domingo, 3 de março de 2013

O VENTO QUE SOPRA SOB AS RÉDEAS DO DOGMA


Fiz hoje uma limpeza em minha estante de livros. Um formigueiro, acreditem, instalou-se num dos compartimentos. Achei por lá, perdida, uma Bíblia das Testemunhas de Jeová (Tradução do Novo Mundo - TNM). Gosto de comparar Gn 1,1-2 em diferentes versões. Eis o que li:
“No princípio criou Deus os céus e a terra. Ora, a terra mostrava ser sem forma e vazia, e havia escuridão sobre a superfície da água de profundeza; e a força ativa de Deus movia-se por cima da superfície das águas”.
Há muito que discutir a respeito dessa tradução. Detenho-me, todavia, no trecho sublinhado: “e a força ativa de Deus”. 

As Testemunhas de Jeová acreditam que o Espírito Santo é uma espécie de força ativa, e não uma “pessoa”, como defende a “mais pura tradição cristã” (cf. Credo de Niceia-Constantinopla).  Bem, então os tradutores da TNM, imaginando que o texto fala a respeito desse poder operativo de Deus na terra, fazem uma interpretação do texto segundo o que acreditam (projetam no passado uma crença recente). Uma prática, infelizmente, muito comum na maioria das Bíblias.

A expressão hebraica “veruah elohim”, pode ser traduzida por “e o (ou um) espírito de Deus” ou, mais literalmente, “e o (ou um) espírito de elohim”, ou ainda “e o (ou um) vento de elohim”. Ruah (sem o “ve” prefixado, que é conjunção, daí “veruah”) pode ser traduzido por “espírito” ou “vento” ou até mesmo “fôlego”, mas “força ativa” jamais.

Alguém atirará pedras na Tradução do Novo Mundo dizendo que é uma tradução herege. Mas não caem na mesma categoria as Bíblias que traduzem “ruah” por “Espírito”, assim com letra maiúscula?


Jones F. Mendonça

10 comentários:

  1. Jones, os cristãos primitivos acreditavam em Trindade?

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  2. Não seria também heresia colocar pontuação onde não existe, qualquer outra letra maiúscula para textos unciais e de uma língua quadrática, etc... se entrarmos nessa, vamos acabar defendendo que a tradução correta é: o semente...

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  3. Anônimo,

    Houve muita discussão ente os cristãos primitivos até que a ideia se consolidasse no século IV.

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  4. André, acho que são coisas bem diferentes. Quem traduz ruah por Espírito, com letra maiúscula, induz o leitor a pensar que se trata de uma das pessoas da trindade, crença que só se firmou no século IV d.C.

    Lembro que no processo de tradução não só os unciais e textos pré-massoréticos são consultados.

    Quanto ao "o semente", vou interpretar como uma brincadeira.







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    1. Claro que é piada... e lembrando que tradução interpretativa (por força do tradutor) só acontece na NTLH, não é verdade? O resto é só tradução de EQUIVALÊNCIA FORMAL!!!

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    2. É claro que toda a tradução requer certo grau de interpretação. Num caso como este (Gn 1,1-2) o mais honesto é inserir uma nota explicativa dando ao leitor algumas possibilidades de leitura. É o que faz, por exemplo, a Bíblia de Jerusalém. Repare no tom do comentário:

      "não é preciso ver aí uma afirmação do papel criador do espírito (com "e" minúsculo") de Deus...".

      O comentário não afirma, apenas sugere. Em minha opinião, é assim que tem que ser.

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  5. Não é uma questão fácil. De qualquer jeito, o tradutor terá de optar - escolher - entre pelo menos três traduções/interpretações adequadas: vento, sopro, espírito. Há versões desses três tipos em português. A BJ, vento; a Pastoral, sopro, as demais, "E"spírito.

    Mas isso é apenas o começo. 'elohim pode ser, aí, um adjunto majestático - vento de "deus" pode ser interpretado/traduzido como vento muito forte, vento tempestuoso, com quer von Rad - e eu admito.

    Mas ainda há mais - "pairava" é completamente inadequado. O verbo significa tremor muito forte, ataque de ave em rasante, mas, jamais, pairava.

    E tem mais: esse ruah é agente da criação ou agente do "caos"? Veja que depois que a luz surge, ele desaparece, e não se fala mais nele - além do que, para expulsar as águas do dilúvio, 'elohim usa justamente um... vento.

    Se há um texto mal interpretado entre nós é, definitivamente, Gn 1,-3.

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  6. Pois é, Osvando, sem falar no verbo bará, que de acordo com Ellen van Wolde, pode significar "separar" e não "criar".

    Nas maioria das Bíblias tudo fica bonitinho. Evidencia-se uma certeza que não se tem.

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  7. Boa colocação, Jones. Tenho deparado com essa questão constantemente ao dedicar tempo e atenção ao estudo a partir dos textos nas línguas originais. Em hebraico utilizo a BHS e grego a NA-27. Estou familiarizando com tais documentos. Agradeço pela sua observação, e palavra sempre oportuna. Abraço
    Gustavo Luiz

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