sexta-feira, 25 de julho de 2025

HIPÓTESE DOCUMENTAL, REDAÇÃO CONTINUADA E CÍRCULOS NARRATIVOS


1. No capítulo 10 do Gênesis o leitor é informado a respeito dos “clãs” e das “LÍNGUAS” faladas pelos descendentes de Noé: Jafé, Cam e Sem (Gn 10,5.20.31). Mas já no capítulo seguinte esse mesmo leitor se depara com esta surpreendente declaração: “Havia em todo o mundo UMA ÚNICA LÍNGUA e um único idioma”. Afinal, havia "muitas línguas" ou "uma única língua"? Sigamos.

2. Quando comparamos o relato da criação de Gn 1 com o relato de Gn 2 também somos surpreendidos por desconexões dessa natureza. Repare que em Gn 1 o homem é criado no sexto dia (1,26), DEPOIS da vegetação (1,11). Em Gn 2 a ordem aparece invertida: o homem é criado ANTES da vegetação: homem – Gn 2,7; vegetação – Gn 2,8-9. Como explicar isso?

3. Todas essas questões foram amplamente discutidas por estudiosos da Bíblia no século XIX. Julius Wellhausen desenvolveu uma hipótese que se tornou dominante no âmbito acadêmico até a década de 70: o Pentateuco seria o resultado da junção de quatro fontes escritas, nascidas em lugares e tempos diferentes, mais tarde unidas para compor uma obra unificada. Nesse sentido, Gn 1 e Gn 2 seriam relatos independentes.

4. A hipótese de Wellhausen, conhecida como “hipótese documental”, foi capaz de explicar não apenas os conflitos, rupturas e repetições narrativas, mas também as diferenças entre códigos legais do Pentateuco relacionados ao mesmo tema. Mas, como já foi dito, na década de 70 a hipótese documental foi alvo de uma série de críticas.

5. Apesar de reconhecerem que o Pentateuco não foi escrito por uma só pessoa, mas o resultado de um longo processo redacional, esses estudiosos perceberam que a formação desse bloco de cinco livros foi muito mais complexa do que supunha Wellhausen. Duas teorias novas surgiram: 1) Hipótese da redação continuada, 2) Hipótese dos círculos narrativos.

6. A hipótese da REDAÇÃO CONTINUADA propõe o seguinte: havia, originalmente, uma narrativa completa, que ia da Criação à morte de Moisés. Mais tarde essa história teria sofrido interferências redacionais atualizadoras e interpretadoras. A hipótese dos CÍRCULOS NARRATIVOS, por outro lado, supõe os diversos blocos narrativos do Pentateuco tiveram sua própria história de crescimento, sendo unidas mais tarde.

7. Atualmente há quem busque outras soluções. W. H. Schmidt, por exemplo, tentou combinar o modelo dos círculos narrativos com o modelo de fontes. Seja como for, uma coisa é certa: o Pentateuco tal como o conhecemos é uma obra compósita, produzida por muitas mãos que liam e reliam narrativas mais antigas, as atualizavam, as ressignificavam.




Jones F. Mendonça

quinta-feira, 24 de julho de 2025

NIETZSCHE, LUTERO E OS CAMPONESES


1. Quando a Reforma estourou, os camponeses começaram a alimentar esperanças pelo fim da servidão. Diziam: “Cristo libertou todos os homens!”. Lutero considerou a declaração problemática sob a perspectiva teológica, social, política e econômica. Então disse assim:
Abraão e os outros patriarcas não tinham escravos? [...] Um reino terreno não pode sobreviver se nele não houver uma desigualdade de pessoas, de modo que algumas sejam livres e outras presas, algumas soberanas outras súdita" (Lutero, Works, IV, p. 240).
2. Em Gaia Ciência (aforismo 358), Nietzsche resume bem a dupla natureza da Reforma: “Lutero fez no interior da ordem eclesiástica, portanto, precisamente o que combateu de forma intransigente na ordem civil – uma rebelião camponesa”.

3. Trocando em miúdos: Lutero combateu a hierarquia eclesiástica, mas sacralizou a hierarquia social.



Jones F. Mendonça

LUTERO E OS CAMPONESES DA SUÁBIA

1. No impulso do impacto que as ideias de Lutero tiveram na Alemanha, um grupo de camponeses da Suábia fez a seguinte exigência: “Toda a comunidade terá o poder de escolher e depor um pastor" (Artigo 1). Não queriam ser conduzidos por pastores indicados pelos príncipes. Desejavam uma igreja democrática.

2. Lutero examinou o pedido dos camponeses e escreveu assim: “Se os bens da paróquia provêm dos governantes, e não da comunidade, então a comunidade não pode aplicar esses bens ao uso daquele que escolher, pois isso seria roubo e furto” (Admoestação à paz, 1525).

3. Trocando em miúdos: se a terra na qual vivem os camponeses pertence ao príncipe, o templo no qual se reúnem os camponeses também pertence a ele. Assim, caso queiram eleger (e depor) seu próprio pastor, que adquiram sua própria propriedade e construam seu próprio templo.

4. Problema: boa parte dos camponeses não tinha propriedades. Aliás, os camponeses denunciam o roubo dos campos comuns pela nobreza (art. 10). Quanto à esta queixa Lutero responde: “deixo esta questão para os advogados, pois não é apropriado que eu, um evangelista, delibere sobre este assunto”.



Jones F. Mendonça

O PECADO NA BÍBLIA HEBRAICA


1. Todas as vezes que um leitor da Bíblia se depara com a palavra “pecado”, no Antigo Testamento, está lendo a tradução da palavra hebraica “hata’” (חטא) ou algumas de suas variantes. Mas qual o seu significado? Bem, seu sentido mais básico é “errar”, “falhar”, “cometer um equívoco”. Quer um exemplo? Assim que percebe que sua rebelião contra Senaqueribe deu errado, o rei Ezequias diz assim: “COMETI UM ERRO... aceitarei as condições que me impuseres...” (2Rs 20,16).

2. No exemplo acima, não faz sentido dizer que Ezequias “pecou”, porque seu erro não foi contra um mandamento divino e sim contra um rei estrangeiro. Apenas quando esse “erro” aparece relacionado ao descumprimento de alguma ordem divina, os tradutores optam pela palavra “pecado”, do latim “peccare”, que significa “tropeçar”. A escolha não foi ruim, afinal, a alusão visual a um “tropeço” funciona muito bem para indicar um erro, esteja ele relacionado a um preceito religioso ou não.

3. Ao longo dos séculos, no entanto, a palavra “pecado” passou a ser empregada de forma restrita, como se fosse possível fazer uma lista daquilo que é “certo” ou “errado” a partir do texto bíblico. No caso do Antigo Testamento, por exemplo, “matar” é considerado “pecado” apenas em certas circunstâncias. Há casos em que “NÃO matar” é tratado como um “pecado”, como no caso de Saul, que poupou a vida de Agogue, rei amalequita, e o melhor do seu rebanho (1Sm 15,9).
 
4. Além disso, a palavra “pecado”, na cabeça de boa parte das pessoas, tem servido para indicar “tropeços” muito específicos, geralmente de ordem sexual ou relacionados a práticas condenáveis de forma quase que universal, tais como a mentira, o roubo e o assassinato. No Antigo Testamento, no entanto, a percepção de que alguém cometeu um “pecado” diante de Deus está diretamente relacionada a alguma ordem divina que foi desobedecida, seja ela moralmente aceitável ou não sob uma perspectiva moderna.
 
5. Foi pensando em todas essas questões que Martin Ehrensv, um dos tradutores da Bibelen 2020 – versão da Bíblia escrita em dinamarquês –, resolveu traduzir “hata’” por expressões mais neutras, tais como “algo que Deus não quer” ou “algo que se opõe à vontade / lei de Deus”. Com este artifício, Ehrensv evita perpetuar noções equivocadas atribuídas a determinadas palavras hebraicas, cujo sentido original foi contaminado por noções que não fazem parte do seu universo linguístico.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 18 de julho de 2025

SEXO E GÊNERO NA BÍBLIA HEBRAICA


1. Uma das atividades mais elementares do ser humano consiste na classificação do mundo percebido pelos sentidos. Essas classificações aparecem relacionadas, por exemplo, ao espaço: 1) coisas situadas acima do plano (no céu), 2) coisas situadas no plano (a terra), e 3) coisas situadas abaixo do plano (no subsolo). Os antigos chegavam a projetar esses três planos no imaginário religioso: nos céus, os deuses; na terra, os seres vivos; no submundo, os mortos/deuses da morte ou os demônios.

2. Além da relação com o espaço, a classificação também aparece envolvida com o tempo. Classificamos aquilo só existe no âmbito da memória como passado, aquilo que está sendo vivido como presente, e inserimos nossos planos e expectativas no tempo reservado ao futuro. Além de tempo e espaço, classificamos também as cores, os tipos de solo, os gêneros musicais, as ideologias, os sabores, as placas de trânsito e até mesmo o tipo de hambúrguer vendido na lanchonete. É impossível viver sem classificar.

3. Os seres humanos também não escaparam à classificação. Distinções são feitas a partir da cor da pele, do status social, do local de nascimento, do sexo, da religião e também do papel social de gênero. Quando alguém pergunta: “o que faz de um macho um macho de verdade?”, estamos nos perguntando a respeito do papel de gênero, ou seja, do papel desempenhado pelo macho tal como esperado em determinada sociedade. Não é preciso viajar pelo mundo para saber que esse papel não cai do céu, mas é socialmente construído.

4. Lutero, por exemplo, achava que machos não tinham um dom natural para acalentar bebês, habilidade que ele considerava inata às mulheres (Preleções sobre o Gênesis, 3,16). Um macho que porventura revelasse aptidão com recém-nascidos seria classificado como “maricas”, ou seja, como um macho que não está cumprindo bem o papel que lhe foi reservado pelo grupo no qual está inserido. Nas sociedades patriarcais esperava-se que o homem dominasse as mulheres. Veja o caso de alguns personagens bíblicos.

5. Um leitor atento percebe, por exemplo, que Faraó é ridicularizado na narrativa bíblica por não ter controle sobre sua filha, que adota um bebê hebreu. Do mesmo modo, a incapacidade de Acabe em governar Jezabel cumpre o propósito do narrador, que tem a clara intenção de retratá-lo como um rei fraco e “pouco masculino”. Das mulheres era esperado, acima de tudo, que gerassem filhos. Elas mesmas assumiam esse papel, o que explica a profunda angústia de Ana (1Sm 1,11) e Raquel (Gn 30,1). Nas sociedades urbanas modernas esse papel vem perdendo força.

6. Bem, eu venho há algum tempo catalogando livros que se dedicam ao tema “sexo e gênero na Bíblia”. Aqui estão algumas das obras que consegui encontrar sobre o assunto:

ANDERSON, Cheryl.  Women, ideology and violence: the construction of gender in the Book of the Covenant and Deuteronomic Law. London: Bloomsbury Publishing PLC, 2005.

STÖKL, Jonathan; CARVALHO, Corrine L. (edit.). Prophets male and female: gender and prophecy in the Hebrew Bible, the Eastern Mediterranean, and the ancient Near East. Atlanta: SBL Press, 2013.

MATTHEWS, Victor H., LEVINSON, Bernard M. FRYMER-KENSKY, Tikva. Gender and Law in the Hebrew Bible and the Ancient Near East. Shefield: Sheffield Academic Press, 1998.

BAKER, Cynthia M. Rebuilding the House of Israel: architectures of gender in jewish antiquity. Stanford: Stanford University Press, 2002.

CARR, David M. The Erotic Word: sexuality, spirituality, and the Bible. Oxford:  Oxford University Press, 2OO3.

ROOKE, Deborah W. Embroidered garments priests and gender in Biblical Israel. Sheffield: Sheffield Phoenix Press, 2009. 




Jones F. Mendonça




quarta-feira, 16 de julho de 2025

LUTERO, ARISTÓTELES E OS COMETAS


1. No final do segundo volume de suas “Preleções ao Gênesis” (1535-1545), Lutero discorre sobre o arco-íris, fenômeno visual apresentado nas linhas da Bíblia como sinal da aliança entre Deus e os seres vivos, cuja finalidade é funcionar com memorial-garantia, assegurando que a terra jamais seria destruída novamente pelas águas (Gn 9,8-17).

2. Lutero entende que o arco-íris não pode ser explicado pela razão, como supunha, por exemplo, Aristóteles em seu tratado “Meteorológica”(metéoros + lógos),” escrito há aproximadamente 2000 anos antes do nascimento do reformador. No tratado, Aristóteles defende que o arco-íris é o resultado do reflexo da luz solar projetada nas gotículas das nuvens (estava certo).

3. Mais adiante, após debochar dos filósofos por acreditarem que os fenômenos naturais podem ser explicados à luz da razão, Lutero diz o seguinte: “todos esses fenômenos são obras de Deus ou de espíritos malignos”. Ele cita como exemplo as “cabras dançantes”, as “serpentes voadoras”, e as “lanças ardentes” (!?), interpretadas como “travessuras dos espíritos no ar”.

4. Lutero terminou de escrever o comentário um ano antes de sua morte, tornando este trabalho uma fonte importante para compreender o pensamento do reformador em sua fase madura. É possível adquirir “Preleções sobre o Gênesis” gratuitamente no site do Project Gutemberg, no formato PDF, em inglês.


Jones F. Mendonça

terça-feira, 15 de julho de 2025

POR QUE HÁ TANTAS TRADUÇÕES DIFERENTES DA BÍBLIA?

1. É possível apresentar ao menos três razões para explicar as diferenças – por vezes gritantes – entre as versões da Bíblia disponíveis no mercado. A primeira delas aparece relacionada ao manuscrito utilizado como base para a tradução. Ao contrário do que muita gente imagina, as cópias do texto bíblico do AT e do NT, produzidas manualmente durante séculos, possuem muitas diferenças entre si, ocasionadas por diversas razões, tanto intencionais como não intencionais. É tarefa da Crítica Textual comparar essas cópias na tentativa de reconstruir aquele que seria o texto mais antigo. Este trabalho envolve uma série de complexidades que não cabem em um post do Facebook.

2. A segunda razão toca em uma questão que afeta qualquer tipo de tradução. As palavras de um determinado idioma não equivalem exatamente às palavras de outro idioma, exigindo do tradutor um exercício nem sempre fácil: escolher palavras do idioma de destino que melhor correspondam às palavras do idioma original. Esse exercício se torna ainda mais complexo quando o texto que está sendo traduzido foi redigido de forma poética (como os Salmos), ou estruturado em pequenas sentenças (como o Livro de Provérbios). Nem todos compreendem do mesmo modo as metáforas, os jogos de palavras, as sutilezas do idioma original. E é preciso acrescentar: sequer sabemos o significado de algumas palavras.

3. A terceira razão diz respeito ao método de tradução: equivalência formal ou equivalência dinâmica? Os tradutores que optam pelo método de equivalência formal se esforçam para manter a estrutura original do texto. Um exemplo: “vaidade das vaidades, diz o pregador...”. Neste caso, o tradutor buscou seguir exatamente a estrutura do texto hebraico: “havel havalim ‘amar qohélet”. As versões que adotam o método de equivalência dinâmica, entendendo que a repetição de uma mesma palavra, no singular e no plural (“havel havalim” = “vaidade das vaidades”), funciona como superlativo, optam por sintetizar a ideia de maneira mais simples. Isso explica a opção feita pela NVI: “Que grande inutilidade!”.

4. É interessante notar que o exemplo acima, tomado de Eclesiastes 1,2, exigiu do tradutor duas habilidades: 1) Escolher uma palavra em nosso idioma que melhor corresponde ao hebraico “havel”, que significa “névoa” (daí “vaidade”, do latim “vanus” = “vazio”, ou, como preferiu a NVI, “inutilidade”); 2) Escolher se mantém a estrutura original do texto (equivalência formal) ou se tenta capturar a ideia que o texto quer comunicar (equivalência dinâmica). Caso o texto de Eclesiastes em questão tivesse sido registrado de maneiras diferentes nos manuscritos disponíveis, ainda seria necessário decidir qual deles reproduz melhor o texto mais antigo. Veja como não é fácil o trabalho do tradutor.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 14 de julho de 2025

AS OVELHAS GORDAS DE EZEQUIEL


1. O capítulo 34 do Livro do Profeta Ezequiel faz uma dura crítica aos “pastores” ( = a liderança de Judá), acusados de abandonar as “ovelhas” ( = o povo), dispersadas “por toda a terra” (34,6). Distantes da sua terra natal, essas “ovelhas” são retratadas como “abandonadas, feridas e fraturadas”, carentes do cuidado divino. Diante de tal abandono, Yahweh declara no v. 11: “certamente eu mesmo cuidarei do meu rebanho e o procurarei”.

2. O texto se torna confuso no v. 16, ao incluir um segundo grupo de ovelhas na profecia. Elas não são descritas como “abandonadas, feridas ou fraturadas”, mas como fortes e saudáveis. Um detalhe que causa dúvida nos tradutores é o seguinte: Essas ovelhas são objeto de juízo ou de salvação? Elas estão sendo “guardadas” ou “destruídas” por Yahweh? Compare você mesmo a tradução do mesmo verso na Bíblia de Jerusalém e na NVI:

“(A) Quanto à GORDA e VIGOROSA, (B) GUARDÁ-LA-EI” (BJ).
“(A’) a REBELDE e FORTE, eu a (B’) DESTRUIREI” (NVI).

3. Há dois contrastes visíveis entre essas duas traduções. Na BJ a ovelha é “gorda”; na NVI é “rebelde. Na BJ ela será “guardada”; na VNI ela será “destruída”. Quanta diferença! Pessoalmente não tenho dúvidas de que a tradução de “shamen” (שמן) por “gorda” é a mais acertada. Ponto para a BJ. Mas não acho que essas ovelhas serão “guardadas” como sugere a BJ. A NVI está correta, elas serão “destruídas”. Qual a razão disso?

4. Inicialmente é preciso dizer que tradução grega registra “guardar” (φυλασσω) e a versão hebraica “destruir” (שמד), daí a diferença*. Os tradutores da BJ tomaram como certa a versão grega, conhecida como Septuaginta. Guarde isso. Prossigamos. Note o leitor que os vv. 17 a 22 falam a respeito do julgamento das ovelhas, que serão punidas juntamente com os pastores. Mas por que as ovelhas “gordas e vigorosas” seriam punidas?

5. Isso ainda não está muito claro para mim. Talvez indique um grupo de pessoas ricas que permaneceu na terra após a destruição de Jerusalém em 587 a.C. Assim, eles apareceriam em oposição às ovelhas “abandonadas, feridas e fraturadas” do exílio. Esta oposição também aparece registrada no Livro do Profeta Jeremias, que opõe os “figos bons” (judeus do exílio) aos figos “podres” (judeus que permaneceram na terra ou fugiram para o Egito).

* As palavras hebraicas "destruir" e "guardar" são parecidas no hebraico: shamar (שמר) = guardar; shamad (שמד) = destruir. Os tradutores da BJ supõem que a versão grega preservou o sentido correto do texto: "guardar".


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 10 de julho de 2025

SOBRE O MESSIAS SACERDOTAL

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1. A palavra hebraica “messias” (משיח) ganha ao longo do Antigo Testamento sentidos diferentes, que variam de acordo com a situação história do momento. Inicialmente o “messias” ( = o ungido) era o rei. Quando a monarquia foi extinta após a conquista de Jerusalém por Nabucodonosor, em 587 a.C., o título pôde ser aplicado a um governante estrangeiro como Ciro, o persa, chamado de Messias em Is 45,1: “Assim diz Yahweh ao seu messias, a Ciro que tomei pela destra”. A religião sempre saberá atualizar e ressignificar suas crenças.

2. Assim que o povo de Judá retornou do exílio, o título voltou a ser aplicado a um indivíduo local: Zorobabel. E como Zorobabel era neto de Zeconias, penúltimo rei de Jerusalém, sobre ele foram depositadas as esperanças messiânicas. Acontece que o livro do profeta Zacarias menciona dois messias: Zorobabel, filho de Salatiel, e Josué, o sumo sacerdote (as “duas oliveiras”, cf. 4,14). Josué inclusive recebe uma coroa: “Pegue a prata e o ouro, faça uma coroa, e coloque-a na cabeça do sumo sacerdote Josué, filho de Jeozadaque” (Zc 6,11).

3. A imagem do messias-sacerdote foi se consolidando no período pós-exílico, uma vez que o papel dos sacerdotes como líderes da comunidade judaica foi se fortalecendo cada vez mais. Entre os judeus da comunidade de Qumran, por exemplo, a figura do sacerdote passou a ocupar um papel mais importante que o do descendente de Davi como encarnação do messias. Na Regra da Comunidade (1QS), documento também conhecido como Manual da Disciplina, o “messias sacerdotal” recebe prioridade sobre o “messias davídico”.

4. A Epístola aos Hebreus, no Novo Testamento, resgata esta tradição ao tratar Jesus como “sumo sacerdote”, como mediador imaculado “que atravessou os céus” (Hb 4,14). Todas as religiões – não importa onde, não importa quando – são afetadas pelo sopro inexorável da ressignificação.




Jones F. Mendonça

domingo, 6 de julho de 2025

URIAS NÃO "LAVOU OS PÉS", POR ISSO FOI MORTO


1. Assim que recebeu a notícia de que Bat-Sheba, mulher de um dos seus generais, havia engravidado, Davi pôs em curso um plano para ocultar sua perigosa aventura sexual. Ele mandou chamar Urias, o marido traído, e disse assim: “desce à tua casa e lava os teus pés” (2Sm 11,8). Mas o que Davi queria dizer com isso?

2. Considerando que “pé” em hebraico (רגל) tem sentido amplo, podendo servir para indicar a perna (Is 47,2) ou até mesmo o órgão sexual masculino (Is 7,20), fica a pergunta: “lavar os pés” seria um eufemismo para “ter relações sexuais”? Vamos com calma. A resposta é sim e não. E vou explicar por quê.

3. A expressão “lavar os pés” reaparece na Bíblia Hebraica muitas vezes, por isso é preciso analisá-la em diversos contextos. Ela ocorre nos livros de Gênesis, Juízes, Samuel e Cântico dos Cânticos, sempre indicando a ação de banhar-se como preparativo para o repouso (cf. Gn 18,4; 19,2; 24,32; Jz 19,21; 1Sm 25,41; Ct 5,3).

4. Assim, ao dizer a Urias: “desce à tua casa e lava os teus pés”, Davi sugeriu o seguinte: “Urias, vai pra casa, toma um banho e tenha um merecido descanso da guerra”. Urias entendeu que esse banho seria acompanhado de outras atividades prazerosas, por isso diz: “irei eu à minha casa para COMER e BEBER e DEITAR-ME com minha mulher?” (11,11).

5. Urias parecia ser bom general, mas era bobinho que só. Ao recusar o pedido de Davi, o general morreu sem banho, sem banquete, sem boa noite de sono e sem a mulher. Repare que neste bela tela, produzida por James Tissot, o rei é retratado aflito ao ver a jovem Bat-Sheba banhando-se como veio ao mundo.


Jones F. Mendonça