quarta-feira, 4 de março de 2020

A REVOLTA DE CORÉ E O FOGO DE SODOMA


No conhecido episódio de Nm 16,2, Coré, Datan e Abiram desafiam a autoridade de Moisés “colocando-se de pé” diante dele. A oposição é marcada pelo verbo “pôr-se de pé”, “levantar” (qum). Em Gn 18,22 temos uma construção semelhante. Neste caso Abraão “permanece de pé diante das faces de Javé”. O verbo é outro (‘amad), mas num primeiro momento parece expressar a mesma ideia. Será?

Bem, neste caso o texto estaria sugerindo que Abraão permanece de pé “diante das faces” de Javé como que se opondo ao plano divino de destruir Sodoma. Essa oposição parece ser confirmada a partir da (insistente e ousada) intercessão do patriarca a favor de Sodoma (vv. 23-25; 27-29; 30-31; 32). Um confronto como este não seria inédito: Jacó luta com Deus... e vence! (cf. Gn 32,28; Os 12,3-4).

Para confirmar a tese eu precisaria localizar e analisar outras ocorrências do verbo “‘amad” antes da expressão “diante das faces de”. Encontrei quatro casos: Jr 35,19; Zc 3,1; 2Cr 20,13 e 18,20. Em todos eles, “ESTAR DE PÉ diante das faces de” serve apenas para indicar a posição do interlocutor. Nunca indica oposição.

O verbo usado em Nm 16,2 (revolta contra Moisés) possui sentido diferente: não significa “estar/permanecer de pé”, mas “pôr-se de pé”, “levantar”. Enfim, indica movimento, é “levantar-se” de algum lugar (Ex 24,13; Nee 9,3), “levantar” algo (Ex 26,30; 1Rs 16,32) ou “levantar-se” contra alguém ou algo (cf. Gn 4,8; Ex 15,7; Jz 20,5).

Então embora seja verdade que o texto coloca Abraão de certa maneira em oposição aos planos de Javé, esta postura não é acentuada pelo verbo. Não indica postura de confrontação, mas de súplica, de intercessão. Uma sutileza do verbo que faz muita diferença.


Jones F. Mendonça

Um comentário:

  1. Nesse texto, Abraão aparece usando uma expressão que se repete em Jó 42,6: eu, que sou pó e cinza. Lá, traduz-se no pó e na cinza, a despeito de não haver preposição. Jack Miles diz que Jó 42,6 é da mesma ordem gramatical que esse texto de Abraão: Jó teria dito que tem pena do pó e da cinza, que Miles traduz "mortal clay" (barro mortal). Jó não se arrepende, mas, diante da visão do deus apavoneando-se, ele reflete que miseráveis são seus conterrâneos... Faz muito sentido.

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