sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

AS CIDADES DA "TERRA DE NOD"


1. Quem faz uma leitura atenta do texto do Gênesis prestando bastante atenção na narrativa, percebe que os descendentes de Caim fundam uma cidade. E por que eles fundam uma cidade? Bem, porque se para Adão a terra se tornou apenas pouco produtiva (Gn 3,17), para Caim ela se tornou estéril (4,11-12). Assim, o que resta aos cainitas é construir cidades, criar animais, inventar instrumentos musicais e fundir metais. Agricultura, nem pensar!

2. A imagem que acompanha este post vem do Manuscrito Egerton de Gênesis, produzido entre 1350-75. Ela exibe alguns dos descendentes de Caim mencionados em Gn 4,17-24: Henoc (construtor de cidades), Jabel (habitante de tendas e cuidados de rebanhos), Jubal (pai de todos os que tocam lira e charamela) e Tubalcaim (pai de todos os laminadores de cobre e ferro). Noema aparece fiando um tecido, mas o ofício de tecelã não é mencionado no texto, é criação do artista.

3. Todos os descendentes de Caim nascem a partir de sua união com uma mulher cujo nome não é mencionado (4,17). Quem é ela? Bem, o texto apenas diz que ela é da “terra de Nod” ( = terra da peregrinação, cf. 4,16). Quem lê o relato como se fosse um texto jornalístico ou algo produzido pela pena de um historiador fica confuso: “quem são os pais dessa moça”? Seria uma filha desconhecida de Adão e Eva? Ou, quem sabe, a serpente transformada em mulher?

4. Mas o texto não possui natureza histórica. Tudo o que ele pretende é comunicar uma mensagem. Guarde isso no coração e durma bem.



Jones F. Mendonça

TEOLOGIA E FILOSOFIA

1. Desde o momento em que o cristianismo se tornou uma religião proselitista, jamais deixou de empregar a filosofia para expor e dissecar os dogmas de fé. Paulo, por exemplo, claramente faz uso de elementos da filosofia platônica e estoica para comunicar sua mensagem. Quando diz, por exemplo, que as realidades espirituais são percebidas “como que por espelho” (1Co 13,12) ou que algumas ações humanas devem ser condenadas por agirem “contra a natureza” (Rm 1,26), toma por empréstimo categorias mentais e expressões linguísticas tomadas do platonismo e do estoicismo.

2. Os Pais da Igreja dissecaram os dogmas de fé a partir da filosofia neoplatônica; os escolásticos fizeram isso lançando mão da filosofia aristotélica; os reformadores retornaram a Platão; os protestantes liberais usaram os óculos da filosofia kantiana; Karl Barth, na primeira fase de seu pensamento, buscou apoio no existencialismo de Kierkegaard. E tem mais. Os teólogos da libertação viram até a possibilidade de dialogar com a filosofia marxista. E pode isso, Arnaldo? Ora, claro que pode. Se foi possível instrumentalizar Platão, Aristóteles, Kant e tantos outros, porque não seria legítimo articular fé e filosofia a partir de Marx?


Jones F. Mendonça

A VOZ DE JEREMIAS

1. Alguns textos que compõem os livros proféticos são realmente difíceis de interpretar. Isso acontece porque nem sempre é possível identificar a voz de quem fala. Um oráculo pode começar com a fala divina e no meio do caminho alternar para outra voz (e outro tempo verbal). Quero tomar como exemplo um trecho do livro do profeta Jeremias (Jr 9,9-11).

2. Veja que em 9,9 a voz que fala é a de Yahweh: “Não deveria eu castigá-los por isso? ...contra uma nação como esta não deveria eu vingar-me?”. No verso seguinte a imagem evocada pelo texto é a de alguém que chora: “sobre as montanhas elevo gemidos e prantos”. Pergunta: quem chora é o próprio Yahweh ou o profeta que anuncia sua mensagem? Isso não fica claro.

3. No v. 11 Yahweh expõe nova sentença contra a capital de Judá: “Eu farei de Jerusalém um monte de pedras”. Temos assim o seguinte quadro: v. 9: Yahweh ameaça punir Jerusalém (futuro); v. 10: Alguém chora por uma cidade que aparentemente já está destruída (presente); v. 11: nova ameaça contra Jerusalém (futuro).

4. É possível que um editor tenha enxertado o v. 10 entre os vv. 9 e 11, visando dar mais dramaticidade ao texto. Neste caso o choro seria o do profeta. Também é possível que os três versos venham da mão de um mesmo autor. O choro do v. 10 seria expressão da tristeza divina por aquilo que a própria divindade fará em breve contra Jerusalém.


Jones F. Mendonça