terça-feira, 27 de abril de 2010

A EXEGESE RABÍNICA

Entre os rabinos foram desenvolvidos métodos de interpretação que seriam considerados um tanto curiosos para nós hoje. O judeu Fílon de Alexandria (20 a.C. – 45 d.C.) aplicou ao Antigo Testamento um método conhecido como alegoria. O termo alegoria vem de allo (um outro) e agoreuen (dizer).  Na alegoria buscava-se um sentido oculto, ou seja, um outro sentido do texto, dito de forma velada.

A alegoria era um recurso utilizado pelos poetas gregos já no século VI a.C.[1] para interpretar seus mitos. Como as divindades gregas eram apresentadas de forma grosseira: ciumentas, vingativas, ambiciosas, etc, logo os poetas e filósofos começaram a interpretar suas narrativas religiosas de forma simbólica. Já não era mais possível acreditar em seres divinos cheios de defeitos semelhantes aos humanos, pois os filósofos gregos passaram avaliar o mundo sob a ótica da razão. Assim, a alegoria apresentou-se como um método adequado. Alguns passaram a sugerir que os relatos míticos eram uma versão deformada de grandes acontecimentos feitos por humanos (evemerismo). Em outros casos os deuses eram vistos como a personificação de qualidades morais (moralismo) ou ainda como metáforas de fenômenos naturais (fisicalismo).

O método alegórico utilizado por Fílon foi uma tentativa de tornar a Bíblia compatível com o pensamento grego. Dizia ele: “A interpretação literal (é) como o símbolo de um universo escondido, revelado pelo sentido alegórico”[2].  Fílon tentou mostrar que alguns elementos da filosofia da sua época já estavam presentes (de forma oculta) no texto bíblico. Ele vê, por exemplo, as quatro virtudes estóicas (prudência, fortaleza, temperança e justiça) nos quatro rios do Paraíso[3], em Gn 2,10-14. É difícil imaginar que relação poderia haver entre os quatro rios do Gênesis e as tais quatro virtudes estóicas, mas para Fílon isso era perfeitamente aceitável. Ele achava, como os gregos, que por trás do texto havia uma mensagem oculta cujo significado só poderia ser descoberto por poucos:
“O que é dito [na Bíblia] não se detém nos limites da explicação literal e evidente, mas parece dar a entender uma realidade que é muito mais difícil de conhecer pela multidão, realidade que reconhecem os que fazem passar o inteligível antes do sensível e são capazes de ver”[4].
Fílon vê nos utensílios do templo símbolos cósmicos: “a arca da aliança, o candelabro, as pedras preciosas do peitoral do sumo sacerdote são símbolos das partes do universo, dos planetas, dos signos do zodíaco, etc”[5]. Os dois querubins que ficavam sobre a arca da aliança também não escaparam o olhar atendo de Fílon: “Os dois querubins são os símbolos dos dois poderes de Deus, a soberania e a bondade, e que a espada era aquela do Logos”[6].

A literatura judaica dos primeiros séculos, seguindo o método de Fílon, nos apresenta interpretações bastante curiosas. Numa discussão a respeito do porque do livro do Gênesis começar com a letra hebraica beit (b) surgem explicações variadas:
“A letra beit é a segunda letra do alfabeto e também simboliza o número dois. O que nos ensina que para criar o texto bíblico foram necessárias pelo menos duas pessoas: Deus e o seu parceiro, o ser humano.”[7].
“O beit é a letra de bênção (berakhá) e o aleph a da maldição (arirá)[8].
Não havia entre os judeus uma preocupação em encontrar um sentido verdadeiro no texto. Todas as interpretações dadas pelos rabinos eram aceitas como verdadeiras pela comunidade. O texto não tinha um sentido objetivo, ele estava aberto à livre interpretação. Como explica Karen Armstrong, na exegese rabínica
 “As escrituras não são um livro fechado, e a revelação não é um fato histórico que ocorreu numa época distante. Elas se renovam sempre que um judeu se defronta com o texto, abra-se para ele e o aplica suas circunstâncias pessoais”[9].
É curioso ver como ainda hoje o método rabínico é empregado por pregadores cristãos populares. Como se vê, a alegoria rabínica fez escola.

Continua...

Referências bibliográficas:
ARMSTRONG, Karen. A grande transformação. O mundo na época de Buda, Sócrates, Confúcio e Jeremias. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
BÍBLIA DE JERUSALÉM: Nova edição revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2003.
FABRIS, Rinaldo (Org.). Problemas e perspectivas das ciências bíblicas. São Paulo: Loyola, 1993.
FABRIS, Rinaldo. As Cartas de Paulo III. São Paulo: Loyola, 1992.
HADOT, Pierre. O véu de Isis: Ensaio sobre a história da idéia de natureza. São Paulo: Loyola, 2006.
Phoînix/UFRJ. Laboratório de História Antiga. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2005.
V.V., A.A. LEXICON - Dicionário Teológico Enciclopédico. São Paulo: Loyola, 2003.

Notas:

[1] V.V., A.A. LEXICON - Dicionário Teológico Enciclopédico. 2003, p. 11.
[2] Sobre a vida contemplativa 3,28.
[3] FÍLON, Legun Allegoriae, 1, § 63-68 apud HADOT, Pierre. Ensaio sobre a história da natureza. 2006, p. 65.
[4] HADOT, Pierre. O véu de Isis: Ensaio sobre a história da idéia de natureza. 2006, p.69.
[5] Quaest. Et solut. In Exodum , I, 54 apud FABRIS, Rinaldo. Problemas e perspectivas das ciências bíblicas. 1993, p.43.
[6] de Cherub., 25 e 27 apud FABRIS, Rinaldo. Problemas e perspectivas das ciências bíblicas. 1993, p.43.
[7] Phoînix/ UFRJ. Laboratório de História Antiga. 2005, p. 70.
[8] Tradução livre do autor. No original: why with a bet? Because bet connotes blessing (berakhah). And why not with an aleph? Because aleph connotes cursing (arirah). POSNER, Raphael (Edit.). The creation according to the Midrash Rabbah. 2002, p. 47.
[9] ARMSTRONG, Karen. A grande transformação. O mundo na época de Buda, Sócrates, Confúcio e Jeremias. 2008, p. 403.

Nenhum comentário:

Postar um comentário