sábado, 24 de dezembro de 2022

SALOMÃO DE BOCHECHA ROSADA

1. Assim como os pintores renascentistas retratavam os personagens bíblicos como europeus (fisionomia, vestes, arquitetura, etc.), os tradutores europeus certamente também foram influenciados por sua própria cultura enquanto traduziam a Bíblia. Dou um exemplo.

2. O Livro dos Cânticos, capítulo 5, verso 10, geralmente é traduzido desse modo: “Meu amado é branco e rosado”. Esta tradução sugere que o amado é branco com bochechas rosadas. Mas não é isso. Explico.

3. Uma tradução mais literal fica assim: “meu amado é ofuscante/ardente e vermelho”. A ideia talvez seja retratá-lo como Davi ou quem sabe destacar seu vigor, representá-lo como uma brasa avermelhada e ofuscante. Difícil saber com certeza.

4. A palavra traduzida por “branco” e que optei por traduzir por “ofuscante” é “tzah” (צח). Ela reaparece em Is 18,4 para qualificar o calor: “como um calor ardente  [tzah] em plena luz do dia” e em Is 32,4: “a língua dos gagos falará com desembaraço e com limpidez”.

5. “Tzah” sempre indica algo brilhante, ofuscante, claro, límpido, nunca a cor branca. Veja que até os cuchitas, que eram negros, são descritos como sendo “altos e polidos”. O termo que traduzi por “polido” aqui “morat” (מורט), um verbo.

6. Os tradutores divergem quanto à tradução de “morat”. A NVI entende que os cuchitas são “um povo alto e de pele macia”. A BJ que são “gente de alta estatura e de pele bronzeada”. Eita! Quem tem razão? Nem a NVI nem a BJ.

7. O verbo é empregado para indicar o “bronze polido” ou a “espada polida” (cf. 1Rs 7,45; Ez 21,10-11). Tudo isso sugere que quando alguém era qualificado como “reluzente”, “polido”, “brilhante”, “límpido” ou “ofuscante”, a ideia era indicar sua força, seu vigor.

8. Assim, tanto o amado do Livro dos Cânticos, como os poderosos guerreiros cuchitas mencionados no livro do profeta Isaías, eram tratados como pessoas “ofuscantes”, ou seja, “vigorosos”.




Jones F. Mendonça

LAMEC, JÓ E SUA MULHERES EM MANUSCRITO MEDIEVAL


1. Na folha 23r do manuscrito medieval Speculum humanae salvationis (séc. XV) duas imagens chamam a atenção. À esquerda aparece Lamec sendo importunado por suas esposas Adah e Tzelah. À direita você vê , sendo castigado por sua mulher e por Satanás. Comparações entre cenas tomadas de textos diferentes são muito comuns nesses manuscritos.

2. Ocorre que Gn 4,17-25 nada diz sobre o comportamento das esposas de Lamec. Por que aqui estão sendo retratadas como megeras? No caso do livro de Jó, os homens que se opõem a ele (Elifaz, Beldad, Sofar e Eliú) dizem coisas muitíssimo mais tolas a seu respeito que sua esposa. Por que sua ela aparece aqui como algoz, ao lado de Satanás?

3. Simples: porque espezinhar mulheres era um exercício que dava muito gosto a boa parte dos homens religiosos na era medieval.

Dê uma boa olhada no manuscrito aqui:



Jones F. Mendonça

terça-feira, 29 de novembro de 2022

A LUTA DE JACÓ E A "JUNTA DA COXA"

1. Em Gn 32,24 lemos a seguinte narrativa a respeito de Jacó: “E foi deixado Jacó sozinho, e empoeirou-se um homem com ele até a subida da alvorada”. Uma vez que o contexto sugere ter havido algum tipo de embate entre Jacó e este homem desconhecido, a decisão de traduzir o verbo “empoeirar” (אבק) por “lutar” me parece bem razoável (é como entendeu o texto grego da LXX).

2. É possível que o uso de “empoeirar” – um verbo que só aparece aqui – tenha como finalidade indicar a poeira que sobe do chão quando dois indivíduos lutam freneticamente agarrados um ao outro. No Rio de Janeiro, quando dois ou mais indivíduos brigam ferozmente, costumamos dizer que “o couro comeu” (talvez seja uma referência ao cinto de couro usado para disciplinar os filhos).

3. Traduzir expressões idiomáticas e até mesmo algumas formas verbais oriundas de um idioma antigo é uma tarefa difícil, porque em boa parte das vezes nem o falante tem condições de explicar com clareza sua origem. Sem a contribuição do falante original, as palavras ganham asas, tornam-se lisas como limo em calçada velha. No verso seguinte a dificuldade da tradução é outra. Veja:
“E vendo [o homem desconhecido] que não prevalecia sobre ele [Jacó], tocou A PALMA DO QUADRIL DELE [o que é isso?] e arrancou (ou “deslocou?) a palma do quadril enquanto Jacó SE EMPOEIRAVA com ele”.
4. Meus queridos, o que raios é essa “palma do quadril” (כף־ירך)? O primeiro termo é geralmente usado para indicar a palma das mãos e a sola do pé. O segundo para designar a região que vai da cintura à coxa (e inclui os testículos), daí “palma do quadril”. De modo geral os tradutores optam por “junta da coxa”. Mas será que é isso mesmo?

5. Outra questão: depois que foi “tocada” pelo homem desconhecido, a “palma do quadril” de Jacó foi “deslocada” – como prefere a maioria dos tradutores – ou foi “removida”? O verbo empregado aqui (יקע) possui campo semântico amplo. 

6. Não é fácil a vida do tradutor.




Jones F. Mendonça

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

MOISÉS E SALOMÃO: NÃO POSSO/NÃO SEI “SAIR OU ENTRAR”

1. Em Deuteronômio 31,2 o Moisés já velho e cansado diz assim: “Tenho hoje cento e vinte anos. Não posso mais sair ou entrar”. Como assim não pode sair ou entrar? Será que Moisés já não andava mais?

2. Certamente não é isso. Veja que uma declaração muito parecida surge na boca do jovem Salomão, em 1Rs 3,7: “sou um pequeno jovem. Não sei sair ou entrar”. Como se pode ver, a expressão não indica incapacidade física.

3. Por alguma razão, uma pessoa muito jovem ou muito velha sabia que em tais condições não tinha capacidade para “sair ou entrar”. Mas o que significa isso? Creio que Nm 27,16 pode iluminar essa questão:
Que Iahweh, Deus que dá fôlego a toda a carne, estabeleça sobre esta comunidade um homem que saia diante da face dela e que a faça sair e entrar, para que a comunidade de Iahweh não seja como um rebanho sem pastor.
3. Note que “fazer sair e entrar” indica neste texto alguém que seja capaz de liderar a comunidade, de modo que a faça “sair” e “entrar”, ou seja, que seja capaz de dirigi-la, guiá-la, orientá-la como um pastor que conduz suas ovelhas.

4. O hebraico – vivo dizendo – é um idioma muito visual.



Jones F. Mendonça

sábado, 15 de outubro de 2022

O CRISTO MORTO NO CÂNON ETÍOPE



1. Embora a palavra “Bíblia” seja geralmente usada para indicar um conjunto específico de livros considerados sagrados, há na verdade várias “Bíblias” (ou melhor, cânones bíblicos). A Bíblia judaica (ou Bíblia Hebraica) contém apenas 36 livros (equivalem aos 39 do AT protestante); A Bíblia católica possui 73; A Bíblia protestante 66; e a Bíblia etíope 83.

2. O cânon etíope, mas extenso, inclui o Livro dos Jubileus, o Livro de Enoc e o Salmo 151, dentre outros. Caso tenha curiosidade em relação a esta Bíblia, você pode dar boa olhada no manuscrito e em suas magníficas gravuras acessando o site da British Library.

3. Repare nesta ilustração da página 25 (parte superior). Ela exibe um tema recorrente na arte medieval e renascentista: a lamentação sobre o Cristo morto. O modo de representar o corpo de Cristo, com mulheres chorando aos seus pés e sobre sua cabeça aparece em outras telas famosas. Sandro Botticelli, por exemplo, retratou o Cristo morto utilizando um esquema muito parecido.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

CARAVAGGIO E AS TRÊS MARIAS


Muita coisa pode ser dita sobre esta tela de Caravaggio (A deposição de Cristo, 1602-3), como a disposição dos personagens em leque. Mas quero me concentrar na parte superior, onde são retratadas as três Marias: Maria mãe e de Jesus, Maria Madalena e Maria de Clopas (Jo 19,25). A primeira olha para o corpo sem vida; a segunda para dentro de si mesma; a terceira para os céus. Note ainda que as mãos das três funcionam como extensão olhos.



Jones F. Mendonça

ÁGAPE E FILEO NO EVANGELHO DE JOÃO

1. Não poucos manuais de teologia e comentários bíblicos sugerem que o grego do Novo Testamento distingue dois tipos de amores: fileo e ágape. Fileo serviria para indicar o amor entre amigos ou entre irmãos; ágape para sinalizar expressões de amor incondicional, como o amor divino. Mas será que essa hipótese se sustenta?

2. Com a ajuda de um software simples e gratuito como a e-Sword é possível rastrear todas as ocorrências desses dois verbos nos Evangelhos. Em Jo 16,27, por exemplo, lemos assim: “o próprio Pai vos AMA, porque me AMASTES e crestes que vim de Deus”. A palavra grega traduzida por AMA e AMASTES é fileo, não ágape.

3. Repare que neste caso, tanto o amor divino dirigido aos humanos como o amor dos humanos dirigidos a Jesus são indicados pelo verbo fileo. Na verdade, agape e fileo eram usados de forma intercambiável e podiam significar a mesmíssima coisa: AMOR (entre Deus e humanos, entre humanos e Deus, entre humanos e humanos).


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

O GÊNESIS E O TELEFONE DA CRIAÇÃO



1. A origem do nome do serviço de combate ao crime chamado “Disque denúncia” precisa ser situada no tempo em que os aparelhos telefônicos faziam ligação por meio de um disco numérico giratório. Foi graças a um modelo de telefone específico que “discar” passou a ser usado como sinônimo de “fazer uma ligação telefônica”. Com o tempo é provável que pouca gente se dê conta de como foi estabelecida a relação entre “discar” e “telefonar”.

2. Recorrendo ao processo descrito acima é possível descobrir a origem de alguns verbos hebraicos. Um exemplo é o verbo bara’ (ברא), geralmente traduzido por “criar”. Em alguns casos bara’ indica a ação de cortar árvores (cf. Js 15,17-18), ou de golpear com uma espada (cf. Ez 23,47). Mas que tipo de relação haveria entre “criar” e “golpear” (com espada, com machado)? A resposta pode ser encontrada na atividade de um artesão escultor.

3. Note que a atividade do escultor envolve a ação de cortar/desbastar/esculpir entalhes, dando forma ao objeto que se deseja CRIAR. Com o tempo, “cortar/desbastar” passou a ser usado como “criar”, na medida em que o processo de criação envolve o corte/desbaste do material utilizado como matéria prima. O hebraico é um idioma muito visual, característica que proporciona muita beleza ao texto, sobretudo à poesia.

4. Vale dizer que bara’ nunca indica “criar do nada”, como sugerem alguns dicionários. Esta é uma dedução que aparece relacionada à teologia, não à semântica.


Jones F. Mendonça

A GRÁVIDA E O FETO NA BÍBLIA HEBRAICA

1. Quando traduzido literalmente, Eclesiastes 11,15 fica desse jeito: “Assim como não conheces o caminho do vento ou dos OSSOS (עצם) no ventre da CHEIA (מלא), também não conheces a obra de Deus”. Ficou confusa a tradução?

2. Tendo em mente que os “ossos” são uma referência aos ossos do “embrião” e o “cheia” faz um apelo visual à aparência da “grávida”, tudo se esclarece. Assim, temos: “...ou do EMBRIÃO no ventre da GRÁVIDA”.

3. A palavra “embrião” (גלם) reaparece em algumas Bíblias em português no Sl 139,16. Veja:
Teus olhos viam o meu EMBRIÃO. No teu livro estão todos inscritos os dias que foram fixados e cada um deles nele figura (Sl 139,16).
4. Neste caso, a palavra hebraica traduzida por embrião é outra, “golem”, termo de tradução difícil, porque só aparece uma única vez na Bíblia Hebraica (trata-se de um hápax legomenon).

5. “Golem” vem da raiz verbal “galam”, cujo sentido é “dobrar”, “enrolar”. O feto aqui é chamado de “enrolado/enrugado”. Mais uma vez o apelo é visual, talvez obtido pela observação de fetos abortados ou removidos do ventre materno pela violência (Cf. 2Rs 8,12).



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

O SOGRO, O GENRO E O "ÚTERO" NA BÍBLIA HEBRAICA

1. Em nosso idioma usamos “sogro” para designar o pai da mulher com quem o “noivo” se casou (ele é "genro"). No hebraico bíblico – por mais estranho que possa parecer – um só substantivo servia para indicar “sogro” e “noivo”: חתן (hatan). Como explicar isso? Em minha opinião o termo tinha essa dupla função porque era usado para indicar qualquer uma das partes envolvidas no acordo de casamento: o pai da noiva e o noivo. Como cheguei a essa conclusão?

2. Bem, além do substantivo hatan, o hebraico possui um verbo de mesma raiz, hatan, cuja finalidade é indicar a relação entre genro e noivo. Veja: “Hatan (Aliai-vos) a nós: vós nos dareis vossas filhas e tomareis as nossas para vós” (Gn 34,9). Aqui tudo se esclarece: o verbo indica a aliança de casamento entre as famílias; o substantivo as partes que selam o acordo (sogro e noivo). A noiva, coitada, era tratada apenas como mercadoria, como útero (cf. Jz 5,30).



Jones F. Mendonça

SOBRE COCHONILHAS, VERMES E CORANTES


1. Na Bíblia a palavra hebraica תולע (tola') é traduzida ora por “verme” (cf. Ex 16,20; Is 41,14) ora por “carmesim/escarlate” (vermelho vivo, cf. Lm 4,5). Com explicar isso?

2. Bem, é que o vermelho utilizado para tingir roupas vinha da cochonilha-do-carmim, um pequeno inseto que se alimenta parasitando cactos.

3. Assim, תולע (tola') designa tanto uma cor como um “bichinho”. É como fazemos hoje com o “laranja”, simultaneamente nome de cor e de fruta.

4. No livro das Lamentações (4,5) fica muito claro que o termo deve ser traduzido por cor, não por "bichinho". Veja:
"os que se criaram no תולע (ou seja, no "vermelho", cor da nobreza), agora apertam-se no lixo".


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

DAS TRADUÇÕES

1. No hebraico bíblico – escrito apenas com consoantes – a partícula את pode ser lida como “at” (pronome pessoal “tu”, no feminino, mas também excepcionalmente no masculino), “et” (preposição “como”) ou simplesmente como indicativo do objeto direto (sem tradução). Você pode estar se perguntando: “como os judeus conseguiam ler e interpretar corretamente os versos sagrados?”. Bem, a vocalização do texto, e, portanto, também sua tradução, foi preservada pela tradição, até que surgiram os massoretas.

2. Os massorestas eram escribas judeus cuja vida era dedicada à preservação das Escrituras. No século VII d.C. estes estudiosos inseriram sinais vocálicos ao lado e acima das consoantes (uma série de pontos e traços) com a finalidade de preservar a pronúncia correta do texto, de forma que ela não se perdesse. Ocorre que quando comparamos as traduções do texto hebraico feitas para outros idiomas (como o grego e o siríaco), notamos que nem sempre os tradutores judeus estavam de acordo em relação ao modo como o texto deveria ser lido e traduzido.

3. Essa característica do texto hebraico gerou tantos problemas que é até difícil de explicar. Quer saber o lado bom disso? Os tradutores têm um passatempo que nunca se esgota. E é de graça 😀


Jones F. Mendonça

terça-feira, 9 de agosto de 2022

JEREMIAS E O DEUS QUE CHORA

1. Por razões equivocadas e injustas o profeta Jeremias ficou conhecido como “profeta chorão”. Há duas razões principais para a origem deste rótulo: a versão grega das Lamentações (Septuaginta) atribui a autoria do livro a Jeremias, que é apresentado sentado e chorando enquanto compõe os belíssimos poemas estruturados em cinco partes. A segunda razão vem do livro das Crônicas, obra que apresenta Jeremias como autor de um lamento sobre a morte de Josias, rei que capitulou após ser atingido por arqueiros egípcios liderados pelo Faraó Neco (2Cr 35,25). É importante destacar que Davi também é apresentado como compositor de lamentos fúnebres (2Sm 1,17-27). Seja como for, o apelido de “profeta chorão” atribuído a Jeremias acabou consagrado pela tradição.

2. Mas um leitor atento perceberá que Jeremias praticamente não chora no livro que leva seu nome. Vale destacar ainda que Davi (5 vezes) e José (8 vezes) são muitas vezes apresentados chorando e nem por isso ficaram conhecidos respectivamente como “o rei chorão” e “o filho chorão de Jacó”. Na verdade, o livro do profeta Jeremias enfatiza muito mais o choro de Deus que o do profeta*. Um exemplo pode ser encontrado em Jr 31,20. Ao falar sobre Efraim (Israel), “seu filho querido”, Deus diz assim: “Por isso murmuram minhas entranhas por ele, afetadas por intenso amor”. Muitos textos sugerem que o choro era percebido como uma espécie de transbordamento das estranhas. Delas vinham as lágrimas, manifestação concreta do esgotamento e desfalecimento do corpo.

3. De modo geral a imagem de Deus chorando não agrada os teólogos mais ortodoxos (sobretudo calvinistas), que veem essa expressão de dor como fraqueza, como indicação de mudança de humor, de instabilidade. A aceitação do choro divino afetaria gravemente um dos principais "atributos naturais de Deus": a imutabilidade (ah, esse deus impassível dos filósofos...). Bem, Nietzsche dizia que só poderia acreditar em um Deus que soubesse dançar. Parafraseando o filósofo eu diria que só faz sentido acreditar em um Deus que é capaz de chorar.

*Aos interessados no choro de Deus no livro do profeta Jeremias, sugiro a leitura do artigo “The Tears of God in the Book of Jeremiah”, escrito por David A. Bosworth e publicado na Revista Biblica (Vol. 94, nº. 1 (2013), pp. 24-46).



Jones F. Mendonça

terça-feira, 2 de agosto de 2022

AS ENTRANHAS DO JUSTO SOFREDOR

1. Traduzido literalmente, o Sl 26,2 fica desse jeito: “examina-me, Senhor, coloca-me à prova, depura meu coração e meus rins”. A palavra hebraica traduzida por “depura” é tzaraf (צרף), utilizada para indicar a atividade do ourives na purificação de metais preciosos. Mas por que o salmista pede para que seu coração e seus rins sejam “depurados/purificados”?

2. No hebraico, os rins, o coração, o fígado, o ventre aparecem como metáforas para tudo aquilo que está oculto, como pensamentos, intenções, desejos, etc. Ao pedir para que seu “coração” e seus “rins” sejam depurados, o salmista está dizendo algo do tipo: “penetra nas minhas entranhas, no subsolo dos meus pensamentos”.

3. Como Jó, ele se declara inocente, distante do caminho dos perversos: “quanto a mim, eu ando na minha integridade” (v. 11). Assim, pede para que suas intenções sejam colocadas à prova e a justiça lhe seja feita: “faze-me justiça, ó Senhor...” (v. 1,1). O tema do servo que sofre sem razão aparente é algo recorrente na religiosidade do Antigo Israel. Surge nos Salmos, em , em Isaías, em Jeremias e na figura do Cristo que padece no Gólgota.



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 25 de julho de 2022

OHOLAH E OHOLIVAH: ORGIAS NA TENDA DE YAHWEH


1. No Antigo Testamento a cidade de Jerusalém aparece em diversos textos como esposa de Yahweh, Deus de Israel (sobretudo em Os e Jr). Este tipo de metáfora reproduz uma forma de personificação muito comum na região Antigo Oriente Próximo, que descrevia cidades femininas como consortes do deus local.

2. No livro do profeta Ezequiel (23,4) as cidades de Samaria e Jerusalém são chamadas, respectivamente, de Oholah ( = tenda dela) e Oholivah ( = minha tenda [está] nela). O leitor talvez esteja se perguntando: que tenda é esta? A resposta é simples: no caso de Oholivah, a “tenda” é o templo de Jerusalém.

3. Os eufemismos sexuais que se sequem são pra lá de escandalosos. Ora, o texto sugere que o Templo de Jerusalém, a “tenda” de Yahweh “que está nela”, foi usada pela cidade como espaço para suas fornicações, “inflamando-se com seus amantes”, cuja “carne” (ou seja, órgãos sexuais), são como de jumentos e cavalos (v. 20).

4. O eufemismo funciona bem porque a palavra hebraica אהל (’ohel) serve para indicar tanto a tenda usada como espaço privado para as relações sexuais (Cf. 2Sm 16,22) como o espaço de culto (o templo). Hoje, como no Antigo Israel, há líderes religiosos que estão usando templos como espaço para suas “fornicações” políticas.

5. Fazem isso sem qualquer tipo de constrangimento. Pelo contrário: filmam suas orgias político-sexuais e publicam em suas redes sociais. E há teólogos – de renome, inclusive (e reformados, inclusive!) – tratando essas relações carnais como suprassumo da santidade.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 22 de julho de 2022

A IGREJA PRESBITERIANA, A MAÇONARIA E A POLÍTICA

1. Muitos dos protestantes que chegaram ao Brasil em meados do século XIX eram membros da maçonaria, instituição que apoiava a evangelização e formava com os protestantes uma relação que envolvia cooperação mútua. Missionários protestantes como John Boyle (presbiteriano) e Salomão Ginsburg (batista) foram frequentemente protegidos por maçons em suas andanças pelo Brasil dos séculos XIX e XX. Reflexos dessa aliança aparecem frequentemente em jornais protestantes.

2. Em 03/03/1900, por exemplo, uma nota publicada no periódico presbiteriano “O Puritano” lamenta que o jornal católico O Lábaro, classificado como “pasquim imundo”, desfira ataques “contra o protestantismo e contra a maçonaria”. Com o tempo, no entanto, as relações entre a maçonaria e a Igreja presbiteriana começaram a azedar e em 06/08/1903 um sínodo foi convocado para discutir o assunto.

3. Na decisão final, publicada no mesmo jornal presbiteriano em 20 de agosto de 1903, consta o seguinte: “O Synodo (sic) julga inconveniente legislar sobre o assunto. Considerando, porém, as contendas acerbas que se teem (sic) levantado sobre a questão, o Synodo (sic) recommenda (sic) aos crentes de uma e de outra parte que nutram sentimentos de caridade christã (sic) uns para com os outros...”.

4. Apesar do sínodo não ter apresentado uma decisão conclusiva sobre o assunto, uma minoria convencida da incompatibilidade entre a Maçonaria e o Evangelho solicitou aos ministros maçons que deixassem a ordem. O sínodo, por sua vez, julgou “prejudicial á (sic) causa do Evangelho qualquer propaganda pró ou contra a Maçonaria no seio da Egreja (sic)”. Na prática a Igreja Presbiteriana rachou por conta desta querela.

5. Na atual polarização política que assola o país, a Igreja Presbiteriana faria enorme bem se mantivesse a postura adotada em 1903, colocando-se neutra em questões político-ideológicas. Se a Igreja está sendo assolada, como querem nos fazer crer, por uma “nefasta influência do pensamento de esquerda”, por que finge não ver algumas feições fascistas do pensamento de direita que tem se desenvolvido no Brasil?

6. Estão coando mosquitos e engolindo camelos. Ou, quem sabe, coando camelos e mosquitos vermelhos e engolindo camelos e mosquitos azuis.


Jones F. Mendonça

 

sexta-feira, 15 de julho de 2022

EPIGRAFIA E APOLOGIA

1. Um exemplo de como é preciso ter cautela quando a imprensa anuncia uma grande descoberta arqueológica em Israel é a divulgação, no dia 07/07/22, da decifração de uma inscrição em uma tabuinha de pedra de 3500 anos contendo uma maldição dirigida ao governador de Jerusalém. De acordo com Gershon Galil, chefe do Instituto de Estudos Bíblicos e História Antiga da universidade de Haifa, é possível ler o seguinte: “Governador da Cidade, você certamente morrerá; amaldiçoado, você certamente morrerá...”.

2. Mas para Christopher Rollston, experiente estudioso da epigrafia semítica produzida na região, sequer é possível saber se de fato os traços que marcam a pedra correspondem a uma inscrição ou são meros motivos decorativos. Ele explica que mesmo que os traços sejam de fato consoantes, o trabalho de tradução seria difícil, porque a escrita alfabética antiga podia ser feita da esquerda para a direita (dextrógrada), da direita para a esquerda (sinistrógrada), colunar (direção vertical) ou bustrofédon (ziquezague).

3. Resumindo a ópera: Rollston acredita que a tal da “maldição contra o prefeito de Jerusalém” não passa de sensacionalismo barato.

Mais detalhes aqui e aqui:



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 6 de julho de 2022

DANIEL E APOCALIPSE EM CINCO PONTOS

1. O livro de Daniel, em seu capítulo 7, expõe ao leitor uma visão que descreve quatro bestas-feras subindo do mar (7,2). A primeira é um leão alado (v. 4), a segunda um urso (v. 5), a terceira um leopardo alado de quatro cabeças (v. 6) e a última um animal não identificado, dotado de dentes de ferro e dez chifres (v. 7). Essas quatro bestas representam reis/reinos (v. 17 e 23) que se sucedem e que serão derrotados não por uma fera selvagem, mas por alguém “semelhante ao filho do homem” (bar enash), cujo império será eterno.

2. Vale destacar que bar enash aqui não é título messiânico. A expressão é empregada para estabelecer contraste entre o aspecto animalesco dos quatro reinos e o quinto, que tem forma humana. O capítulo 2 apresenta uma mensagem semelhante. Mas desta vez os reinos malignos são representados por uma estátua erguida com materiais diferentes (ouro, prata, bronze, ferro e ferro misturado com argila), que são destronados não por alguém “semelhante ao filho do homem”, mas por uma pedra. “Pedra” e “filho do homem” representam, cada qual a seu modo, o estabelecimento do reino do ‘illay (עלי), o Altíssimo.

3. O Apocalipse retoma o uso de bestas-feras como representação de reinos malignos. Note, no entanto, que ela é uma fusão de três das feras mencionadas em Daniel: “A Besta que eu via parecia um leopardo: seus pés, contudo, eram como os de um urso e sua boca como a mandíbula de um leão” (13,2). A mensagem é clara: a besta que agora se manifesta é ainda mais terrível que aquela mencionada em Daniel. O Apocalipse relê e atualiza antigas tradições, algo bem costumeiro no ambiente religioso judaico.

4. Mas ao atualizar textos antigos, o autor do Apocalipse incorpora elementos novos. Veja que o Dragão, a besta-fera e o falso profeta desempenham o papel de uma espécie de “trindade maligna”. A besta até simula uma ressurreição (13,12). Outro recurso utilizado para imitar Deus é o estabelecimento de uma marca nos escolhidos, feita na mão direita ou na fronte (13,16). Em Dt 11,18 os israelitas são convidados a atar a palavra divina como um sinal na mão e na testa. Em Ez 9,4 os moradores de Jerusalém que têm um sinal (tav) na testa são poupados da lâmina afiada do exterminador.

5. Alguém inventou que o tal do “sinal” é um microchip, ou quem sabe um cartão de crédito ou uma tecnologia que está para surgir. Mas o Apocalipse está apenas fazendo alusões às Antigas Escrituras. O que ele quer dizer é: O Dragão, a besta-fera e o falso profeta querem imitar Deus. Simulam uma “trindade”. Irão, como Deus, “marcar” seus escolhidos. A mensagem implícita é a mesma de Mt 24,24: os falsos cristos e falsos profetas são dissimulados a ponto de quase enganarem até mesmo os escolhidos.



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 4 de julho de 2022

HEBRAICO E MATERIALISMO DIALÉTICO

1. Os idiomas nascem e se desenvolvem em relação direta com o mundo material no qual estão inseridos seus falantes. Um exemplo. A palavra hebraica gazar (גזר), cujo significado primário é “cortar”, ganha diferentes sentidos entre os hebreus, considerando que a vida geralmente era ceifada pela navalha (sacrifícios/batalhas).

2. Em 2Rs 6,4 um grupo de discípulos de Eliseu corta (gazar) madeira com a finalidade de construir uma moradia. “Cortar”, neste caso, indica exatamente isso: dividir a madeira com uma lâmina afiada. Mas o verbo “gazar” pode ganhar sentidos diferentes, dependendo do contexto.

3. Em Lm 3,54, após ser lançado em um fosso, o poeta diz: “Escorrem as águas sobre minha cabeça. Eu disse: estou cortado”. A Almeida Revista e Corrigida (ARC) traduz exatamente assim: “estou cortado”. O tradutor atento entende que ele quer dizer “estou morto”, ou, como preferimos: “estou perdido”.

4. Eis a primeira lição: nem sempre a tradução mais literal é a melhor. A segunda devo a Peter Berger: "O homem inventa um idioma e descobre que a sua fala e o seu pensamento são dominados pelas regras gramaticais que ele próprio criou" ("O Dossel sagrado", 1985, p. 22).



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 30 de junho de 2022

ASHERAH, A SABEDORIA DIVINA E A CIDADE DE JERUSALÉM

1. Achados arqueológicos como a Incrição de Khirbet el Qom e de Kuntillet Ajrud sugerem que Yahweh era adorado ao lado de sua consorte, Asherah, também conhecida como Rainha do Céu. A Bíblia também preserva certos vestígios do culto a Asherah: “[Manassés] colocou a escultura de Asherah, que mandara fazer, no Templo, do qual Iahweh dissera a Davi e a seu filho Salomão” (2Rs 21,7. Veja também Jr 44).

2. A crença de que Yahweh possuía um cônjuge teria sido abolida por ocasião da reforma do rei Josias, no século VII. Mas a tentativa literária e religiosa de obliterar a deusa não foi bem sucedida na medida em que a sombra de Asherah ainda se projeta na forma de vários disfarces literários (inclusive pela mão de alguns tradutores, que substituem a palavra hebraica “Asherah” por “poste ídolo”).

3. Um desses disfarces seria a hokhmah (חכמה), palavra feminina empregada para personificar a sabedoria divina no livro de Provérbios (cap. 8). Há quem suponha, como Dvorah Lederman Daniely, que a fonte da metáfora conjugal entre Yahweh e sua noiva ou esposa, alternadamente chamada de Jerusalém, Sião ou Filha de Sião, vem das relações conjugais entre Yahweh e Asherah. Ele sugere que a cidade aparece como representação codificada da Deusa.

Leia mais aqui.



Jones F. Mendonça

EZEQUIAS, CUCHITAS, ASSÍRIOS E O PROFETA NU



1. No século VIII a.C., enquanto no Antigo Israel atuavam profetas como Amós, Oseias e Isaías, o Egito era governado pelos cuchitas, guerreiros negros que viviam mais ao sul do Nilo. Na Bíblia, os cuchitas aparecem envolvidos na luta do rei Ezequias pela sobrevivência, no período em que viveu sob a ameaça assíria (2Rs 19).

2. Ao ouvir que os cuchitas vinham ao seu encontro para combatê-lo, o poderoso rei assírio recuou, “pois tinha recebido esta notícia a respeito de Taraca, o rei de Cuch: ‘ele partiu para te fazer guerra’” (2Rs 19,9). Nesta pintura, cuja autoria eu desconheço, você vê o confronto entre um soldado cuchita e um soldado assírio.

3. Irritado com a confiança de Ezequias na ajuda cuchita, o profeta Isaías anda nu e descalço, indicando que assim seus aliados seriam levados como prisioneiros: "dessa mesma maneira [nus e descalços] o rei da Assíria levará os cativos do Egito e os exilados de Cuch" (2Rs 2,4). A queda do Egito realmente aconteceu e é mencionada pelo profeta Naum (3,8-10).


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 24 de junho de 2022

JUDAS E ABSALÃO

1. De acordo como 2Sm 18,9-15, Absalão foi capturado por Joab – comandante do exército de Davi – após ter seus cabelos enroscados em um carvalho. Com “sangue nos olhos”, Joab atirou três dardos no coração de Absalão, que morreu após ser golpeado por dez escudeiros que também o perseguiam.

2. A tradição cristã medieval viu em Absalão uma representação antecipada de Judas: Absalão trai Davi; Judas trai Jesus. Além disso, Absalão, o “traidor”, morre “pendurado”, como Judas (Mt 27,5). Aquitofel, aliado de Absalão, se enforca (2Sm 17,23). De fato, há muitos elementos comuns entre as duas narrativas, mas as semelhanças não param por aí.

3. Após ser traído por Absalão, Davi atravessou o Vale de Cedron e subiu o monte das Oliveiras aos prantos (2Sm 15). Jesus, também após ser traído (por Judas), atravessou o Vale de Cedron e entrou em um jardim no mesmo monte (Jo 18,1-2). A grande diferença entre as duas narrativas é que Davi não é alcançado pelas tropas de Absalão. Jesus, como sabemos, é capturado e morto (mas seu reinado é “para sempre”).

4. Tanto os rabinos como os teólogos cristãos medievais já percebiam que alguns personagens bíblicos parecem desempenhar na narrativa o mesmo papel que um personagem mais antigo. Com um pouco de paciência e atenção, você vai encontrar muitos paralelos entre Jesus e figuras como Moisés, Elias, Samuel, Sansão, etc.


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 22 de junho de 2022

BREVÍSSIMA HISTÓRIA DE SATANÁS

1. A palavra hebraica “satan” (שטן) significa “adversário”. Este adversário pode ser humano, como Hadad, rei edomita que se coloca como “satan” (adversário) de Salomão (1Rs 11,14). Por vezes este “adversário” aparece na corte celeste, representado por um dos bney haelohim (filhos de elohim), exercendo a função de advogado de acusação (cf. Jó 1,6). Ele não é adversário de Yahweh, mas das criaturas humanas. Sua função é colocá-las à prova.

2. Apenas em Crônicas “Satan” (agora corretamente traduzido com “s” maiúsculo, cf. 1Cr 21,1) indica o adversário de Yahweh. O termo aparece sem artigo e claramente revela que a teologia judaíta sofreu uma “evolução”, passando a tratar o antigo membro da corte celeste encarregado de apontar as faltas humanas como opositor do próprio Yahweh. Aqui é possível notar a influência do dualismo persa.

3. Antes de ser incorporada essa “novidade”, a ideia que se tinha de Yahweh era bem diferente: era ele quem fazia tanto o bem quanto o mal (cf. Is 45,7; Lm 3,38). Repare que em 2 Sm 24,1 é o próprio Yahweh quem incita Davi a realizar o recenseamento (veja também 1Rs 22,20-23). Mas em Crônicas, texto tardio já influenciado pelo dualismo persa, uma nova interpretação do episódio é apresentada: não foi Yahweh, mas Satan quem incitou Davi a cometer este tropeço (2Cr 21,1).

4. No Novo Testamento a crença na existência de Satanás como opositor de Yahweh aparece com força. A novidade é que agora ele tem ao seu lado um exército de anjos rebeldes, os “caídos” (נפיל), também chamados de “Vigilantes” no livro de Enoque. Reflexos dessa crença aparecem no livro de Judas (v.6), de Pedro (2Pe 2,4) e no Apocalipse (12,4).



Jones F. Mendonça

 

terça-feira, 14 de junho de 2022

JUNG, JÓ E O APOCALIPSE DE JOÃO

1. Tenho na minha estante um livreto escrito por Carl Jung – famoso discípulo de Freud – sobre o livro bíblico de Jó. Ganhei de presente de uma pessoa desconhecida (um tipo de experiência que Jung adorava). O trabalho recebeu o título de “Resposta a Jó” e foi publicado no Brasil pela Editora Vozes. Já nas primeiras páginas Jung explica que não pretende fazer uma exegese fria e pormenorizada do livro de Jó, mas expressar “uma reação subjetiva” ao conteúdo da obra.

2. Embora considere útil a leitura de “Resposta a Jó” para quem lida com a Bíblia de maneira acadêmica, acho que em alguns momentos Jung faz interpretações muito equivocadas. Expus uma crítica ao livro a um grupo de junguianos e recebi um tratamento bastante hostil. Há fanáticos em todo o canto. Bem, mas com um pouco de paciência em meio a tantas divagações, cheguei ao capítulo XIII, parte do livro que trata sobre a representação da “imagem de Deus” no Apocalipse.

3. Esta parte da obra é por demais interessante. Isso porque Jung domina muito bem o contexto religioso do período no qual foi escrito o Apocalipse e também porque é um leitor atento, perspicaz. Ele chama a atenção, por exemplo, para a releitura que o Apocalipse faz do trono divino descrito em Ezequiel, que agora aparece adornado apenas com “matérias que pertencem à natureza inorgânica”. O trono é assustador como em Ezequiel, mas muito mais estranho e frio. Por que?

4. Jung também dá destaque ao contraste tão presente no livro entre o “Cristo manso cordeiro que se deixa levar ao matadouro” e o “Cristo belicoso e iracundo”, “Filho da vingança”, “cujo furor pode agora desencadear-se livremente”. Ele recorre a conceitos como o da “sombra”, do “arquétipo” e do “numinoso” para expor ao leitor uma interpretação psicológica do autor do Apocalipse. Antecipo que não faz um julgamento bom. Fala, por exemplo, em "sentimentos negativos longamente represados, que observamos com frequência naqueles que anseiam por ser perfeitos".


Jones F. Mendonça

sábado, 11 de junho de 2022

JEREMIAS E A "MOSCA" QUE VEIO DO NORTE

1. Jeremias, como Isaías, também acreditava que a confiança que os judaítas depositavam no Egito era inútil (veja Jr 2,18; 42,18). Diferentemente de Isaías, que anuncia sua mensagem encenando um grupo de prisioneiros egípcios sendo levados ao cativeiro caminhando descalços e com as nádegas de fora (20,2.4), Jeremias faz isso usando palavras.

2. Mas são palavras com grande força visual. Em Jr 46,20 o Egito aparece representado sob a forma de uma gazela sobre a qual "pousa" um queretz (קרץ). Veja:

O Egito era uma gazela toda bela,
mas um queretz do Norte [Babilônia] veio e pousou sobre ela [lit. “veio para dentro”].

3. De modo geral as Bíblias traduzem “queretz” por “moscardo”, “mutuca”, “tavão” ou “mosca varejeira”. É difícil saber exatamente que tipo de animal é este porque o termo “queretz” possui uma única ocorrência em toda a Bíblia hebraica. Mas uma vez que “queretz” deriva do verbo “qaratz” ( = apertar, morder), podemos supor com boa dose de certeza que indica uma picada.

4. Considerando que o bicho que “vai para dentro” da gazela (o Egito) representa o poder destruidor de Nabucodonozor, rei da Babilônia (cf. v. 26), talvez indique mesmo uma mosca capaz de causar infecções graves em um animal ou, quem sabe, uma vespa ou espécie de marimbondo. Seja “mosca”, seja “marimbondo”, a força visual da mensagem pouco se altera. Em termos modernos seria como dizer:

A Europa era uma gazela toda bela,
Mas uma “mosca” do Norte [a Rússia] veio até ela.



Jones F. Mendonça

sábado, 4 de junho de 2022

TROCADILHOS E CONTOS ETIOLÓGICOS NA BÍBLIA HEBRAICA

1. A Bíblia Hebraica está repleta de trocadilhos que se tornam invisíveis quando traduzidos para outro idioma. Um exemplo pode ser visto em 2Sm 5,20:
“Então Davi se dirigiu a Baal-Paratzim, e lá os venceu, e disse: ‘rompeu [paratz] Iahweh meus inimigos diante das minhas faces como o rompimento [peretz] das águas’. É por isso que o nome desse lugar é Baal-Paratzim”.
2. Em primeiro lugar é preciso dizer que “baal” (בעל) não é o nome de uma divindade, mas um título que significa “senhor”, “dono”, “proprietário” ou até “marido”. Assim, “baal-paratzim” significa “Senhor de paratzim”.

3. Este é o único caso na Bíblia em que “baal” é utilizado como epíteto divino atribuído a Yahweh. Mas voltemos ao trocadilho. O nome do lugar é explicado do seguinte modo: ele se chama BAAL-PARATZIM porque ali o Senhor PARATZ (rompeu) meus inimigos.

4. O que temos aqui é um conto etiológico etimológico-geográfico. Em casos como este o conto tem a finalidade de explicar o nome de um espaço geográfico, como um monte, formação rochosa, vale, etc.



Jones F. Mendonça

 

terça-feira, 24 de maio de 2022

SOBRE A "ETERNIDADE" EM ECLESIASTES

1. Caso seja aprovado o projeto de lei que proíbe qualquer “alteração, edição, supressão, adição ou adaptação da Bíblia cristã”, teríamos diversas dificuldades. Um exemplo.

2. Na versão NVI, o livro do Eclesiastes diz que Deus “pôs no coração do homem o anseio pela eternidade” (3,11). A Bíblia de Jerusalém (BJ) suprime a palavra “anseio” e propõe uma tradução bem diferente para a palavra hebraica עולם, traduzida por “eternidade”.

3. Nesta versão, aquilo que Deus coloca no coração do homem não é o “anseio pela eternidade”, mas a “o conjunto de tempo”, ou seja, a noção de temporalidade, a percepção de que a existência humana na terra é como fagulha, como névoa diante de Deus.

4. A parte “b” do verso explica que essa noção faz o ser humano perceber a grandiosidade da criação, ou seja, que é incapaz de compreender “aquilo que Deus realiza desde o princípio até o fim”.

5. Em minha opinião, a tradução da BJ está correta (“conjunto de tempo”) e a da NVI está errada (“anseio pela eternidade”). Seja como for, não precisamos de uma lei destinada a regular as traduções da Bíblia. Isso é coisa de gente tonta e fundamentalista.


Jones F. Mendonça

 

terça-feira, 17 de maio de 2022

NOS APARTAMENTOS DE JAVÉ

O capítulo 23 do Segundo Livro dos Reis expõe algumas medidas tomadas pelo rei Josias com o intuito de promover uma reforma religiosa em Jerusalém. Em algumas versões – como a Almeida 1819 – o verso 7 diz que o rei mandou derrubar “as casas dos rapazes escandalosos que estavam na casa de Jehovah”. O leitor coça a cabeça e fica imaginando que tipo de rapazes seriam estes. Bem, de acordo com outros tradutores, a ação de Josias não foi dirigida à casa dos rapazes escandalosos, mas “aos apartamentos das prostitutas”. Eita! Mas será que as moças já tinham apartamentos naquela época? E foram erguidos "na casa de Jehovah"?😃


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 5 de maio de 2022

OS "SEIOS" NA BÍBLIA

1. Um dos meus passatempos prediletos é observar como as palavras hebraicas se comportam no texto bíblico. Hoje investiguei a palavra “hyq” (חיק), cujo significado primário é “peito”. Ela também pode ser traduzida por “colo”, sempre que tem o sentido de acolhimento e afeto. Em alguns casos expressa o sentido de “lugar oculto”. Vejamos:

2. A primeira vez que esta palavra aparece é em Gn 16,5, pronunciada pela boca de Sarai, que diz a Abraão: “coloquei minha serva no teu colo...”. No texto Sarai revela-se triste porque ao colocar sua serva Agar “no colo dele”, a moça engravidou. “Colo” aqui é eufemismo, claro.

3. Bem, a palavra “Hyq” como espaço do afeto reaparece no Deuteronômio. Ser a “mulher do peito” de um homem ou o “homem do peito” de uma mulher equivalia a dizer que ambos mantinham uma relação amorosa como fica claro em Dt 13,6 e Dt 28,54. Alguns tradutores fazem adequação e trocam o “do peito” por “do coração”.

4. Mas nem sempre “hyq” como lugar do afeto tem sentido sexual. Quando Rute teve um filho, Noemi o tomou “no peito dela” (ou colo) e passou a cuidar dele. Mas a coisa muda de figura em 1Rs 1,2. Davi, já idoso, recebe uma donzela chamada Abisag com a finalidade de que “durma no peito dele” e o aqueça ("aqueça" também é eufemismo).

5. Em Jó 19,27 “hyq” ganha um sentido diferente, servindo para indicar a parte interna do corpo: “consomem-se meus rins no meu peito”. “Hyq”, neste caso, indica um lugar secreto, escondido, oculto, como em Pv 17,23: “O perverso aceita o suborno no peito”, ou seja, secretamente. Também em nosso idioma usamos “seio” com este sentido, quando dizemos, por exemplo, que algo foi colocado “no seio” da terra.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 29 de abril de 2022

CÂNTICO DOS CÂNTICOS: ENTRE BEIJOS E SEIOS

1. O texto hebraico do Antigo Testamento não continha vogais, apenas consoantes. As vogais só foram inseridas no texto no século VII d.C. com a finalidade de ajudar na leitura. Essa característica permitiu que o texto fosse entendido de formas diferentes pelos leitores/tradutores. Um exemplo:
teus amores são melhores do que o vinho (Ct 1,2).
2. Acontece que “teus amores” (דדיך) em hebraico é graficamente igual a “teus seios” (דדיך, cf. Ez 23,21). Assim, o tradutor fica em dúvida se deve traduzir a parte b do v. 2 por “teus amores [dele] são melhores do que o vinho” ou “teus seios [dele] são melhores do que o vinho”.

3. De modo geral nossas Bíblias optam por “teus amores” (seguem o texto vocalizado do século VII d.C.). Mas os judeus responsáveis pela tradução do texto hebraico para o grego (Septuaginta) entenderam que a tradução correta é “teus seios” (μαστοι, "mastoi").

4. Eleazar de Worms, um rabino da era medieval, interpretou a palavra hebraica como "seios" e saiu-se com essa: "os 'seios' referem-se a Moisés e Arão que amamentaram o povo de Israel com a Torá". Sei...

5. Quer saber a minha opinião? O escritor fazia isso de propósito. O Cântico dos Cânticos adora duplos sentidos...




Jones F. Mendonça

segunda-feira, 25 de abril de 2022

"MACUMBA" E COMUNISMO

Leio jornais da década de 40 em busca de comentários depreciativos dirigidos às religiões de matriz africana. Em 6 de abril de 1941 um colunista do Jornal do Brasil publicou texto anunciando a prisão de um “macumbeiro” que supostamente estava fundando uma seita “espírito-nudista”. No final do texto o colunista faz uma denúncia curiosa: “os agentes de Moscou encontram nos centros do baixo espiritismo a possibilidade de difundir suas ideias, atribuindo a inspiração às ‘almas do outro mundo’”. E conclui: “nos ‘terreiros’ começa a dominar Stalin”. O título da matéria: “Macumba e Comunismo”😃



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 18 de abril de 2022

LUTERO E AS ÁGUAS NA ESTRUTURA COSMOGÔNICA DOS HEBREUS

1. Neste vídeo, publicado no canal “A Tenta do Necromante”, o professor Osvaldo Luiz Ribeiro fala sobre a semelhança entre as palavras hebraicas “mayim” (água/águas) e “shamaiym” (céu/céus). Ambas têm terminação plural dual, usada para indicar elementos que aparecem em pares, como mãos e orelhas. Mas por que "céus" e "águas" teriam terminação dual?

2. Na percepção do professor Osvaldo, a semelhança entre as palavras e seu caráter dual tem relação com o imaginário dos hebreus quanto à estrutura cosmogônica: as “águas de baixo” (mayim) e as “águas de cima” (shamayim). Os céus, nesse sentido, seriam percebidos como águas superiores. 

3. O professor Osvaldo chegou a essa conclusão por intuição, por seu contato com o hebraico e pela compreensão que tem em relação ao modo como os hebreus enxergavam o mundo. E eu acho que ele está certíssimo. Ele não diz no vídeo (e eu não sei se sabe disso), mas Lutero tinha uma opinião muito parecida, certamente pela influência de gramáticos/exegetas judeus medievais:
Os hebreus derivam muito apropriadamente o termo shamaim, o nome dos céus, da palavra maim, que significa “águas”. Pois a letra shin muitas vezes é empregada em palavras compostas para designar a relação [de uma coisa com a outra], de modo que shamaim é algo aquoso ou que provém da água. Isso também se evidencia pela sua cor; e a experiência ensina que o ar é úmido por natureza (Lutero, Preleções ao Gn 1,6).
4. Lutero diz muita bobagem em suas Preleções ao Gênesis. Mas aqui ele acerta. Caso queira ler algumas de suas bobagens, veja aqui, aqui e aqui.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 15 de abril de 2022

A PÁSCOA EM CINCO PONTOS

1. Há ao menos três hipóteses para a origem da palavra “Páscoa” (do hebraico “pessah”). A primeira sugere que deriva do verbo hebraico “passah” (פסח), que significa “saltar”. Isso porque Ex 12,13 diz que o Senhor “saltará” as portas sinalizadas com o sangue do cordeiro. Esta é a hipótese tradicional.

2. Mas há quem pense que o ritual de marcação dos umbrais das portas tenha uma origem mais antiga e que a palavra “pessah” deriva do acádio pašâhu (acalmar, apaziguar). O ritual (apotropaico), praticado por pastores nômades, visava apaziguar a ira do “Destruidor” (Ex 12,13).

3. Há ainda quem defenda que o termo “pessah” seja a transcrição de uma palavra egípcia que significa “golpe”, uma referência a décima praga: em Ex 11,1 é dito que o Senhor desferirá “ainda mais um golpe sobre Faraó”.

4. Coincidentemente o hebraico “pessah” se conecta foneticamente ao grego “pascho” (πασχω) que significa "sofrer" (cf. 1Pe 2,21), por isso os primeiros cristãos passaram a usar o termo “Páscoa” para se referir à sexta-feira da Paixão, e não ao domingo da ressurreição.

5. Fica a dica: religião é também ressignificação.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 8 de abril de 2022

AMÓS E OS "DIREITOS HUMANOS"

1. O livro do profeta Amós, atribuído a um sujeito que não era “nem profeta, nem filho de profeta”, expõe logo no início do livro que leva seu nome uma série de oráculos condenatórios contra oito nações vizinhas: Damasco, Gaza, Tiro, Amon, Moab, Edom, Judá e Israel. Com o perdão do anacronismo, poderíamos dizer que boa parte das denúncias presentes nos capítulos 1 e 2 aparecem relacionadas a “violações dos direitos humanos”.

2. Os arameus de Damasco são criticados por “devastarem a terra”; os filisteus de Gaza por “deportarem populações”; os fenícios de Tiro e o povo de Edom por “violarem pactos” entre irmãos. Os amonitas são duramente censurados por terem ferido grávidas com a morte; os moabitas por profanarem cadáveres e o povo de Judá por desprezar os preceitos divinos. Amós – como Jeremias – não poupa nem o seu próprio povo (ele era natural de Tecoa, ao sul de Jerusalém).

3. A última nação a ser condenada é o reino de Israel, ou “Israel do Norte”, também referenciada como “casa de Jacó” ou “casa de Isaac”. São onze versos destinados a esta nação. Muito mais do que a média. Trata-se de um crime terrível. Suas críticas são formuladas poeticamente com muita maestria, força e clareza:

        "Eles vendem o justo por prata
        e o indigente por um par de sandálias".

        "Esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos
        e tornam torto o caminho dos pobres".

4. Agostinho, no século V, teve a infelicidade de classificar esses livros mais curtos como "profetas menores". Muita gente – ainda mais infeliz! – imagina que são "menores" porque são menos importantes. Mas é um livro arretado. Atual. Forte. Sempre Necessário.



Jones F. Mendonça

AMÓS NO MAPA

O vídeo exibe a localização das nações que são objeto de oito oráculos do profeta Amós, presentes nos capítulos 1 e 2 do livro. Ao final também são mostradas as localizações de três cidades mencionadas no livro: 1) Técua (20 Km ao sul de Jerusalém e local de nascimento do profeta), 2) Betel (local onde ficava o santuário do rei Jeroboão II e era controlado pelo sacerdote Amazias), e 3) Basã, referência a uma região localizada na Transjordânia, conhecida por suas pastagens e seu gado bem alimentado (cf. Dt 33,14).



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 6 de abril de 2022

O ARTEFATO DO MONTE EBAL [ATUALIZAÇÕES]

1. Em 2019, peneirando resíduos de entulho de uma escavação feita na década de 80 no Monte Ebal (território sob controle civil palestino e militar israelense, na Cisjordânia), um grupo de arqueólogos alegou ter descoberto um pequeno artefato de chumbo dobrado, com inscrições visíveis pelo lado de fora, medindo 4cm2. O objeto foi enviado à Academia de Ciências da República Tcheca e submetido a uma tomografia computadorizada. O objetivo: verificar o que havia em seu interior.

2. Em uma coletiva de imprensa realizada em 24 de março de 2022 foi anunciado que a equipe conseguiu visualizar 40 consoantes do alfabeto proto-cananeu formando uma inscrição contendo a palavra YHW, nome da divindade adorada no Antigo Israel. O artefato foi datado para o século XIII/XIV a.C. Até o momento o modo como a suposta descoberta foi anunciada têm sido criticado por duas figuras de peso: Israel Finkelstein (arqueólogo) e Christopher Rollston (epigrafista).

3. De acordo com o Haaretz, alguns membros da equipe de arqueólogos estão dizendo que este é o mais antigo registro de uma inscrição em hebraico. Para o prof. Gershon Galil, um dos responsáveis pela divulgação da descoberta, “Esta inscrição não será menos importante que Merneptah [a Estela de Merneptah no Egito, também datada do século XIII a.C., onde o nome Israel aparece pela primeira vez], se não mais” (tudo isso parece bastante exagerado...). As declarações do Dr Scott Stripling, diretor das escavações, são ainda mais problemáticas. 

4. O anúncio da descoberta extrapolou os limites da discussão acadêmica. Há suspeitas de violação do direito internacional e de leis locais, uma vez que o objeto foi encontrado em território palestino por um grupo privado e enviado para outro país para ser analisado. Ainda de acordo com o Haaretz, por trás do projeto há um grupo de cristãos interessados em validar interpretações fundamentalistas de profecias messiânicas.

5. Acabo de ler, no Paleojudaica, que também foi divulgada a descoberta de uma haste de ferro supostamente utilizada como instrumento para riscar o objeto de chumbo. A imagem da haste não foi exibida ao público, nem como foram capazes de associar a haste com o objeto de chumbo, uma vez que ambos foram encontrados em resíduos de escavações feitas na década de 80. Está tudo muito estranho.😳


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 30 de março de 2022

CHRISTOPHER ROLLSTON E O ARTEFATO DO MONTE EBAL


Depois de
Israel Finkelstein, agora foi a vez do epigrafista Christopher Rollston se manifestar em relação à inscrição encontrada no Monte Ebal em 2019 e finalmente "decifrada" em 2022. Já posso adiantar que em sua opinião o que foi anunciado na coletiva de imprensa não passa de sensacionalismo. Ele lamenta que imagens de boa qualidade do artefato não tenham sido disponibilizadas, questiona a datação proposta (séc. XIV) e até se a inscrição contém mesmo as consoantes (incompletas) do nome divino, YHW.


Jones F. Mendonça

terça-feira, 29 de março de 2022

ISRAEL FINKELSTEIN E O ARTEFATO DO MONTE EBAL

O arqueólogo israelense Israel Finkelstein publicou em sua página pessoal do Facebook algumas observações acerca da descoberta de um artefato encontrado no Monte Ebal em 2019 contendo uma inscrição que supostamente menciona o nome YHWH. Suas considerações, expostas em sete pontos, podem ser lidas aqui.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 25 de março de 2022

DECIFRADA(?) INSCRIÇÃO ENCONTRADA NO MONTE EBAL

1. O tetragrama YHWH (יהוה), nome da divindade adorada entre os antigos israelitas, é conhecido desde o século XIV a.C., presente em listas preservadas em templos egípcios, que mencionam “a terra dos shasu de YHW”. A “terra dos shasu”, no entanto, não se refere ao território ocupado pelos israelitas, mas a Seir, região edomita do Arabá. O monte Seir também aparece relacionado a YHWH em textos bíblicos como Dt 33,2 e Jz 5,4.

2. Outro testemunho extra-bíblico do nome YHWH é a estela moabita, datada para o século IX. O documento apresenta o confronto entre YHWH de Israel e Quemós, divindade moabita. As inscrições de Kuntillet 'Ajrud, do século VIII, atestam o culto a um “Yhwh de Samaria” (norte), e também a um “Yhwh de Teman” (sul). Um quarto registro importante é o amuleto de Ketef-hinnon (séc. VI), artefato de natureza apotropaica que pede a proteção de YHWH.

3. Arqueólogos supõem ter decifrado uma inscrição encontrada no Monte Ebal em 2019, desta vez um artefato de chumbo proto-canaanita contendo uma maldição datada para o século XIV/XIII. Um trecho do artefato diz o seguinte: “Amaldiçoado, amaldiçoado, amaldiçoado, amaldiçoado pelo Deus YHW”. De modo geral a interpretação dessas inscrições é questionada por outros epigrafistas, por isso o melhor é esperar. Pessoalmente gosto de ouvir a opinião de Christopher Rollston, que ainda não se manifestou.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

A TENDA DO NECROMANTE: LEITURA HISTÓRICO-SOCIAL DA BÍBLIA HEBRAICA



O professor Osvaldo Luiz Ribeiro criou no início deste ano um canal no YouTube voltado para o estudo da Bíblia Hebraica: a Tenda do Necromante. O Numinosum acompanhava as publicações do prof. Osvaldo em Peroratio, mas infelizmente elas foram se tornando cada vez mais raras a partir de 2020. O prof. Osvaldo é doutor em teologia pela PUC-Rio e pós-doutorado em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Atualmente atua como Coordenador do Programa de Mestrado Profissional em Ciências das Religiões da Faculdade Unida de Vitória, instituição na qual eu estudo como mestrando, tendo o prof. Osvaldo como orientador. Eis a descrição do Canal:
Criado em 01/02/2022, o canal A TENDA DO NECROMANTE é um lugar para a leitura histórico-social da Bíblia Hebraica e, eventualmente, da Bíblia como um todo. O único interesse do canal é entender o que os autores dos textos que compõem a Bíblia (particularmente a Bíblia Hebraica ou “Antigo Testamento”) quiseram dizer. Sim, todos os autores da Bíblia estão mortos. Se eu quero entender o que os mortos disseram quando estavam vivos, então é como se eu quisesse ouvir os mortos. Por isso “A tenda do necromante”. É como se eu, exegeta, fosse um necromante secularizado – a única forma de fazer os mortos falar é entender o que eles escreveram quando estavam vivos.
Hoje será transmitida uma “Live de inauguração”, às 19 horas. O tema será o seguinte: “Como assim 'Espírito de Deus'"? O vento (ruah) na criação, segundo Provérbios 30,4. Até lá!


Jones F. Mendonça