas, mesmo proibida por lei no Tennessee. Scopes foi levado ao tribunal e apesar de ter sido condenado em 1925, acabou vencendo o debate, já que seu próprio opositor quase nada sabia a respeito da teoria que tanto atacava.
Essas idéias deram origem ao “liberalismo”, um movimento que tentava compatibilizar a fé cristã com as novas descobertas científicas. O termo “liberalismo” é muitas vezes utilizado como sinônimo de “modernismo” pelos fundamentalistas. Muitos protestantes norte-americanos opuseram-se ao modernismo, pois o consideravam uma ameaça aos fundamentos básicos da fé cristã.
Em 1846 foi organizada a Aliança Evangélica, com o propósito de unir todos os que pensavam ser o modernismo uma ameaça à fé cristã. Em 1895, em uma reunião junto às cataratas do Niágara foram anunciados os cinco fundamentos básicos da fé. São eles:
Ø A infalibilidade das Escrituras;
Ø A divindade do Jesus Cristo;
Ø Seu nascimento virginal;
Ø Seu sacrifício expiatório na cruz em substituição pelos pecados humanos, e
Ø Sua ressurreição física e logo retorno.
Os cinco pontos defendidos pela reunião em Niágara eram bem básicos e visavam estabelecer pontos fundamentais da fé cristã, mas com o tempo, o movimento foi ganhando mais adeptos e adquirindo um caráter bem mais radical.
O fundamentalismo ganha corpo
Após ouvir uma pregação de Amzi Clarence Dixon, pastor da igreja Moody de Chicago, Lyman Stewart, presidente da Union Oil Company, o procurou para uma conversa. Assim como o pastor Dixon, Stewart andava muito preocupado com o crescimento do modernismo nas igrejas americanas.
Poucos poderiam imaginar que o contrato entre um milionário do ramo do petróleo e um sacerdote protestante fosse tão poderoso. Com o dinheiro de Stewart e a influência de Dixon, foi fundada a editora Tes-timony Publishing Company. Expositores bíblicos de destaque foram procurados para escrever artigos para uma série de livros de 125 páginas. Ao todo foram publicados doze livretos; cinco editados por Dixon, outros cinco por Louis Meyer e os dois últimos por R. A. Torrey. Entre 1910 e 1915 foram publicados cerca de três milhões de exemplares. A coleção recebeu o nome de “The fundamentals”. Em 1919 foi criada a World's Christian Fundamentals Association para apoiar a luta conservadora contra as posições liberais dentro das igrejas protestantes. Mas o termo fundamentalista só seria empregado amplamente um ano depois. Segundo A. Kenneth Curtis “o termo ‘fundamentalista’ foi cunhado em 1920 por Curtis Lee Laws, editor batista, quando se referiu aos batistas conservadores que se apegavam aos ‘fundamentos’ da fé”[2]. Na sua opinião o movimento foi “social e teológico, alarmista e evangelístico, triunfalista e desesperador”[3].
O ponto mais problemático definido pela Aliança Evangélica foi a infalibilidade das Escrituras. Alguns achavam que essa infalibilidade dizia respeito à mensagem como um todo. Esse grupo admitia pequenas incorreções nos manuscritos disponíveis, provocados, por exemplo, por erro dos copistas. Também entendia que a Bíblia não é um tratado científico, admitindo, por exemplo, que quando o autor do livro de Josué diz que “o sol parou”, descreve o evento sob uma concepção de mundo que se tinha na época, não devendo, portanto, ser interpretado literalmente.
Um outro grupo, mais apegado a uma interpretação literal, achava que a infalibilidade estava na letra: “se a Bíblia diz que o sol parou”, diziam os fundamentalistas mais radicais, “é porque parou mesmo”, não importando o que diz a ciência moderna. Para esse segundo grupo, a Bíblia tal como se pode ler na atualidade corresponde exatamente aos escritos originais redigidos pelos escritores bíblicos. Para justificar as várias versões existentes, esse grupo definiu a versão King James (também conhecida como “Rei Tiago”), baseada numa tradução de Erasmo de Roterdan no século XVI, como única versão fiel aos escritos originais. Recentemente um grupo de fundamentalistas planejou queimar Bíblias não baseadas nessa versão [4].
Uma outra característica forte do fundamentalismo é o milenarismo. Os fundamentalistas recusavam as concepções liberais, que viam o mundo com otimismo, já que consideravam que o homem governado pela razão levaria a civilização ao progresso e a paz. Para os fundamentalistas a civilização não ia melhorar pelos esforços humanos. Isso só ocorreria com a volta triunfante de Cristo, inaugurando um reino de mil anos na terra. Poderíamos dizer que os liberais humanistas tinham uma visão otimista em relação ao ser humano. Os fundamentalistas, ao contrário, tinham uma visão bem pessimista do homem.
Uma palavra final
A linha que divide fundamentalistas e liberais não é tão nítida como parece. Dois famosos teólogos protestantes, Karl Barth e Rudolf Bultmann, por exemplo, apesar de se posicionarem contra a teologia liberal, são citados até hoje como liberais por muitos fundamentalistas.
Em minha opinião é doentio o fundamentalismo que insiste no chamado criacionismo da terra jovem, que afirma dentre outras coisas que o mundo foi criado em seis dias de 24 horas. Como conseqüência o mundo teria cerca de seis mil anos. Por outro lado não dá pra imaginar alguém que se confessa cristão e nega a inspiração da Bíblia.
Horácio, poeta latino do primeiro século antes de Cristo, dizia que “Est modus in rebus”[5] (Em tudo deve haver um meio termo). Sei que isso nem sempre é fácil, mas eu acho que por meio do diálogo a igreja só tem a ganhar.
Notas:
[1] SCHWIKART, Georg. Dicionário ilustrado das religiões, 2001, p. 47.
[2] CURTIS, A. Kenneth. Os 100 acontecimentos mais importantes na história no cristianismo, do incêncio de Roma ao crescimento da igreja na China, 1976, p. 176.
[3] Ibid, p. 177.
[4] Conforme publicado no site Notícias Cristãs: < http://news.noticiascristas.com/2009/10/igreja-baptista-planeia-queimar-livros.html>. Acesso em 17out2009.
[5] Horácio, Sátiras, 1,1,106.
Bibliografia:
BALMER, Haldall Herbert. Encyclopedia of evangelicalism. Louisville, Kentuky: Jonh Knox Press, 2002.
CURTIS, A. Kenneth. Os 100 acontecimentos mais importantes na história no cristianismo, do incêndio de Roma ao crescimento da igreja na China. Tradução de Emirson Justino. São Paulo: Editora Vida, 1976.
DREHER, Martin N. Para entender o fundamentalismo. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2002.
GONZALES, Justo. Historia del Cristianismo: Desde la era de la reforma hasta la era inconclusa - Tomo 2. Miami: Unilit, 1994.
KEPEL, Gilles. Jihad: expansão e declínio do islamismo. Tradução de Laís Andrade. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2003.
KEULMAN, Kenneth. Critical moments in religious history. Macon, Georgia: Mercer Univercity Press, 1993.
SCHWIKART, Georg. Dicionário ilustrado das religiões. Tradução de Clóvis Bovo. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2001.
Concordo plenamente com você! O fundamentalismo é duentio e um cristão que não considera a Bíblia é um condenado a vagar desorientado em sua fé. Da mesma forma, também admiro as palavras de Horácio em relação ao meio termo.
ResponderExcluirUma pena é que chegar a um "meio-termo" em um assunto nunca foi tão difícil! Parece que as palavras de paz e empatia de Cristo foram em vão... As pessoas não se esforçam nem quando é para viverem juntas sob a santa paz de Deus!
Muito bom esse "post", cara, muito bom!
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