segunda-feira, 24 de abril de 2023

JEREMIAS E O "FLUXO DOS VALES"


1. Jr 49,4 dirige o seguinte oráculo contra os amonitas: “Por que tu te glorias nos vales, fluxo do teu vale, filha rebelde”. Alguns tradutores pensam que “fluxo do teu vale” é uma referência às orgias sexuais praticadas no vale, daí a tradução: “teus luxuriantes vales” (Almeida Revista e Corrigida).

2. Neste caso, o tradutor parece supor que o verbo “fluir” (זוב) é uma referência ao fluxo seminal. De fato, em muitos casos este verbo aparece relacionado ao fluxo de sêmen, como Lv 15,2: “Quando um homem tem fluxo que sai do seu corpo...”. Ocorre que o verbo também pode ser usado para falar dos alimentos que “fluem” da terra.

3. Um exemplo clássico é o “terra que mana leite e mel(Ex 3,8). O verbo traduzido por “mana” é o mesmo de Jr 49,4 e significa exatamente isso: manar, jorrar, fluir. Neste caso, é empregado de forma metafórica, afinal, nem o mel nem o leite “jorram” literalmente da terra, mas podem ser abundantes na terra.

4. No caso de Jr 49,4 o contexto sugere que a crítica se dirige à confiança que os amonitas depositam na fartura de alimentos produzida em seus vales irrigados – no “fluxo dos teus vales” – e nos seus “tesouros” (אוצר), ou seja, em sua riqueza de modo geral. Toda essa discussão pode parecer infrutífera e desnecessária, mas no fim das contas o tradutor precisa decidir.

5. Nunca é demais repetir: não é fácil a vida do tradutor.



Jones F. Mendonça

sábado, 22 de abril de 2023

BÍBLIA, EXEGESE E RACISMO

1. Os versos 7 e 8 do capítulo 4 do livro bíblico de Lamentações parecem indicar que indivíduos com pele “mais branca do que o leite” são mais desejáveis do que aquelas “mais negras do que o carvão” (NVI). Uma leitura apressada sugere que pessoas de pele negra tinham pouco valor na antiga sociedade israelita. Será?

2. Em minha opinião a palavra hebraica traduzida por “branca” (tzahah) não indica cor, mas outra característica presente no leite e na neve. Explico. Embora “tzahah” só apareça neste verso de Lamentações (daí a dificuldade em traduzi-la), ela deriva de outra palavra (tzah) que significa “ofuscante”, “resplandecente”, “abrasador”, etc.

3. No livro bíblico de Cantares (5,10), por exemplo, o amado é descrito como “tzah” e “adom”. O texto destaca o VIGOR da pele de seu amado e sua aparência AVERMELHADA ( = corada, saudável): "meu amado é ALVO [ou melhor, "resplandecente"] e rosado" . Ou seja, é "puro vigor", um "homão". 

4. No caso de Lamentações a pele “enegrecida” [hashakh] não é desvalorizada pela cor, mas pela imagem evocada. Repare que no v. 8 a pele “enegrecida” faz alusão a uma pele seca, sem vigor: “sua pele [enegrecida] se lhe colou aos ossos, ela é seca como a lenha”. A mesma descrição aparece em Jó 30,30: “Minha pele se enegrece [shahar] e cai”.

5. Não é minha intenção aqui fazer uma leitura politicamente correta das Escrituras. No Antigo Testamento determinadas condutas são nitidamente reprováveis à luz dos valores éticos e morais adotados em nossa sociedade moderna. Mas racismo não há (até onde pude constatar).


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 13 de abril de 2023

JEZABEL, POR TINA PIPPIN


1. Jezabel, princesa fenícia dada como esposa ao rei Acab, converteu-se em uma espécie de ícone da imagem feminina considerada degradante: vulgar, sedutora, mentirosa, feiticeira, traiçoeira, duas caras, desavergonhada, e por aí vai. Na década de 80 – lembro-me bem – mulheres que tingiam o cabelo eram acusadas de estar possuídas pelo “espírito de Jezabel”. Isso na igreja batista...

2. Em “Jezebel re-vamped”, Tina Pippin rastreia o desenvolvimento da representação dessa rainha nos textos e na tradição. Para a autora, o discurso sobre Jezabel muitas vezes foi utilizado para aviltar a imagem do “outro”, sobretudo da mulher estrangeira, considerada perigosa, sedutora, má, como as negras africanas escravizadas no Sul dos Estados Unidos.

3. O artigo de Pippin pode ser lido no volume 69/70 da Revista Semeia (1995, pp. 221-233). 


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 12 de abril de 2023

A FILHA DE JÓ E O ANTIMÔNIO NOS OLHOS


1. No capítulo quatro, o livro do profeta Jeremias compara Jerusalém a uma mulher extremamente bela, porém desprezada. Ela veste púrpura, tem enfeites de ouro, e seus olhos estão “rasgados com antimônio” (4,30), ou seja, alargados, pintados com tintura. O antimônio já era conhecido por suas qualidades cosméticas por indianos e egípcios. Era bom para sombrear os olhos.

2. Esse metal sólido, acinzentado e de constituição quebradiça reaparece poucas vezes na Bíblia Hebraica. Sua ocorrência mais inusitada surge em Jó 42,14. De acordo com o texto, Jó teve três filhas: Jemimah, Qetziah e Qeren-Hapukh. Os significados de Jemimah e Qetziah são incertos, mas o de Qeren-Hapuk é claro. Significa “chifre de antimônio” (קרן הפּוךְ).

3. Bem, se o antimônio fosse um metal dotado de grande dureza, seu nome poderia indicar força, uma vez que a palavra hebraica qeren (chifre) é usada como metáfora para "força" (cf. Sl 18,2). A moça seria conhecida por algo como “chifre/força de aço”. Mas não é este o caso. Minha hipótese é que “chifre” podia funcionar como referência visual para o prolongamento dos olhos pelo antimônio.

4. Assim, "chifre de antimônio" seria uma alusão à sua beleza, a seus olhos alongados. Quer saber se tenho certeza? Claro que não, mas esta é minha melhor hipótese.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 7 de abril de 2023

OS SALMOS, EM CINCO PARÁGRAFOS CURTOS


1. O Livro dos Salmos, tal como se encontra em nossas Bíblias, é fruto de um longo trabalho feito por compositores, colecionadores e editores. Estes últimos dispuseram os Salmos de acordo com alguns esquemas programáticos. Algumas vezes esse esquema segue a lógica da autoria: 42-49 (Coré); 50 (Asaf); 51-72 (DAVI); 72-83 (Asaf) e 84-89 (Coré). Note que o “Salmo de Davi” aparece no centro, cercado por Asaf e Coré (disposição quiásmica).

2. Mas até mesmo os títulos de “autoria” parecem ter sido incluídos pelos editores. Aliás, a tradução “Salmo de...” (Davi, Coré, Asaf...) tem sido objeto de muita discussão. Afinal, o Salmo 51 foi escrito por Davi, foi inspirado na vida de Davi ou o nome “Davi” é apenas uma homenagem à personalidade a qual se atribuía o patrocínio da coleção? Está confuso? Eu explico.

3. Na abertura do Salmo 3 lemos assim: “mizmor LeDavid”. Uma tradução mais fiel seria “Salmo para Davi” ou “Salmo a Davi” (o “Le”, antes do nome de Davi é preposição). Em alguns casos esse “Le” (לְ) indica pertencimento, como consta, por exemplo em um selo encontrado em Jerusalém datado para a época de Ezequias: “PERTENCE a Ezequias, filho de Acaz” (LeEzequias).

4. Na Bíblia essa preposição também funciona como indicativo de pertencimento quando aparece antes de nomes próprios. Quer exemplos? Lá vai. Veja o caso de Rt 4,9: “comprei da mão de Noemi tudo o que PERTENCIA a Elimelec” (לאלימלך). Veja agora 1Sm 27,6: “É por isso que Siceleg PERTENCE aos reis de Judá” (למלכי). Assim sendo, porque não devemos ler: “Salmo pertencente a Davi”?

5. Seja como for, esses títulos deixam uma coisa bem clara: de alguma maneira o editor via afinidade entre o Salmo e a personalidade referida no título. Talvez pensasse que era seu autor, talvez patrocinador, talvez que essas personalidades apenas funcionavam como inspiração para um poeta posterior, que se imaginava, por exemplo, na pele de Davi. Quem saberá?


Jones F. Mendonça

sábado, 1 de abril de 2023

JEREMIAS E AS SOMBRAS DA GUERRA



1. O livro do profeta Jeremias, no capítulo 6, descreve os sinais de uma guerra que aponta no horizonte, conduzida pelo “mal que vem no Norte” (v.1). Na cidade de Jerusalém, a “bela e delicada Filha de Sião”, o povo está em polvorosa: pastores recolhem seus rebanhos, atravessam os portões e tentam protegê-los, cada qual a seu modo (vv. 2-3).

2. Com a intenção de materializar o terror que assola a população de Jerusalém, o texto busca auxílio em imagens que ainda fazem parte do nosso cotidiano. A noite, tão temida por quem experimenta um cerco inimigo, é anunciada poeticamente pelo efeito da luz do sol sobre os corpos. Uma luz que se despede e dá lugar às sombras, que dá lugar à morte:
“ai de nós que o dia declina,
que se alongam as sombras da tarde” (Jr 6,4).


Jones F. Mendonça