São Miguel, Ercole de Roberti 1470-73, Museu do Louvre |
No Antigo
Testamento as formulações escatológicas fluem como o rio de Heráclito. Inicialmente a era de ouro é
apresentada como um governo davídico
redivivo (como Is 9,1-6; 11,1-10; 16,5; Jr 23,5s.; 33,5s.). É o futuro à
luz do passado. Não há céu nem inferno, só o Sheol, mundo de sombras, onde não
há conhecimento nem sabedoria. No Egito já se falava em ressurreição, como
atestam textos da XVIIIª Dinastia
(1550-1307). Em Israel pregavam-se apenas recompensas terrenas. Ainda não havia
surgido remédio para a morte.
Num segundo
estágio (ou terceiro, como se verá adiante) surge a ideia de um governo
divino sobre um povo restaurado. É o próprio Yahweh quem intervém no mundo. No
chamado “grande apocalipse de Isaías”
(Is 24-27, texto que deve ser datado
para um período que vai do século VI ao IV e que não deve atribuído ao proto-Isaías), consta que Yahweh vai
“arrasar e devastar a terra”, punindo todos os que “desobedecem aos seus
decretos”. Sinais nos céus anunciarão este dia, no qual Yahweh “destruirá a morte” e “enxugará toda a lágrima”. A ira de
Yahweh, executada por meio de sua “espada severa”, castigará o Leviatã, a “serpente veloz” (uma
variante lingüística para Lotan, um
dragão derrotado por Baal na mitologia de Ugarit) e Israel, finalmente, será um
só povo. Surge o antídoto para a morte
(vida eterna na terra e ressurreição dos mortos), mas ainda não se fala em céu (recompensa num mundo
supraterreno), nem em inferno
(punição eterna).
É curioso notar que no Trito-Isaías (Is 65-66), aparentemente escrito numa
época mais recente, não aparece a crença na
vida eterna na terra, mas a esperança de que o povo de Yahweh terá “vida longa como a árvore” (ver Is
65,20-22). Tampouco se fala em ressurreição dos mortos. Ao que parece, se
considerarmos a ideia da ressurreição uma inovação dos teólogos israelitas do período
exílico ou persa, Is 65-66 possui uma redação mais antiga que Is 24-27. Talvez
seja necessário inserir o pequeno
apocalipse de Isaías entre o primeiro e o segundo estágio. Caso consideremos até aqui uma evolução em três estágios, as idéias escatológicas fluem da seguinte forma:
1) Primeiro estágio: Messias da dinastia davídica (Proto-Isaías);
2) Segundo estágio: É o próprio Yahweh quem restaura Israel (Trito-Isaías – Is 65-66);
3) e o terceiro estágio: Ressurreição dos mortos e a vida eterna (Grande apocalipse de Isaías – Is 24-27).
No último
estágio,
bem representado pelo livro de Daniel
(que deve ser situado na época do levante macabeu e não no século VI), aparecem
algumas inovações: fala-se de uma ressurreição para a “vida eterna” e outra para a “vergonha eterna” (Dn 12,2). A intervenção divina se dará pela ação de um “rei
guerreiro” (Dn 11,3). Vale notar a designação dada a Yahweh como “Deus do céu”, presente em livros pós-exílicos como Esd, Ne, Jt e Tb. Yahweh ultrapassa sua limitação à religião
judaico-israelita e se torna o Deus universal. Não é sem razão que este último
estágio tem sido chamado de “estágio
transcendental”. O embate entre Miguel,
o “cabeça dos primeiros” e seu oponente, o “cabeça do reino da Pérsia”, anuncia o dualismo
que vai marcar toda a teologia do Novo Testamento.
Em breve espero publicar algo sobre a escatologia nos livros apócrifos.
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