Por Jones Mendonça
O livro de Daniel contém passagens que se tornaram clássicas na tradição cristã. A história de Daniel sendo lançado na cova dos leões, por exemplo, é contada às crianças já bem cedo, vindo a se tornar uma das suas preferidas ao lado da batalha entre Davi e Golias e a história de Sansão. Mas se há trechos que agradam os pequeninos, há também os que os assustam, como no episódio em que uma misteriosa mão aparece escrevendo na parede do palácio real (5.5), ou ainda a descrição dos quatro grandes e estranhos animais que numa visão do profeta subiam do mar: um leão alado, um urso ávido por carne humana, um leopardo de quatro cabeças e outro não identificado, com dentes de ferro e chifres (Dn 7.3,7).
Por seu conteúdo tão curioso e enigmático, foram dadas inúmeras interpretações para o livro. Para uns, predição do futuro, para outros, releitura da história sob o ponto de vista teológico. Dessas duas idéias básicas surgem ainda inúmeras ramificações. Na rede mundial de computadores, por exemplo, podem ser lidas interpretações bastante curiosas.
Além da dificuldade da interpretação está a da datação. Estudiosos mais conservadores (p. ex. Harley, Schultz, Geisler e Howe) localizam sua redação na época do império babilônio, enquanto reinava Nabucodonosor (séc VI a.C). Esse modo de interpretá-lo foi contestado na Antiguidade só por Porfírio, impugnado por são Jerônimo em nome de uma tradição ininterrupta, na qual Flávio Josefo ocupa um lugar de destaque. Com o surgimento da crítica moderna, essa afirmação, até então considerada um fato, teve as suas bases abaladas, dando início a discussões acaloradas entre os dois lados.
Críticos modernos, após análise minuciosa, notaram várias incorreções históricas no livro, passando a considerá-lo uma história fictícia, que tinha como intenção consolar o povo diante da perseguição. Gunneweg, por exemplo, entende que
“aquilo que de fato é descrição do passado e do presente visa causar a impressão de ser profecia antiqüíssima acerca do futuro. [...] Está claro que o autor do livro [de Daniel] não viveu na época babilônica e medo-persa, e tampouco foi um personagem lendário da proto-história (o que sugerem Ez 14.14-20;28.3), mas que escreveu entre a perseguição dos judeus por Antíoco IV (168 a.C.) e sua morte (164
a.C.) ”[1].
Harley, reagindo contra essa posição, argumenta que essa teoria resultou do orgulho intelectual de alguns eruditos, que
“revivem a teoria de Porfírio e dão como fato consumado que o livro foi escrito por autor desconhecido, o qual, vivendo 400 anos depois de Daniel, assumiu o nome deste e impingiu à sua geração seu livro espúrio como obra autêntica de um herói morto já fazia muito tempo”[2].
Na mesma linha seguem Geisler e Howe, dizendo que a teoria de que o livro foi escrito no século II seria mera tentativa de “evitar a conclusão de que a profecia de Daniel foi decorrente de uma revelação sobrenatural dada por Deus”[3].
Na verdade, a visão conservadora se choca com dificuldades insuperáveis, porque se apóia numa noção falsa da historicidade da Bíblia e da profecia. 1) O livro se abre mencionando um cerco de Jerusalém e uma deportação numa data (606) na qual o livro dos Reis só fala de expedições de bandos armados (2Rs 24, 1s). 2) A lista dos impérios e dos reinos apresentada não corresponde à realidade histórica conhecida por outras fontes: Baltazar era filho de Nabônides, e não de Nabucodonosor; ele foi associado ao trono e regente, mas não rei de Babilônia; quanto a Dario, o Medo, é personagem de ficção. 3) Sendo Daniel adolescente em 606, como estaria ainda em plena atividade no ano 3 de Ciro (537/536)? 4) A última visão delimita com precisão a história das guerras entre os Lágidas do Egito e os Selêucidas da Síria, depois da divisão do império de Alexandre, até uma data muito precisa, sob Antíoco IV Epífanes, em 164 (Dn 11, 3-39): não é esse o gênero literário das profecias bíblicas. Nesse ponto, parece que Porfírio tinha razão contra são Jerônimo muito apegado, por motivos apologéticos, à idéia de profecia-predição. Todas as leituras do livro até o séc. XIX giraram nesse círculo vicioso, e certa leitura “fundamentalista” ainda continua assim. 5) Quanto às línguas nas quais o livro foi escrito, seus capítulos 2 - 7 são num aramaico “clássico” um pouco mais evoluído do que o dos documentos reproduzidos no livro de Esdras e o dos numerosos papiros de Elefantina, um aramaico próximo do de Henoc. Quanto aos capítulos escritos em hebraico, denotam uma língua muito influenciada pelo aramaico, o que seria improvável no séc. VI.
Por todas essas razões, a crítica bíblica, do século XIX em diante, vê no livro um escrito pseudepígrafo de um ou mais autores posteriores, marcando o fim do capítulo 11, com clareza, o horizonte histórico do último compilador do conjunto, no momento em que ele deixa as alusões históricas precisas para lembrar em termos convencionais a queda de Antioco Epífanes (passagem de 11, 39 a 11,40 - 12, 3). Como a história dessa época é bem conhecida pelos livros dos Macabeus, pode-se atribuir a esse último texto uma data bem precisa: durante o verão ou no outono de 164. Mas isso deixa abertas as questões referentes à origem dos diversos capítulos aramaicos e às tradições usadas no livro.
Bibliografia:
BÍBLIA DE JERUSALÉM: nova edição, revista e ampliada. São Paulo. Paulus, 2003.
BÍBLIA KING JAMES: versão digital. Petrópolis, RJ: Vozes, 1982.
E-SWORD. Nuevo diccionario de teologia bíblica, versão eletrônica. ROSSANO P.; RAVASI G.; GIRLANDA A.. Madrid: San pablo, 2001. Disponível em: http://www.enlacebiblico.com.ar/biblia_electronica_5.htm. Acesso em 05 Mar 08.
E-SWORD. Nuevo Comentário Bíblico Siglo XXI, versão eletrônica. CARSON, D. A; FRANCE, R. T; MOTYER, J. A; WENHAM, G. J. Disponível em: http://www.enlacebiblico.com.ar/biblia_electronica_2.htm. Acesso em 05 Mar 2008.
GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual Popular de dúvidas, enigmas e “contradições” da Bíblia. São Paulo: Mundo Cristão, 1999.
GUNNEWEG, Antonius H. J. Teologia Bíblica do Antigo testamento: Uma história da religião de Israel na perspectiva bíblico teológica. São Paulo: Editora Teológica, 2005.
GUNNEWEG, Antonius H. J. História de Israel: dos primórdios até Bar Kochba e de Theodor Herzl até os nossos dias . São Paulo: Editora Teológica: Edições Loyola, 2005, p.275.
HALLEY, Henry H. Manual Bíblico – Um comentário abreviado da Bíblia. São Luiz, MA: Livraria Editora Evangélica, 1963.
SOBRAL, João Jonas Veiga. Redação, escrevendo com prática. São Paulo: Iglu, 2000.
KELLER, Werner. E a Bíblia tinha razão. São Paulo: melhoramentos. 2000, p. 262.
MONLOUBOU l.; LÉVÊQUE J.; PREÉVOST J. P.; GRELOT P.; AUNEAU J.; GILBERT P. M.; SAULNIER Ch. Os Salmos e outros Escritos. São Paulo: Paulus, 1996.
REVISTA DAS RELIGIÕES. Profetas I, Coleção heróis bíblicos. São Paulo: Abril.
RAD, Gerhard Von. Teologia del Antiguo testamento, Teologia de las tradiciones profeticas de Israel. Espanha, Salamanca: Síguime Salamanca, 1796.
WESTERMANN, Claus. Teologia do Antigo testamento. São Paulo: Paulinas, 1987.
[1] GUNNEWEG, Antonius H. J. Teologia Bíblica do Antigo testamento: uma história da religião de Israel na perspectiva bíblico-teológica, 2005, p.338, 339.
[2] HALLEY, Henry H. Manual Bíblico – Um comentário abreviado da Bíblia, 1963, p. 305.
[3] GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual Popular de dúvidas, enigmas e “contradições” da Bíblia, 1999, p. 299.
Figura:
MICHELANGELO Buonarroti
Daniel (detalhe)
1511
Afresco
Cappella Sistina, Vaticano
Chamar a Bíblia de livro santo ou de guia moral é uma afronta à decência e a dignidade humana.
ResponderExcluirBíblia Falsas PROFECIAS NÃO REALIZADAS:
https://www.bibliadocetico.net/profecias.html