terça-feira, 24 de maio de 2022

SOBRE A "ETERNIDADE" EM ECLESIASTES

1. Caso seja aprovado o projeto de lei que proíbe qualquer “alteração, edição, supressão, adição ou adaptação da Bíblia cristã”, teríamos diversas dificuldades. Um exemplo.

2. Na versão NVI, o livro do Eclesiastes diz que Deus “pôs no coração do homem o anseio pela eternidade” (3,11). A Bíblia de Jerusalém (BJ) suprime a palavra “anseio” e propõe uma tradução bem diferente para a palavra hebraica עולם, traduzida por “eternidade”.

3. Nesta versão, aquilo que Deus coloca no coração do homem não é o “anseio pela eternidade”, mas a “o conjunto de tempo”, ou seja, a noção de temporalidade, a percepção de que a existência humana na terra é como fagulha, como névoa diante de Deus.

4. A parte “b” do verso explica que essa noção faz o ser humano perceber a grandiosidade da criação, ou seja, que é incapaz de compreender “aquilo que Deus realiza desde o princípio até o fim”.

5. Em minha opinião, a tradução da BJ está correta (“conjunto de tempo”) e a da NVI está errada (“anseio pela eternidade”). Seja como for, não precisamos de uma lei destinada a regular as traduções da Bíblia. Isso é coisa de gente tonta e fundamentalista.


Jones F. Mendonça

 

terça-feira, 17 de maio de 2022

NOS APARTAMENTOS DE JAVÉ

O capítulo 23 do Segundo Livro dos Reis expõe algumas medidas tomadas pelo rei Josias com o intuito de promover uma reforma religiosa em Jerusalém. Em algumas versões – como a Almeida 1819 – o verso 7 diz que o rei mandou derrubar “as casas dos rapazes escandalosos que estavam na casa de Jehovah”. O leitor coça a cabeça e fica imaginando que tipo de rapazes seriam estes. Bem, de acordo com outros tradutores, a ação de Josias não foi dirigida à casa dos rapazes escandalosos, mas “aos apartamentos das prostitutas”. Eita! Mas será que as moças já tinham apartamentos naquela época? E foram erguidos "na casa de Jehovah"?😃


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 5 de maio de 2022

OS "SEIOS" NA BÍBLIA

1. Um dos meus passatempos prediletos é observar como as palavras hebraicas se comportam no texto bíblico. Hoje investiguei a palavra “hyq” (חיק), cujo significado primário é “peito”. Ela também pode ser traduzida por “colo”, sempre que tem o sentido de acolhimento e afeto. Em alguns casos expressa o sentido de “lugar oculto”. Vejamos:

2. A primeira vez que esta palavra aparece é em Gn 16,5, pronunciada pela boca de Sarai, que diz a Abraão: “coloquei minha serva no teu colo...”. No texto Sarai revela-se triste porque ao colocar sua serva Agar “no colo dele”, a moça engravidou. “Colo” aqui é eufemismo, claro.

3. Bem, a palavra “Hyq” como espaço do afeto reaparece no Deuteronômio. Ser a “mulher do peito” de um homem ou o “homem do peito” de uma mulher equivalia a dizer que ambos mantinham uma relação amorosa como fica claro em Dt 13,6 e Dt 28,54. Alguns tradutores fazem adequação e trocam o “do peito” por “do coração”.

4. Mas nem sempre “hyq” como lugar do afeto tem sentido sexual. Quando Rute teve um filho, Noemi o tomou “no peito dela” (ou colo) e passou a cuidar dele. Mas a coisa muda de figura em 1Rs 1,2. Davi, já idoso, recebe uma donzela chamada Abisag com a finalidade de que “durma no peito dele” e o aqueça ("aqueça" também é eufemismo).

5. Em Jó 19,27 “hyq” ganha um sentido diferente, servindo para indicar a parte interna do corpo: “consomem-se meus rins no meu peito”. “Hyq”, neste caso, indica um lugar secreto, escondido, oculto, como em Pv 17,23: “O perverso aceita o suborno no peito”, ou seja, secretamente. Também em nosso idioma usamos “seio” com este sentido, quando dizemos, por exemplo, que algo foi colocado “no seio” da terra.



Jones F. Mendonça