sexta-feira, 30 de maio de 2025

A BÍBLIA HEBRAICA E O BEIJO NO PIEL

1. Uma das coisas que aprendi sobre verbos nas aulas de hebraico e reproduzi para meus alunos é a seguinte: verbos classificados no tronco do QAL têm ação simples (p. ex. “ele beijou”); verbos classificados no tronco do PIEL têm ação enérgica, intensa, repetida ou demorada (p. ex. “ele beijou intensamente”). Parece bem simples, não? O exemplo que dei aqui – com o verbo “beijar” – aparece na gramática escrita por Page H. Kelley, p. 40 e também na gramática produzida por Tereza Akil e Rosemary Vita, p. 50. Guarde isso. Sigamos.

2. Com a ajuda de um software bíblico consigo identificar todas as ocorrências do verbo “beijar” (נשק) na Bíblia Hebraica. Mais do que isso, o software sinaliza pra mim quando esse verbo aparece no QAL (forma simples) ou no PIEL (forma intensiva). Com essas informações na minha tela, só preciso analisar caso a caso, de forma que seja possível verificar se a informação passada pela gramática se confirma no mundo das realidades concretas. Sim, sou uma pessoa muito desconfiada. Que tal analisarmos o uso do verbo na história de José?

3. No capítulo 45, verso 14, do Livro do Gênesis, tomamos contato com o dramático encontro entre José e seu irmão Benjamin. José o abraça, e chora emocionado. No verso seguinte ele faz o mesmo com seus outros irmãos: “Em seguida ele COBRIU DE BEIJOS todos os seus irmãos e, abraçando-os, chorou” (Tradução da Bíblia de Jerusalém). Considerando que o verbo “beijar” aqui está no PIEL, o tradutor enfatizou a intensidade da ação empregando outro verbo: “COBRIU de beijos”. Foi uma boa solução.

4. Mais adiante o leitor se depara com outro encontro emocionante, desta vez entre José e seu pai, Jacó: “Então José se lançou sobre o rosto de seu pai, e chorou sobre ele e O BEIJOU” (50,1). Eu esperaria um beijo bem intenso, afinal estamos diante de uma despedida definitiva entre um filho e um pai. Acontece que o verbo “beijar” aqui está no QAL, teoricamente indicando uma ação simples. Assim, fico pensando se o verbo “beijar” no PIEL realmente indica ação intensiva ou repetitiva, como dizem os gramáticos.

5. Muitas vezes um verbo no QAL – teoricamente indicando ação simples – sugere ação intensiva. Muitas vezes o verbo no PIEL – teoricamente indicando uma ação intensiva – sugere ação simples. Talvez seja possível resolver a questão do seguinte modo: Gn 45 e 50 foram redigidos por autores diferentes. O autor de Gn 45 teria optado por enfatizar a ação, usando o verbo no PIEL; o autor de Gn 50 teria empregado o verbo no QAL, pensando que não havia necessidade de usá-lo no PIEL, dadas as circunstâncias. Será? 

6. Além de Gn 45,15, outras ocorrências do verbo “beijar” no PIEL, podem ser encontradas em Gn 31,28 (infinitivo do PIEL); 31,55 (imperfeito do PIEL) e no Sl 2,12 (imperativo do PIEL). Não há qualquer razão aparente para que nestes casos específicos a ação seja necessariamente percebida como “intensiva”, seja na repetição, seja na duração, seja no ardor. Tudo isso parece bastante confuso. Será que comptreendemos suficientemente bem como funcionam os verbos no tronco do PIEL?  



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 14 de maio de 2025

ENCÍCLICAS, LIBERALISMO ECONÔMICO E COMUNISMO


1. A eleição do cardeal Robert Prevost como substituto do Papa Francisco despertou a curiosidade de muita gente, interessada em saber a razão que levou o religioso a adotar o título “Leão XIV”. Em discurso tornado público, Prevost expôs a razão da escolha: trata-se de uma referência ao legado de Leão XIII, Papa responsável pela elaboração da Doutrina Social da Igreja, cujo documento principal é a Encíclica Rerum Novarum, publicada em maio de 1891.

2. O documento faz críticas tanto ao liberalismo econômico, acusado de gerar desigualdade e exploração econômica, como às ideias socialistas, vistas como uma ameaça ao edifício social por instigarem o ódio nos pobres contra os ricos e por defenderem a abolição da propriedade privada. Um bom leitor perceberá com clareza que são mais abundantes e enfáticas as críticas ao socialismo que ao liberalismo econômico. Prossigamos.

3. Em muitos pontos a encíclica lembra a Carta aos Efésios (6,5-9), exigindo obediência dos servos e benevolência dos patrões: “Quanto aos ricos e aos patrões, não devem tratar o operário como escravo, mas respeitar nele a dignidade do homem... Quanto aos deserdados da fortuna, aprendam da Igreja que, segundo o juízo do próprio Deus, a pobreza não é um opróbrio e que não se deve corar por ter de ganhar o pão com o suor do seu rosto”.

4. Uma crítica mais ferrenha da Igreja ao socialismo aparece em 1937, consignada nas linhas da Encíclica Divinus Redemptoris, publicada em março de 1937. Há destaque especial ao contexto político-social experimentado pela Espanha, mergulhada em uma guerra civil entre republicanos (aliados convenientemente aos comunistas e anarquistas) e nacionalistas (apoiados pela Igreja). O documento também reserva uma crítica ao liberalismo econômico, que teria, por exemplo, investido em fábricas e abandonado as igrejas.

5. A ênfase maior da encíclica, como já foi dito, dirige-se ao socialismo. O documento expressa grande indignação da Igreja contra três tipos principais de problemas: 1) ataques dos socialistas a Igrejas e monumentos religiosos; 2) desordem social desencadeada pelas ideias socialistas; 3) defesa do ateísmo. Como sabemos, os republicanos apoiados pelos comunistas e anarquistas perderam a batalha na Espanha. O vencedor foi o general Francisco Franco, ditador que governou o país com mão de ferro por quase 40 anos.

6. Quem também celebrou a vitória de Franco foi a Igreja, que recebeu do governo uma série de privilégios legais, políticos, econômicos e fiscais (Concordata de 1953). As Encíclicas, de modo geral, querem apenas manter a ordem social estabelecida. E não é esta a tendência dominante na religião organizada, manter o status quo, a ordem social vigente, tentando legitimá-la como divina, e, portanto, como “natural”? Tanto a Rerum Novarum como a Divinus Redemptoris nascem a partir de duas preocupações fundamentais: preservar o poder da Igreja e a hierarquia social vigente.


Jones F. Mendonça

terça-feira, 13 de maio de 2025

LEÃO XIV E A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

1. Em 2006, sob o pontificado de Bento XVI, José Comblin escreveu “sinais dos tempos – 40 anos depois do Vaticano II” (Reb 66). Parte do texto se dedica a analisar os resultados concretos da chamada “doutrina social da Igreja”, um conjunto de princípios morais e socias que visavam apontam um caminho para a Igreja que fosse capaz de promover o bem comum e a dignidade humana. Sob a perspectiva política, econômica e social, a doutrina social da Igreja criticava tanto o comunismo como o capitalismo industrial. O contexto: a virada do século XIX para o século XX.

2. Para quem não sabe, o grande responsável por essa postura foi o Papa Leão XIII, cujo nome foi adotado por Robert Prevost, ou Leão XIV. A adoção do “Leão” indica que Prevost pretende se inspirar no legado de Leão XIII. Voltemos ao texto de Comblin. Em sua reflexão, o teólogo lamenta que a doutrina social da igreja tenha sido feita “sem nenhuma participação das igrejas locais” e” sem a ampla consulta ao povo cristão”. Mais do que isso, considera sem utilidade documentos bem elaborados e bem redigidos, quando desacompanhados de “gestos espetaculares”.

3. Comblin finaliza dizendo que “o testemunho da igreja precisa ser visível”, dado por “pessoas significativas”: “O Papa atrai mais a TV do que um bispo e um bispo mais do que um padre e um padre mais do que um leigo. Daí uma responsabilidade maior para quem está mais exposto à mídia”. Trocando em miúdos: Comblin declara desejar um Papa que não apenas produza documentos repletos de “matizes e contornos”, mas que tenha coragem para enfrentar os problemas que afligem os fiéis e o mundo por meio de ações concretas.



Jones F. Mendonça

CONEXÕES ENTRE O JARDIM E O APRISCO NO EVANGELHO DE JOÃO


1. O ambiente que compõe o cenário da prisão de Jesus, tal como registrado no capítulo 18 do evangelho de João, é um jardim localizado no Monte das Oliveiras. De acordo com o evangelista, Jesus entra nele com seus discípulos e logo é assaltado por um destacamento de guardas armados, conduzidos por Judas (18,3). Jesus não foge deles. Pelo contrário, ele os enfrenta, revela sua identidade e pede para que não importunem seus discípulos (18,8). Pedro tenta reagir violentamente contra os algozes, mas Jesus o detém. A razão alegada: "deixarei eu de beber o cálice que o Pai me deu?" (18,11).

2. James Resseguie percebeu uma notável semelhança entre o que acontece em Jo 18 e a parábola preservada no capítulo 10 de João. Na parábola Jesus se coloca com o “bom pastor”, como aquele que “enfrenta o lobo” (10,12), como aquele que “dá a vida por suas ovelhas” (10,11). Não é, portanto, como o “ladrão”, o “assaltante”, o “mercenário” (10,1; 10,12). O ladrão – ele enfatiza – veio para “roubar, matar e destruir” (10,10). Seu objetivo é assaltar as ovelhas e dispersá-las (10,12). Não se importa com elas.

3. James Resseguie supõe que o jardim de Jo 18 está de alguma maneira conectado ao aprisco de Jo 10. No jardim, acompanhado de seus discípulos, Jesus “enfrenta os lobos”, os “ladrões”, os “mercenários”. Não foge, não se acovarda, não permite que suas ovelhas sejam feridas, devoradas, dispersadas. Judas, os fariseus e os guardas desejam entrar pela “porta do jardim”, mas são detidos por Jesus, que avança para proteger suas ovelhas. O jardim de Jo 18 funciona como um aprisco. Jesus é o bom pastor, seus discípulos as ovelhas, Judas o líder dos lobos-ladrões-mercenários (Judas é chamado de “ladrão” – κλεπτης – em 12,6).

4. A leitura desatenta de Jo 10 converteu o “ladrão”, o “mercenário”, o “lobo”, ou seja, aquele que “veio para roubar, matar e destruir”, em “diabo”. Mas não se trata disso. O texto na verdade fala de “falsos pastores”, de líderes que “apascentam a si mesmos” (Ez 34,8), que abandonam suas ovelhas em “dias de nuvem e de escuridão” (Ez 34,12). O episódio narrado em Jo 18 está conectado a Jo 10, que por sua vez se conecta a Ez 34. A Bíblia, em sua forma final, acabada, canonizada, é o resultado de um processo contínuo de leitura, releitura e ressignificação.

5. Quem estiver interessado neste tipo análise textual deve se debruçar sobre os trabalhos de James Resseguie (NT), Robert Alter (AT) e tantos outros dedicados à chamada “leitura atenta”, “narratologia”, “interpretação bíblica formalista” ou “neocrítica”.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 1 de maio de 2025

SOBRE DAVI COMO FILHO BASTARDO NA SÉRIE DA PRIME VÍDEO

1. Ouvi dizer – porque ainda não assisti – que na série “Casa de Davi” (Amazon Prime), o jovem Davi é retratado como filho bastardo. Eita, mas de onde teria vindo essa ideia? Bem, a hipótese nasceu a partir de uma leitura atenta do Salmo 27, atribuído a Davi. No v. 10 lemos assim: “Pois meu pai e minha mãe ME ABANDONARAM, mas Javé me acolherá!” (cf. trad. BJ). Neste caso, o texto sugere que o salmista foi abandonado pelos pais (o verbo está no passado, no perfeito do QAL, como em 2Rs 22,17; 2Cr 34,25; Jr 1,16; 5,7).

2. Provavelmente incomodados com a declaração, alguns tradutores fizeram pequenas modificações com a finalidade de dar novo sentido à fala do salmista. Veja:
“SE meu pai e minha mãe me ABANDONAREM, então o Senhor me acolherá” (PFJA).

“AINDA QUE me ABANDONEM pai e mãe, o Senhor me acolherá” (NVI).

“Porque, QUANDO meu pai e minha mãe me DESAMPARAREM, o SENHOR me recolherá” (ACF).
3. A hipótese ganha ainda mais força quando se leva em conta uma declaração atribuída a Davi presente no Salmo 51: “em pecado se AQUECEU minha mãe” (v. 5). Ou melhor, "minha mãe concebeu-me no pecado”. Quer mais um verso para apimentar essa treta? Aqui vai: “tornei-me um estrangeiro aos meus irmãos, um estranho para os filhos de minha mãe”. Davi teria origem edomita, povo descendente de Esaú, irmão de Jacó que era ruivo como Davi.

4. Quer saber o que acho? Acho nada, fico só observando…



Jones F. Mendonça

PRECISAMOS FALAR SOBRE O TAMANHO DE GOLIAS


1. Eu poderia citar ao menos duas tretas envolvendo o embate entre Davi e Golias tal como preservado no livro bíblico de I Samuel. A primeira diz respeito ao tamanho do “gigante” filisteu. A versão da história contada em hebraico registra o seguinte: Golias tinha a altura de “seis côvados e um zeret (זרת)” (1Sm 17,4). Bem, ninguém tem certeza sobre o significado de “zeret”, mas sabemos que o termo foi traduzido por “palmo” (σπιθαμης) nas versões gregas do texto hebraico. Se isto for certo, Golias teria “seis côvados e um palmo”. Fazendo as contas: 6 côvados de 45cm + 1 palmo de 23cm = 2,93 metros (*).

2. Acontece que na versão grega do texto hebraico, conhecida como Septuaginta ou LXX, a altura de Golias foi registrada de maneira diferente. Golias teria “quatro” (τεσσαρων) côvados e um palmo e não “seis” côvados e um palmo. Somando os quatro côvados de 45 centímetros + um palmo de 23cm = aproximadamente 2 metros (cerca de 1/3 menor que na versão hebraica). Caso você leia com atenção, vai perceber que em nenhum lugar o texto trata Golias como “gigante”. Apenas enfatiza que ele era forte e extremamente hábil na arte da guerra.

3. Bem, esta é a primeira treta. Quer saber qual é a segunda? Essa eu não conto. Mas se você quiser ler uma obra crítica sobre as narrativas bíblicas relacionadas a Davi, eu sugiro “Davi: a vida real de um herói bíblico” (Zahar, 2016), escrito por Joel Baden, professor de Yale e especialista no Antigo Testamento. Baden adora uma treta. Eu, não... 

(*) Palmo (σπιθαμης) , em textos gregos, indicava a distância entre o polegar e o dedo mínimo da mão quando estendidos, cerca de 23 cm de envergadura. O côvado era a distância entre o cotovelo e a ponta do dedo médio, aproximadamente 45 cm.


Jones F. Mendonça