sábado, 29 de agosto de 2009

A POLICIAL E O TERAPEUTA*

Por Jones Mendonça


Numa sala de consultório estão apenas um homem e uma mulher. Ele, um terapeuta. Ela, uma policial com sérios problemas ligados à área sexual. O consultório é agradável, com poltronas macias e aconchegantes. Quadros coloridos e um tapete felpudo dão um ar de informalidade. A policial, cheia de expectativa, imagina que o terapeuta terá ótimas respostas para o seu problema. Periodicamente ela vai ao consultório e lhe relata seus segredos mais profundos e íntimos. O terapeuta, muito atento, ouve com paciência todas as suas queixas e inquietações. O tempo passa e algo muito natural acontece. A paciente imagina que o terapeuta é o homem da sua vida. Ele é simpático, a ouve com paciência e ainda lhe transmite tranqüilidade e segurança. Os entendidos no assunto dizem que tal fenômeno tem nome, chama-se “transferência”.


No caso em questão o problema tornou-se ainda mais agudo, já que o terapeuta também se sentiu atraído pela paciente. Isso o incomodou bastante, a ponto de pedir conselhos a uma médica de sua confiança. Ela lhe lembrou que a ética médica não permite esse tipo de relacionamento. Existem normas, regras a serem seguidas, dizia ela. Ele ficou inconsolado e até pensou em deixar a profissão. O desejo pela paciente o consumia e um dilema passou a perturbá-lo dia e noite. De um lado os homens-encarregados-de-criar-as-normas, que lhe diziam: “Enquanto estiver no consultório você é apenas um terapeuta. Aprenda a se comportar como tal!”. Do outro lado seu coração que gritava: “tal qual um turbilhão é o amor, não há garras que o possam conter”. De um lado a norma. Do outro a poesia. Temos aí um sujeito tripartido. Ele é homem, imoral (já que tem forte tendência a romper com a moralidade vigente) e terapeuta.


Alguns amigos da paciente, que aprenderam direitinho as normas criadas pelos homens-encarregados-de-criar-as-normas, lhe dizem: “será que você não está confundindo o profissional-do-consultório com o homem-do-consultório?”. A mulher-policial-paciente fica muito confusa e já não sabe muito bem o que sente e tampouco quem é. Como se não bastassem seus problemas de ordem sexual. Temos aí uma cidadã tripartida. Ela é mulher, moralista (já que tem forte tendência a não romper com a moralidade vigente) e paciente.


Já desde Aristóteles o homem adquiriu a mania de compartimentar as coisas. Os seres vivos, por exemplo, foram divididos em mamíferos, anfíbios, répteis, etc. Até as folhas das árvores os homens tiveram o cuidado de catalogar: crenadas, cordiformes, sinuadas, e outros tantos nomes complicados. Com Descartes o problema se acentuou. De um lado a mente e do outro o corpo. A queda do paradigma mecanicista newtoniano fez com que as coisas começassem a mudar. Percebemos que o universo não é como uma máquina. Não podemos simplesmente desmontá-lo e catalogar suas peças. Essa é uma tarefa impossível. O prêmio Nobel da Física e um dos fundadores da mecânica quântica Werner Karl Heisenberg assim se expressou em relação a essa nova concepção do universo: “O mundo apresenta-se, pois, como um complicado tecido de eventos, no qual conexões de diferentes espécies se alternam, se sobrepõem ou se combinam, e desse modo determinam a contextura do todo[1].


Muitas vezes pensamos que existe uma moralidade absoluta, como se houvesse em algum lugar, num cofre distante, um modelo ideal de moralidade. Esse modelo ficaria lá trancado e sempre que precisássemos de uma certeza, o abriríamos e todas as respostas nos seriam dadas. Mas na verdade a história nos mostra que esse padrão normativo é criado pelos homens-encarregados-de-criar-as-normas. É um ofício importante, afinal o que seria de nós sem as regras? Até para construir este texto preciso de regras: regras ortográficas, de sintaxe, de concordância, etc. Não fazendo uso delas eu certamente não me faria compreender. Na sociedade elas funcionam como um freio. Na sua ausência correríamos o risco de produzir um mundo caótico. Mas será que essas normas devem ser seguidas de forma cega e irreflexiva? Na verdade, fazendo isso tornamos as coisas mais fáceis, pois lançamos sobre as regas o jugo de uma responsabilidade que é nossa. Assim fica mais fácil conviver com os resultados das nossas decisões. Por outro lado, a reflexão demanda responsabilidade. Romper com a norma padrão tem um preço e são poucos os que têm coragem de arcar com as conseqüências.


Voltemos ao caso do homem-bandido-terapeuta e da mulher-policial-paciente. A mulher tripartida quer carinho, quer ordem e quer cura para os seus problemas emocionais. O terapeuta tripartido quer uma mulher, uma aventura bandida e uma paciente curada. Todas essas divisões tornam o problema muito complexo. Como analisá-lo sob a ótica de uma regra cega, incapaz de lidar com sistemas complexos?


No final do episódio vemos que a mulher pesou na balança seus valores e entendeu que a ordem estabelecida era mais importante. Ela armou uma cilada e denunciou o terapeuta logo após ter sido assediada por ele. Os dois foram presos. Ele pelos moralistas. Ela, por sua própria moralidade.


*Esse texto é uma análise do episódio “Roma Isenta” do seriado “Picket Fences” transmitido pela CBS americana na década de 90. A construção do texto teve como finalidade cumprir as exigências da disciplina “Ética Cristã” do Seminário Teológico Batista Carioca.

Nota:

[1] Garber (1978) in CAPRA, Fritjof. Ponto de Mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente, 1982, p. 75.

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