terça-feira, 30 de dezembro de 2025

A BÍBLIA E A PUPILA DOS OLHOS


1. Em diversas versões, o Sl 17,8 é traduzido assim: “Guarda-me como a menina dos olhos”. Outras preferem “pupila dos olhos”. Bem, a expressão hebraica no texto original aparece assim: “’iyshon bat ‘ayin”, locução que, traduzida literalmente, seria: “escuridão da filha do olho”. E como parece claro que essa “escuridão da filha do olho” se refere à pupila, alguns tradutores optaram por “pupila”, o nome que damos à essa esfera escura que regula a entrada de luz.

2. Alguns léxicos (e sempre bom desconfiar deles...) dizem que “iyshon” significa “homenzinho”, dada sua semelhança à palavra hebraica “iysh” = homem (o “on” seria um diminutivo). Será? Neste caso, uma tradução bem literal seria “homenzinho da filha do olho”. O tal do “homenzinho”, segundo alguns exegetas criativos, seria uma referência ao reflexo de uma pessoa posicionada de frente para a pupila. Eita! Tá certo isso, Arnaldo?

3. A hipótese do “homenzinho” é difícil de sustentar – ainda que seja defendida em léxicos consagrados. O termo reaparece, por exemplo em Pv 7,9, texto que fala de um jovem ingênuo, prestes a ser seduzido por uma mulher: “Ele passa ao lado, perto da esquina onde ela está, e vai para a casa dela, no crepúsculo, no anoitecer do dia, na ESCURIDÃO da noite e nas trevas”. Imagina se traduzíssemos assim: “no HOMENZINHO da noite e nas trevas”.

4. Repare que o texto situa o deslocamento do “jovem ingênuo” em um caminho cada vez mais escuro: crepúsculo > anoitecer do dia > escuridão da noite > trevas. Essa gradação é proposital e tem a intenção de fazer com que o leitor visualize esse jovem mergulhando nas mais profundas trevas. "Iyshon" significa “escuridão”. Pode ser a escuridão da pupila, pode ser a escuridão da noite. Mas “homenzinho”? Não creio.


Jones F. Mendonça

ADORAÇÃO E PROSTRAÇÃO NA BÍBLIA

1. Ao contrário do que muita gente pensa, o hebraico não possui uma palavra específica para indicar que alguém prestou uma reverência especial a alguma divindade, ou, como dizemos hoje, um ato de “adoração”. O hebraico “shahah” (שחה) significa apenas “prostrar-se”. Vejamos:

2. Em Js 5,14 lemos assim: “Josué lançou-se ao chão e PROSTROU-SE” (diante do chefe do exército de Yahweh). Em Gn 23,12 Abrão “SE PROSTRA” diante do povo da terra. Em Ex 20,5 lemos uma ordem para que os israelitas não “SE PROSTREM” diante de imagens de escultura.

3. Assim, “shahah” apenas indica que uma pessoa “se prostrou” em reverência diante de alguém ou de algo: um sogro (Ex 18,7), um rei (1Sm 24,8), um irmão mais velho (Gn 33,3), uma imagem (Lv 26,1), uma divindade (Ex 23,24), etc.

4. De modo geral, o verbo “adorar” é empregado pelos tradutores quando essa “prostração” é feita diante de alguma divindade. Eis um exemplo: “Então o homem se inclinou e ADOROU (shahah) ao Senhor” (Gn 24,26).

5. No Novo Testamento não é diferente. A palavra grega mais utilizada para indicar culto a determinada divindade é proskuneo (προσκυνεω). Exemplo: “Deus é espírito e aqueles que o ADORAM devem ADORÁ-LO em espírito e verdade” (Jo 4,24). Sigamos.

6. Na Parábola do rei implacável o mesmo verbo aparece, mas desta vez o tradutor verteu “proskuneo” por “prostrar”. A razão: essa prostração é feita diante de um rei, não de uma divindade. Veja: “O servo, lançando-se ao chão, PROSTROU-SE dizendo...” (Mt 18,26).

7. Resumindo: tanto o hebraico “shahah” (שחה) quanto o grego “proskuneo” (προσκυνεω) indicam a mesma coisa: prostrar-se diante de alguém que merece reverência. Se é humano: "prostrou-se"; se é divino "adorou". Nem sempre é fácil dintinguir, claro.
8. Nunca é fácil a vida do tradutor.


Jones F. Mendonça

CRISTÃOS E JUDEUS NO IRÃ


1. A imagem que acompanha este post mostra o interior da primeira sinagoga urbana da história do Irã. Ela foi Inaugurada em 1923, e ainda funciona na Rua 30 Tir, um dos locais históricos da cidade. Como?! Contaram para você que não existe liberdade de culto no Irã? Que não há judeus ou cristãos no país dos aiatolás?

2. Experimente digitar "synagogue Teheran" no Google Maps. Você vai encontrar várias sinagogas, indicadas com uma estrela de Davi. No Irã os judeus têm um assento garantido no Parlamento Iraniano (Majlis), reservado para a minoria judaica, além de representações para outras minorias religiosas como zoroastrianos e cristãos.

3. Última informação importante: o Irã tem a maior população judaica no Oriente Médio fora de Israe.


Jones F. Mendonça

ESCATOLOGIA E GEOGRAFIA SIMBÓLICA


1. Na semana passada indicaram-me um debate publicado no YouTube que tentava articular escatologia e geopolítica. Pensei com meus botões: “lá vem bomba”. Três dos membros da mesa são figuras bem conhecidas: Luiz Sayão, Rabino Ventura e Tassos Lycurgo. A discussão girava em torno da identidade do exército da “terra do Norte”, nação que, de acordo com Ez 38,6.15, se colocará contra Israel nos “últimos dias”. Vai vendo...

2. Tassos Lycurgo, alegando fazer uma “interpretação corajosa,” dizia que esse “povo do Norte” é a Rússia, afinal, a Rússia fica ao norte de Israel (Líbano, Síria, Turquia e Ucrânia também...). Propondo uma interpretação criativa (e não corajosa), Lycurgo acrescentou que o texto anuncia profeticamente a “eixo do mal”, aliança formada pela Rússia, Irã, China, Coreia do Norte e Turquia (anda ouvindo demais o prof. HOC). Tais nações estariam se preparando para atacar Israel.

3. Sigamos deretamente ao ponto. Na Bíblia, as locuções “povo do Norte”, “mal do Norte” e “rei do Norte” não designam propriamente a posição geográfica de um inimigo em relação a Israel, mas o corredor por onde avançavam as tropas inimigas. Repare, por exemplo, que a Assíria e a Babilônia ficavam, respectivamente, a nordeste e a leste de Israel e não ao “norte”. Ainda assim, eram tratados como “povos do Norte” (Assíria, cf. Sf 2,13; Babilônia, cf. Ez 26,7).

4. O “norte” funciona nos textos proféticos como uma espécie de ponto cardeal simbólico de onde vinham as tropas inimigas. Quem quisesse conquistar Israel ou Judá precisava atacar ou pelo norte ou pelo sul, uma vez que seus flancos estavam protegidos pelo mar Mediterrâneo (a oeste) e pelo Rio Jordão/pelo deserto (a leste). E como os principais inimigos de Israel atacavam PELO NORTE, o “norte” funcionava como código narrativo para o perigo escatológico.

5. Finalizo com três dicas: 1) os inimigos mais terríveis de Israel eram classificados como "do norte" porque era do norte que eles geralmente vinham; 2) os profetas não eram cartógrafos; 3) os fundamentalistas nada entendem de geografia simbólica.



Jones F. Mendonça