terça-feira, 27 de agosto de 2024

NOVA COLEÇÃO SOBRE PERSONAGENS BÍBLICOS: MOISÉS

Desde que o rabino Avraham ibn Ezra escreveu, no século XII, um comentário sugerindo que certas passagens da Torah (o Pentateuco cristão) não poderiam ter sido escritas por um autor apenas (Moisés), a pesquisa sobre a autoria do Pentateuco e, por conseguinte, sobre a própria figura do profeta como personagem histórico, passou por profundas transformações.

Neste livro, escrito por Thiago Pacheco, doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a figura de Moisés é analisada com as ferramentas do método histórico-crítico e da teoria narrativa de Paul Ricoeur. Assim, destaca as diversas facetas de Moisés que se mesclam no texto: guerreiro, profeta, sacerdote, operador de milagres e muito mais.

Não apenas atento às diversas camadas redacionais do texto em busca de como foram articuladas as diversas tradições a respeito de Moisés, o autor ainda brinda o leitor com reflexões teológicas relacionadas às tradições preservadas na Bíblia Hebraica a respeito da figura de Moisés, tais como profecia, milagre, fé e experiência religiosa.

O livro, publicado pelo Ateliê de Humanidades Editorial, já está disponível para compra na pré-venda no site da Amazon. Reserve já o seu.


Jones F. Mendonça

RUAH, NESHAMAH, NÉFESH: CONSIDERAÇÕES SOBRE O AR EM MOVIMENTO


1. Há três palavras principais no hebraico relacionadas ao ar em movimento: ruah, neshamah e néfesh. Tais palavras não são sinônimas, mas podem ser utilizadas de forma intercambiável em alguns casos. Ruah, por exemplo, serve para indicar um vento forte, como aquele que abre o Mar dos Juncos: “E Yahweh, por um forte vento oriental que soprou toda aquela noite” (Ex 14,21). Mas ruah também serve para designar vento brando, como o “vento” que sai dos nossos narizes, o “vento de vida”, o fôlego (Gn 7,22). Em boa parte dos casos ruah é traduzida por “espírito” (cf. Jz 11,29), potência invisível que como o vento anima aquilo que toca.

2. Neshamah tem sentido mais restrito, substantivo feminino utilizado principalmente para indicar o ar que sai das narinas, o fôlego. Em Gn 2,7 Yahweh modela o homem do solo e sopra em suas narinas a “neshamah” de vida, ou seja, o “vento”, o “fôlego” de vida. Para indicar a morte de toda a população de uma cidade, exterminada pala espada, fazia-se alusão a abolição de todo o fôlego: “não restou nenhum fôlego” (Js 11,14), ou seja, nenhum ser com vida. Em Jó 4,9 – expostos em paralelismo semântico – ruah e nehamah aparecem como sinônimos: “com a neshamah de Deus perecem, com a ruah de sua ira se consomem”.

3. Néfesh indica, em sentido primário, a garganta. Assim, quando Yahweh sopra nas narinas do primeiro homem a “neshamah” de vida, o “fôlego” de vida, ele se torna uma “garganta” viva (Gn 2,7), ou seja, um ser que respira, que lamenta, que grita, que sente sede e fome e, claro, que também desobedece. Em muitas Bíblias néfesh é traduzido por “alma”. A tradução não está errada se considerarmos que “alma” indica aquilo que anima o corpo, que lhe dá vida. Néfesh não tem qualquer relação com a ideia grega de uma “alma imortal”, como antítese ao corpo finito, percebido como uma espécie de casulo ou prisão da alma (percepção adotada por Calvino).


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

LUTERO, OS "FILHOS DE DEUS", OS INCUBUS E OS SUCUBUS


1. A narrativa bíblica presente no capítulo seis do Gênesis – a união dos “filhos de Deus” às “filhas dos homens” – recebeu ao longo da história três explicações básicas: 1) os “Filhos de Deus” são os descendentes de Adão pelo tronco de Seth (benditos); as “Filhas dos homens” são descendentes Adão pelo tronco de Caim (malditas); 2) Os “Filhos de Deus” são seres angelicais; as “filhas dos homens” são humanas; 3) Os “Filhos de Deus” são homens poderosos da antiguidade, precursores das uniões poligâmicas com as “filhas dos homens”, mulheres dotadas de grande beleza.

2. A proposta nº 1 aparece nas Preleções sobre o Gênesis, produzidas por Martinho Lutero entre 1535-1545 (Commentary on Genesis, Vol. 2: Luther on Sin and the Flood). O monge agostiniano entende que o texto aponta para duas violações: 1) Os descendentes de Adão gerados por Seth (“Filhos de Deus”) desejaram as descendentes de Adão geradas de Caim, as “cainitas” (“Filhas dos homens”); 2) O texto revela um ímpeto maligno: desejar tantas mulheres quantas pudessem tomar (poligamia). Lutero faz essa interpretação inspirado na opinião de Nicolau de Lyra, teólogo que viveu entre os séculos XIII e XIV (1270-1349).

3. O reformador rejeita a interpretação judaica que vê os “Filhos de Deus” (bney ha-elohim) como sendo seres angelicais expulsos da corte celeste e convertidos em “demônios”. Para o reformador, tal interpretação não passa de “balbucios judaicos”. A razão: o reformador acredita – reproduzindo crendices medievais muito populares – que demônios podem sim assumir forma humana e até mesmo seduzir e se relacionar sexualmente com homens e mulheres, mas nega que esse tipo de relação seja capaz de gerar filhos tal como indicado no capítulo seis do Gênesis: “quando os filhos de Deus se uniam às filhas dos homens e estas lhes davam filhos” (Gn 6,4).

4. Seguem trechos das Preleções sobre o Gênesis: “Mas quanto aos demônios lascivos e prostitutas (íncubos e súcubos), eu não nego — não, eu acredito! — que um demônio pode ser um lascivo ou uma prostituta, pois ouvi homens citarem suas próprias experiências. [...] Quando o diabo está na cama, um jovem pode pensar que tem uma garota com ele, e uma garota que tem um jovem com ela; mas que qualquer coisa possa nascer de tal concubinato, eu não acredito. Muitas feiticeiras foram, em um momento ou outro, submetidas à morte na fogueira por conta de suas relações com demônios”.

5. Assim, embora reconheça ser possível a relação sexual entre homens/mulheres e demônios masculinos/femininos (íncubos e súcubos), Lutero rejeita veementemente que o capítulo seis do Gênesis trate desse tipo de relação. Para ele, como já foi dito, o texto condena 1) a união entre os descendentes de Seth e de Caim; 2) as uniões poligâmicas. Problemas: 1) O Antigo Testamento jamais condena as uniões poligâmicas; 2) A expressão “bney ha-elohim”, traduzida por “filhos de Deus” sempre indica membros da corte celeste, como Jó 1,6: “No dia em que os Filhos de Deus (bney ha-elohim) vieram se apresentar a Yahweh…”.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

A NOITE E AS TREVAS NA BÍBLIA HEBRAICA


1. Noite, em hebraico, é laylah (לילה), funcionando como oposição ao “yom” (יום), o dia. Muito do que é narrado na Bíblia Hebraica acontece durante o período noturno. É durante a noite que dois anjos cobiçados pela população de Sodoma entram na casa de Ló (Gn 19,15). Na calada da noite as filhas de Ló cometem incesto com seu pai, dando origem aos amonitas e moabitas (Gn 19,34-35). Em uma noite muito estranha Saul entra em delírio extático e cai nu até o amanhecer (1Sm 19,24). Boaz, no meio da noite, estremece após encontrar Rute, toda perfumada, deitada aos seus pés (Rt 3,8).
 
2. Além de “noite”, o hebraico possui uma palavra específica para a transição entre o dia e a noite: o “crepúsculo da tarde”, ‘êrev (ערב). No fim de uma tarde, já mal iluminada pelo sol, Jacó toma Lia por engano. O pai da moça, que não era tonto, entrega Lia após um banquete, aproveitando-se não apenas do ambiente mal iluminado, mas também do juízo de Jacó afetado pela embriaguez. No fim da tarde, enquanto o sol se despede, Davi se debruça sobre o terraço e deseja Bat-shebah, mulher de Urias, que se purificava de suas regras (2Sm 11,1-5).
 
3. Além de “noite” e “crepúsculo da tarde”, o hebraico emprega uma variedade de palavras para indicar as trevas e a escuridão: ‘alatah, apelah, arapel, marshakh, neshep, ‘eypah e hoshekh. Na Bíblia Hebraica as trevas nem sempre funcionam como símbolo para o mal. Em Deuteronômio 5,22, por exemplo, Yahweh se dirige ao povo em meio às “trevas, nuvens e escuridão”. Do mesmo modo, em Êxodo 20,21, Moisés se achega "às trevas espessas onde Deus estava”. O Salmo 18 diz que Yahweh “faz das trevas o seu véu” (v. 11). Nas trevas Deus se esconde e Deus se revela: Deus absconditus et Deus revetus.



Jones F. Mendonça

sábado, 10 de agosto de 2024

DE JERUSALÉM A JERICÓ: GEOGRAFIA BÍBLICA

Uma caminhada de Jerusalém a Jericó – tal como aparece na parábola do Bom Samaritano (Lc 10,29-37) – envolve um percurso de cerca de 30Km. Jerusalém fica na região montanhosa da Judeia, cerca 720 metros acima do nível do mar. Jericó fica em uma região muito baixa, no Vale do Jordão, 250 metros abaixo do nível do mar (trata-se de uma descida de quase mil metros!). No vídeo que produzi para meus alunos de Geografia Bíblica, com duração de pouco mais de um minuto e feito com a ajuda do Google Earth Studio, você vai visualizar o trajeto entre essas duas cidades mencionadas na Bíblia.



Jones F. Mendonça

SOBRE AS HONRAS DIVINAS IMPERIAIS ROMANAS


1. De modo geral, quando dizemos que um povo da antiguidade adorava determinada divindade, somos contaminados pela noção cristã relacionada aos atributos de um “deus”: a ele seriam atribuídos poderes ilimitados, sendo onisciente, onipresente, eterno, etc. Mas no mundo greco-romano no qual o cristianismo se desenvolveu, ser tratado como “deus” podia indicar muitas coisas. Além das divindades tradicionais do culto romano – como Zeus, Hermes e Afrodite – também podiam ser considerados “divinos” (divus/divas) alguns imperadores ou membros da família real. E essa divinização podia ocorrer inclusive enquanto a pessoa estivesse viva.

2. Em artigo publicado no The Bible and Interpretation, David Clint Burnett apresenta um panorama das honras divinas imperiais romanas, classificadas em quatro categorias: 1) Honra Romana: concedida post mortem pelo senado a alguns imperadores e membros da família real; 2) Honra Provincial: em vida, estabelecida pelas províncias; 3) Honra Cívica: em vida, concedida pelas cidades como gratidão por sua bênção; 4) Honra Privada: em vida, concedida por indivíduos ou associações privadas visando mostrar apreço por seus benefícios. Assim, um imperador “divinizado” podia ser recompensado com culto, templos, sacrifícios, hinos e orações.


Jones F. Mendonça

O "VENTO" NA BÍBLIA HEBRAICA - PARTE II

1. A palavra hebraica ruah (רוח) pode ser traduzida tanto por “vento” como por “espírito”. Só o contexto pode ajudar o tradutor a fazer a escolha correta. Na maioria dos casos é bem fácil decidir, como em Jz 11,29: “Então veio sobre Jefté a ruah ( = o espírito) de Yahweh”. Ou seja, “o espírito de Yahweh veio sobre Jefté”. O texto se refere ao “fôlego” (potência invisível) de Yahweh, ou, como preferimos, o “espírito” de Yahweh. Fácil.

2. Agora vejamos um caso em que ruah deve ser traduzida por “vento”. No Sl 1,4 lemos que os ímpios “são como a palha que a ruah ( = o vento) dispersa”. Não é o “espírito” que dispersa a palha, mas “o vento” que dispersa a palha, claro. Perceba o leitor que o sentido primário de ruah é o mesmo: “fôlego”, “sopro da boca”, “hálito”, “vento”. Todas essas palavras estão conectadas por um elemento comum.

3. Quando o texto se refere a uma ruah que agita as ondas, por exemplo, é “vento”. Quando indica uma ruah que movimenta as entranhas, que dá ânimo ao ser, que dá vida, é espírito. Os tradutores divergem em relação à tradução de Gn 1,2: afinal, aquilo que soprava sobre as faces das águas era um “vento de Deus” ou o “Espírito de Deus”? 



Jones F. Mendonça

O "VENTO" NA BÍBLIA HEBRAICA


1. O vento divino desempenha um papel muito especial nos primeiros cinco livros da Bíblia. É por meio de um vento que: 1) elohim faz baixar as águas do dilúvio (Gn 8,1); 2) Yahweh traz gafanhotos para devastar a terra do Egito (Ex 10,13); 3) Yahweh faz o mar se abrir para a travessia dos descendentes de Abraão, Isaac e Jacó (Ex 14,21); 4) Yahweh traz codornizes para alimentar o povo no deserto (Nm 11,31).

2. A palavra hebraica “ruah”, cujo sentido primário é "vento", não apenas indica uma ventania. Em Gn 7,22 é “vento” que entra pelas narinas e anima o corpo: “e tudo o que tinha ‘vento de vida’ em suas narinas... morreu”. Em 1Sm 30,12 um egípcio recobra os sentidos após Davi lhe oferecer uma pasta de figos: “ele comeu e o ‘vento’ retornou” [às suas narinas]. Elifaz, em Jó 15,13, lamenta que um moribundo “levante contra Deus o seu vento”, ou seja, sua “ira”.

3. Ruah é vento de sopro, vento de ira, vento de vida, vento que anima o corpo (espírito), vento que movimenta a criação em favor de seu povo.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

SODOMA, ANJOS E SEXO


1. De todos os livros da Bíblia, o único que se propõe a explicar o pecado de Sodoma a partir de uma questão sexual é a epístola de Judas. De acordo com o autor da epístola, os moradores da cidade ficaram sujeitos ao castigo “por se terem prostituído, procurando unir-se a seres de uma natureza diferente” (Jd 1,7; Tradução da Bíblia de Jerusalém). Uma tradução mais literal seria: “por seguirem atrás de carnes diferentes” (σαρκος ετερας).

2. Mas que “carnes diferentes” seriam essas? Ora, de acordo com o texto de Gênesis, a população da cidade – incluindo velhos e jovens – queria “conhecer” (ou seja, possuir sexualmente) os seres celestiais que estavam hospedados na casa de Ló (Gn 19,5). Mas pode isso, Arnaldo? Bem, no capítulo 6 do Gênesis lemos que os “filhos de elohim” tomaram para si as “Filhas dos homens” (6,2). Voltemos a Judas.

3. Note o leitor que Judas põe lado a lado o crime cometido pelos “anjos que abandonaram a sua morada” (v. 6) e o crime cometido pelos habitantes de Sodoma (v. 7). Quer saber a razão? Porque ambos cometeram o mesmo delito: buscaram se relacionar sexualmente com seres de natureza diferente. O crime cometido pelos anjos foi tão grave que acabaram “presos em cadeias eternas”. É o que o texto diz.

4. O crime de Sodoma reaparece ao lado do crime dos “anjos que pecaram” em 2Pe 2,4. De novo, Arnaldo? Sim, de novo! Sodoma e Gomorra pagam por seu pecado sendo “reduzidas a cinzas” (2,6). Os anjos que pecaram são lançados nos “abismos tenebrosos do Tártaro” (2,4). Eita! Isso não é pouca coisa não. O Tártaro é uma espécie de inferno dos infernos (ou melhor, o Hades do Hades).

5. E para concluir. Você vai encontrar condenações às relações homoafetivas aqui e ali nas Escrituras (são pouquíssimas, na verdade), mas a causa da destruição de Sodoma e Gomorra, no capítulo dezenove do Gênesis, nada tem a ver com relações homoafetivas. Enganaram você.


Jones F. Mendonça

domingo, 4 de agosto de 2024

SOBRE O MAL METAFÍSICO-ONTOLÓGICO NA BÍBLIA HEBRAICA

1. Inexiste na Bíblia Hebraica uma palavra capaz de exprimir a ideia de algum tipo de mal metafísico-ontológico. Uma das palavras hebraicas comumente traduzidas por “mal” é רע (ra’), que significa simplesmente “ruim” (como oposição àquilo que é considerado bom, agradável, belo ou aprazível).

2. As vacas “magras e feias” (Gn 41,3) que aparecem no sonho de José, por exemplo, são na verdade “magras e ruins (רע)”, em oposição às vacas “gordas e formosas” (41,2). “Ruins”, neste caso específico, indica uma “aparência ruim”, ou seja, “feia”. Is 45,7 apresenta Yahweh como uma divindade que faz a shalom (bem estar pleno) e cria o “mal” (רע). Mas essa tradução não é boa.

3. Veja que o termo hebraico רע (ra’), neste caso, atua em oposição à shalom, ao estado de pleno bem estar. O que o texto quer dizer é: Yahweh é plenamente soberano, ele produz tanto aquilo que nos parece bom, prazeroso e belo (como a videira que brota da terra), como aquilo que nos parece ruim, doloroso e feio (como a criança dilacerada pela guerra).

4. Não é “bem” e “mal”, mas “bom” e “ruim”. Percepções mais complexas e desenvolvidas a respeito da existência de um “bem” ou de um “mal” intrínseco aos seres só é perceptível na tradição literária dos hebreus a partir do seu contato com a cultura grega. A árvore do conhecimento do “bem” e do “mal” é, na verdade, árvore do conhecimento do “certo” e do “errado”.

5. Mas qual seria o parâmetro para esse “certo” e esse “errado”? Ora, a Lei, a Torah. “Certo” é aquilo que a Torah estabelece como “certo”. “Errado” é aquilo que a Torah estabelece como “errado”. Alguém poderia perguntar: “mas Jones, não existia Torah no Éden!”. Ora, não existia para os personagens da narrativa, mas existia para quem redigiu a narrativa. E isso faz toda a diferença.



Jones F. Mendonça