quinta-feira, 5 de setembro de 2013

O HUMANO: DE GARGANTA VIVA A ALMA ENCARCERADA

Na mentalidade grega, sobretudo a partir de Platão, a crença de que o corpo humano é uma espécie de “casca” ou “prisão” da alma (da psyché) passou a ser amplamente difundida, deixando reflexos profundos na tradição cristã. Tal crença implica no desprezo ao corpo, uma vez que supõe a superioridade da alma (imortal) sobre a matéria. Daí a crítica de Nietzsche de que o pensamento de Platão é uma “filosofia para a morte” e que o cristianismo é uma espécie de “platonismo para o povo”. No fim da vida Platão reafirmou suas profundas convicções: “Aquilo que constitui verdadeiramente o nosso ser, isto é, a psyché, é imortal” (Leis 959 b).

Entre os pais da igreja a ideia está presente, por exemplo, na carta a Diogneto (c. 190-200): “o que a alma é para o corpo, os cristãos são para o mundo [...]. Os cristãos estão como que detidos na prisão do mundo”.

Até mesmo Calvino, nas suas Institutas, expõe esse tipo de crença. O teólogo de Genebra chega a citar Platão (aliás, faz isso mais de uma vez):
Portanto, enquanto habitamos no cárcere de nosso corpo, temos de lutar continuamente com as imperfeições de nossa natureza corrupta; na verdade, com nossa alma natural. Platão diz algumas vezes que a vida do filósofo é a meditação da morte (Livro III, III, 20).
A antropologia hebraica desconhece esse dualismo ou dicotomia entre alma e corpo. A palavra hebraica geralmente traduzida por alma é néfesh. Em alguns textos néfesh indica a garganta:
Sl 69,1 Salva-me, ó Deus!, pois as águas subiram até o meu pescoço (néfesh).
Alguns tradutores optaram por “pescoço”, mas ideia é indicar a garganta, local por onde passa o ar inspirado e expirado (para indicar o pescoço geralmente se usa tzavar, como em Ct 1,10). Se a água sobe mais, a néfesh é comprometida e o corpo perde a vitalidade.

Néfesh serve também para indicar o princípio vital, como neste texto do livro de Reis:
1Rs 17,21  Então se estendeu sobre o menino três vezes, e clamou ao Senhor, dizendo: ó Senhor meu Deus, faze que a vida (néfesh) deste menino torne a entrar nele.
A ideia não é exatamente que a néfesh volte a entrar no corpo, mas que ela seja restituída (shub) às entranhas (qérev) do menino (yéled). Néfesh é fôlego que anima o corpo e não uma essência etérea que habita num indivíduo e sai voando após sua morte.

Por vezes a néfesh indica corporeidade. Um exemplo é este texto de Isaías:
Is 29,8  Será também como o faminto que sonha que está a comer, mas, acordando, sente-se vazio.
No texto hebraico: “sua néfesh está vazia” e não “sente-se vazio”. A ideia é a seguinte: se o corpo não se alimenta, sua néfesh (fôlego de vida) fica fraca, fica vazia (reyqah).

Outro exemplo:
Nm 11,6  Mas agora a nossa alma  (nossa néfesh) se seca; coisa nenhuma há senão este maná diante dos nossos olhos.
Não há alimento, logo a néfesh fica seca (yabesh), sem vida. Inexiste oposição entre corpo (basar) e alma (néfesh). Ambos estão intimamente ligados.

Na antiga tradição hebraica homem e mulher são néfesh encarnada e não psyché aprisionada. Então surgiu o judaísmo helênico. Depois o cristianismo bebeu da mesma fonte. Herança maldita.

Não é difícil entender porque o livro de Cantares tão cedo passou a ser alegorizado por judeus (a partir de Aqiva) e cristãos (Orígenes, Clemente, etc.).  Explica-se facilmente a ênfase que o cristianismo dá aos chamados “pecados sexuais”. Já no IV século Jerônimo se jogava aos espinheiros a fim de que a dor sobrepujasse seu desejo pelo corpo feminino (recomendava banhos frios e o uso de cilício para combater o desejo sexual). O ser humano, antes visto como garganta viva (que grita, urra, come, soluça, bebe, jubila, geme, respira) tornou-se mera alma encarcerada. Desejar é pecar. Mas diferentemente do budismo, que queria suprimir o desejo, os cristãos preferiram: “desejar o nada, a nada desejar”.

Nietzsche tinha razão.



Jones F. Mendonça

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