1. Uma das coisas que aprendi sobre verbos nas aulas de hebraico e reproduzi para meus alunos é a seguinte: verbos classificados no tronco do QAL têm ação simples (p. ex. “ele beijou”); verbos classificados no tronco do PIEL têm ação enérgica, intensa, repetida ou demorada (p. ex. “ele beijou intensamente”). Parece bem simples, não? O exemplo que dei aqui – com o verbo “beijar” – aparece na gramática escrita por Page H. Kelley, p. 40 e também na gramática produzida por Tereza Akil e Rosemary Vita, p. 50. Guarde isso. Sigamos.
2. Com a ajuda de um software bíblico consigo identificar todas as ocorrências do verbo “beijar” (נשק) na Bíblia Hebraica. Mais do que isso, o software sinaliza pra mim quando esse verbo aparece no QAL (forma simples) ou no PIEL (forma intensiva). Com essas informações na minha tela, só preciso analisar caso a caso, de forma que seja possível verificar se a informação passada pela gramática se confirma no mundo das realidades concretas. Sim, sou uma pessoa muito desconfiada. Que tal analisarmos o uso do verbo na história de José?
3. No capítulo 45, verso 14, do Livro do Gênesis, tomamos contato com o dramático encontro entre José e seu irmão Benjamin. José o abraça, e chora emocionado. No verso seguinte ele faz o mesmo com seus outros irmãos: “Em seguida ele COBRIU DE BEIJOS todos os seus irmãos e, abraçando-os, chorou” (Tradução da Bíblia de Jerusalém). Considerando que o verbo “beijar” aqui está no PIEL, o tradutor enfatizou a intensidade da ação empregando outro verbo: “COBRIU de beijos”. Foi uma boa solução.
4. Mais adiante o leitor se depara com outro encontro emocionante, desta vez entre José e seu pai, Jacó: “Então José se lançou sobre o rosto de seu pai, e chorou sobre ele e O BEIJOU” (50,1). Eu esperaria um beijo bem intenso, afinal estamos diante de uma despedida definitiva entre um filho e um pai. Acontece que o verbo “beijar” aqui está no QAL, teoricamente indicando uma ação simples. Assim, fico pensando se o verbo “beijar” no PIEL realmente indica ação intensiva ou repetitiva, como dizem os gramáticos.
5. Muitas vezes um verbo no QAL – teoricamente indicando ação simples – sugere ação intensiva. Muitas vezes o verbo no PIEL – teoricamente indicando uma ação intensiva – sugere ação simples. Talvez seja possível resolver a questão do seguinte modo: Gn 45 e 50 foram redigidos por autores diferentes. O autor de Gn 45 teria optado por enfatizar a ação, usando o verbo no PIEL; o autor de Gn 50 teria empregado o verbo no QAL, pensando que não havia necessidade de usá-lo no PIEL, dadas as circunstâncias. Será?
6. Além de Gn 45,15, outras ocorrências do verbo “beijar” no PIEL, podem ser encontradas em Gn 31,28 (infinitivo do PIEL); 31,55 (imperfeito do PIEL) e no Sl 2,12 (imperativo do PIEL). Não há qualquer razão aparente para que nestes casos específicos a ação seja necessariamente percebida como “intensiva”, seja na repetição, seja na duração, seja no ardor. Tudo isso parece bastante confuso. Será que comptreendemos suficientemente bem como funcionam os verbos no tronco do PIEL?
Jones F. Mendonça