domingo, 31 de outubro de 2021

JUBILAR UNIGENITUS DEI FILIUS

1. As 95 teses escritas por Lutero, em 31 de outubro de 1517, tiveram como foco principal a venda de indulgências, prática que se desenvolveu a partir da Bula Jubilar Unigenitus Dei Filius, assinada em 1343. Também conhecida como “bula extravagante”, o documento colocava a Igreja como herdeira dos “Tesouros de Cristo”, que poderia ser usado para livrar os fiéis de suas penas temporais, "sequelas de pecados a purificar".

2. Os teólogos entendiam que essas “penas temporais” eram eliminadas no purgatório, uma espécie de varanda sombria do céu. Diante desse remédio amargo, as indulgências se apresentavam como um caminho mais rápido e fácil contra as terríveis penas temporais. As indulgências podiam ser adquiridas de duas formas: 1) oferecimento de práticas penitenciais acompanhadas de orações; 2) doação de importância material à Igreja (“óbolo de São Pedro”).

3. Tais tesouros, também afirmava o documento, tinham o poder de livrar até mesmo as penas temporais devidas pelas almas que já se encontravam no purgatório. Bem, como o negócio estava rendendo uma grana forte à Igreja, a prática se popularizou, convertendo-se em uma grande fonte de arrecadação. Bebendo em Agostinho, apoiando-se nos humanistas, gozando do apoio dos príncipes, subindo nos ombros de John Wycliff e Jan Huss, Lutero mirou na rolinha e acertou um avião.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

BAAL NO TEMPLO DE JUDÁ

Publicado hoje no Haaretz (27/10/21):

Um fragmento de relevo encontrado em um santuário semelhante ao Templo de Salomão lembra uma divindade cananeia, sugerindo que o culto a imagens e a vários deuses estava bem vivo na Judá bíblica.

O objeto – encontrado na antiga comunidade de Motza, a 6 km de Jerusalém – pode ser apenas uma pedra desgastada de uma maneira que lembra um homem de pé. O arqueólogo que dirige a escavação, Shua Kisilevitz, sugere que seja um fragmento de relevo mostrando a representação de uma divindade da tempestade, como Baal.

 

Jones F. Mendonça

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

O SOL “ME AVISTOU”, MEUS IRMÃOS “ME QUEIMARAM”

O livro Bíblico dos Cânticos dos Cânticos, no v. 6 do capítulo 1, traduzido literalmente, fica assim:
Não OLHEIS eu estar empretecida, foi o sol que me AVISTOU. Os filhos de minha mãe QUEIMARAM-SE contra mim.
É curioso que o texto não use o verbo “queimar” para indicar a ação do sol sob a pele da personagem, mas “avistar/ver” (שזף). A ideia talvez seja enfatizar a ação dos “filhos de sua mãe”. Estes sim, “queimaram-se” (חרר) contra ela.

A moça, coitada, foi obrigada por seus irmãos a guardar vinhas que não eram suas. Eram de fato uns “filhos da mãe”.


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

CÂNTICO DOS CÂNTICOS: UMA LEITURA HISTÓRICO-SOCIAL

Sempre que leciono “poesia e sabedoria hebraica” no STBC, exijo dos meus alunos como tarefa avaliativa uma análise crítica da aula “O desejo e o erotismo em Cântico dos Cânticos: uma leitura histórico-social”, ministrada pelo prof. Dr. Osvaldo Luiz Ribeiro. Faço isso por três razões: 1) a exposição, verso a verso, é algo fora da curva (não é mera repetição do que aparece nos manuais); 2) O prof. Osvaldo faz muitas provocações necessárias (e julgo que meus alunos precisam ser provocados); 3) Sua leitura histórico-social faz muito sentido.

Caso você tenha interesse em assistir a aula online, faça o seguinte:
  • Clique aqui para acessar a página da Faculdade Unida de Vitória;
  • Depois clique em “quero comprar” na arte que anuncia o curso (é de graça, exceto se você optar pela emissão de certificado);
  • Um quadrinho vai aparecer (acesso – sob demanda). Caso ainda não tenha uma conta, crie uma clicando em “ainda não possui conta, clique aqui” (em cinza, na parte inferior do quadrinho).


Jones F. Mendonça

ALEGORIAS E MAÇÃS DE OURO

1. A interpretação alegórica entrou no universo exegético judaico por influência da cultura grega. Ao que parece a ideia era tornar antigos relatos mitológicos, repletos de eventos absurdos à luz da razão, aceitáveis à racionalidade grega. Heródorus de Heraclea – autor de uma história sobre Hércules, no século IV a.C. – viu nas três maçãs de ouro que o herói obteve após matar o dragão como sendo uma alusão às três virtudes obtidas por meio da filosofia [1].

2. Fílon de Alexandria, inserido no ambiente helenizado, acompanhou os gregos no costume de atribuir aos textos antigos sentidos ocultos, vendo neles elementos simbólicos. O objetivo era o mesmo: tornar aceitáveis relatos repletos de elementos incompatíveis à razão. Ao explicar que os dias da Criação devem ser entendidos como simbólicos, Fílon usa e abusa de concepções platônicas e pitagóricas. Analogias com o número sete são um tanto curiosas. Veja:
Mas a natureza se delicia com o número sete. [...] sete são as secreções [do corpo]: lágrimas, muco do nariz, saliva, líquido seminal, os dois tipos de evacuação [urina e fezes], e o suor que sai de todas as partes do corpo (Interpretação Alegórica I, IV, 8).
3. Cristãos como Orígenes e Clemente de Alexandria embarcaram no mesmo “trem exegético”. As parábolas de Jesus, por exemplo (que não são alegorias, exceto as que foram reinterpretadas por Mateus), foram lidas como se cada elemento tivesse um significado especial, oculto aos “neófitos literalistas”. Aqui vai um exemplo: uma interpretação da parábola do bom samaritano, citada [neste caso, em tom crítico, dado seu exagero] por Orígenes em sua Homilia sobre Lucas, tinha não apenas um, mas vários significados. Os ladrões representam os demônios; o homem caído é a natureza humana, corrompida; o bom samaritano é Cristo; o animal de carga é o corpo de Cristo; a hospedaria é a Igreja; o taverneiro os apóstolos, etc. (Homilia 34).

4. O mais curioso é que o método ainda faz sucesso.

[1] EVANS, Craig A. The Interpretation of Scripture in Early Judaism and Christianity. Sheffield: Sheffield Academic Press, 2000, p. 426.


Jones F. Mendonça

domingo, 17 de outubro de 2021

LUTERO E AS ORDENS CELESTES

Em suas Preleções ao Gênesis, Lutero dedica algumas linhas para discutir a natureza dos querubins mencionados pela primeira vez em Gn 3,24. Ele não vê os querubins como sendo uma ordem específica na hierarquia angelical – serafins, querubins, tronos, domínios, poderes, principados, etc. – tal como pensava Pseudo-Dionísio areopagita. Por isso conclui: “ora, quem não vê que todas essas representações são nada mais nada menos do que vãs e fúteis invenções humanas?”.

Recorrendo a etimologias um tanto duvidosas, Lutero sugere que o termo “querubim” indica o aspecto jovial dos anjos, perceptível “nos rapazes e nas moças no desabrochar de suas idades”, dotados de “rostos rechonchudos e cheio de alegria”. É por isso – ele acrescenta – que os anjos “são representados em imagens como crianças”. O mesmo ele pensa em relação aos serafins (Is 6,2.6), que não seriam membros de ordem específica de anjos. O termo indicaria o aspecto “ardente e brilhante” das faces dos anjos ("serafim" vem do verbo hebraico "queimar": שרף).

Nesse sentido, os termos hebraicos “querubim” (כרבים) e “serafim” (שרפים) seriam adjetivos, empregados para destacar algumas qualidades dos anjos, como seu brilho, seu aspecto jovial, reluzente, glorioso, etc. A interpretação que Lutero faz do texto de Gênesis revela que mesmo abandonando a alegoria, sua exegese “literal”, “histórica” e “gramatical” deixa muito a desejar.


Jones F. Mendonça

sábado, 16 de outubro de 2021

LUTERO E O MÉTODO HISTÓRICO-GRAMATICAL

Em suas Preleções ao Gênesis, Lutero interpreta o “haja luz” de Gn 1,3 insistindo em seu sentido histórico e na necessidade de uma interpretação que leve em conta o aspecto gramatical simples do texto. Veja:
Moisés está aqui registrando fatos históricos [...]. Embora seja difícil descrever que tipo de luz era essa, ainda não estou inclinado a pensar que devemos nos afastar, sem motivo, da gramática simples.
O reformador rejeita as interpretações alegóricas que entendiam essa “luz” como sendo uma referência aos “anjos bons” e as “trevas” como indicação velada aos “anjos maus”. E assim conclui: “isto é brincar com alegorias”.

Apesar de reconhecer que essa “luz” não poderia ser o sol, criado somente no quarto dia, Lutero insiste que “essa luz era móvel” e que “girava em um movimento circular” tal como imaginava ser o trajeto do sol ao redor da terra, marcando um período de 24 horas.

O reformador foi influenciado pelos exegetas de Antioquia, por comentaristas judeus (ambos rejeitavam a alegoria), por Nicolau de Lira e pelos pensadores humanistas. Em relação a Lira, ele comenta:
É por esse motivo que sou tão favorável a Lira e, de bom grado, classifico-o entre os melhores comentaristas. Ele sempre obedece e segue cuidadosamente a história.
A centralidade do comentário de Lira para os pensadores da Reforma foi homenageada em ditados latinos como, ‘‘Si Lyra non lyrasset, Luther non saltasset ’’ (Se Lira não tivesse tocado, Lutero não teria dançado). Lutero certamente não foi o inventor do método que hoje chamamos de histórico-gramatical, mas em seus textos há clara ênfase nos aspectos históricos e gramaticais do texto.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

A VIOLAÇÃO DO SÁBADO EM NM 15


A imagem acima ilustra o episódio narrado em Nm 15,32-36: 1) um homem (camisa verde, ao fundo), segue em direção a uma árvore; 2) Violando o sábado, ele a derruba para coletar lenha; 3) Como consequência é apedrejado pela comunidade.

Um detalhe curioso: a disposição da cena feita pelo artista parece ter se inspirado nas representações cristãs da cena da flagelação de Cristo, que exibem o Nazareno sendo açoitado com as mãos atadas a um tronco/coluna.

A imagem aparece impressa na Bíblia Hebraica Poliglota, publicada em 1665. O projeto British Library Labs está disponibilizando o manuscrito gratuitamente para download aqui:



Jones F. Mendonça

terça-feira, 12 de outubro de 2021

ASSUR, JAVÉ, CHUVA DE FOGO E GRANIZO

A Bíblia Hebraica apresenta Javé punindo seus inimigos com fogo, granizo e enxofre em diversas ocasiões. Sodoma e Gomorra, por exemplo, são destruídas após uma chuva de “enxofre e fogo” (Gn 19,24). Em Ez 38,22 a terra de Gog é ameaçada pela ira divina com uma “chuva torrencial de pedras de granizo, fogo e enxofre”. Usando um querubim como montaria, Javé dispersa seus inimigos com “granizo e brasas de fogo” em 2Sm 22,13. As “chamas de fogo” e o “granizo” reaparecem no Sl 105,32 e em Is 30,30. Um oráculo de salvação neo-assírio também incorpora alguns desses elementos:
Eu [Assur] ouvi seu clamor [de Esarhaddon].
Saí como um brilho ardente do portão do céu,
para lançar fogo e devorá-los.
Estavas no meio deles,
por isso retirei-os da tua presença.
Eu os levei montanha acima
e choveu pedras (granizo) e fogo do céu sobre eles.
Matei seus inimigos
e enchi o rio com o sangue deles.
Que eles vejam (isso) e me louvem,
(sabendo) que sou Assur, Senhor dos deuses (SAA, 24).
O texto aparece na obra identificada pela sigla SAA, cuja descrição completa é: PARPOLA, Simo. Assyrian Prophecies: State Archives of Assyria, vol. 9. Helsinki, Finland: Helsinki University Press, 1997. O autor é um respeitado assiriólogo finlandês. 

Jones F. Mendonça

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

A BÍBLIA HEBRAICA E A LITERATURA DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO

Tenho reservado o pouco tempo disponível para ler e analisar a produção literária dos povos vizinhos de Israel, como Egito, Assíria, Babilônia e Ugarit, na Síria. Tais textos foram traduzidos e podem ser encontrados em muitas obras – a maioria em inglês e alemão. Quem estiver interessado em conhecer este material e algumas de suas relações com a cultura preservada pelo Antigo Israel na Bíblia Hebraica (BH), encontrará uma boa antologia de textos aqui:
PRITCHARD, James B. (edit.). Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament. Princeton: Princeton University Press, 1969.
A obra aparece na literatura especializada pela sigla ANET e consiste em uma coleção de mitos, contos, crônicas reais, orientações ritualísticas, encantamentos, textos mortuários, cartas reais, preceitos legais, oráculos proféticos e textos de natureza sapiencial, como provérbios e lamentos de um justo que sofre (semelhantes ao de e aos Salmos 22 e 38).



Jones F. Mendonça

O QUE É O “CONHECIMENTO DO BEM E DO MAL” EM GN 3,5?

Em Gn 3,5 a serpente diz à mulher que o fruto da “árvore do conhecimento do bem e do mal” dará a ela (e ao homem) o poder de “ser como os deuses, versados no bem e no mal” (ou "no certo e do errado"). A serpente dizia a verdade, pois no v. 22 Javé declara: “o homem já é como um de nós, versado no bem e no mal”. Mas o que significa “ser versado no bem e no mal”?

2Sm 14,17.20 pode lançar uma luz sobre o problema. Uma mulher sábia de Técua diz o seguinte a Davi: “meu rei é como o anjo de elohim (כמלאך האלהים) para discernir o bem e o mal”, afinal ele tem “a sabedoria de um anjo de elohim”. Ao que parece a capacidade dada pelo fruto proibido foi a de avaliarperceberdecidir com justiça.

Repare que no relato de Gênesis homem e mulher recebem a sabedoria para julgar, mas não a vida eterna: “que agora ele não estenda a mão e colha também da árvore da vida, e coma e viva para sempre!” (3,22). No mito de Adapa – o primeiro homem criado – algo semelhante acontece. Adapa recebe de Ea a sabedoria, mas não a vida eterna:

Para ele [Adapa], ele [Ea] deu sabedoria,
a vida eterna que ele não lhe deu (ANET, 102).

No segundo relato bíblico da criação (não sacerdotal) essa sabedoria, esse conhecimento, é visto de forma negativa, como uma espécie de busca por autonomia em relação a Javé.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

A SABEDORIA E A INSENSATEZ EM PROVÉRBIOS

1. O capítulo 9 do livro bíblico de Provérbios apresenta a “Sabedoria” e a “Insensatez” de forma personificada. A primeira constrói uma casa, prepara uma mesa farta e convida os ingênuos e os sem juízo a se alimentarem de seu banquete. No v. 6 deixa um conselho: “Deixai a ingenuidade e vivereis; segui o caminho da inteligência”.

2. A partir do v. 13 a “Senhora insensatez” também faz seu discurso. Ela se assenta à porta da casa e chama os que seguem pelo caminho reto: “venham cá, tolinhos, quero falar com vocês, seus desmiolados” (v. 16). Quando se aproximam ela diz assim: “a água roubada é mais doce e o pão escondido é mais saboroso” (v. 17).

3. Esses que passam pela rua e que caem em sua conversa são os ingênuos, pessoas de “cabeça fraca”. No v. 18 a Sabedoria faz um alerta aos que seguem os conselhos da Senhora insensatez: “não sabem que em sua casa estão os rephaim e seus convidados no fundo do Sheol”. A imagem evocada no final do capítulo é pra lá de sinistra (ela reaparece em 2,18).

4. O termo hebraico “rephaim” (plural de rapha’) era usado para indicar o aspecto sombrio, fantasmagórico, dos habitantes do mundo dos mortos, o Sheol. A mensagem final basicamente é esta: “não caia na conversa mole da Senhora Insensatez: sua casa está apinhada de mortos e suas paredes ocultam o alçapão dos infernos”.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

SOB A SOMBRA DE SHADDAY

Na linguagem do Antigo Oriente Próximo, estar sob a sombra de uma divindade equivalia a estar sob sua guarda. O rei assírio Esarhaddon (680-669), certo da proteção recebida dos deuses, declara o seguinte:
[Os deuses] puseram-me em um esconderijo diante dessas maquinações malignas, espalhando sua doce sombra protetora sobre mim, preservando-me para a realeza (ANET, 289).
Na Bíblia Hebraica a sombra tem o mesmo sentido: “Não tenhais medo do povo daquela terra, [...] pois foi removida a sua sombra (צל)” (Nm 14,9). A metáfora reaparece no Sl 121,5, desta vez em relação ao deus de Israel: “Javé é teu guarda, Javé é tua sombra (צל)”. O texto mais famoso, no entanto, surge no Sl 91,1:
Aquele que se assenta no esconderijo de Elyon,
pernoita à sombra (צל) de Shadday.
No caso do Sl 91 esse “esconderijo”, essa “sombra” evocam a imagem de uma ave protegendo seus filhotes sob suas asas, como fica claro no v.4:
Ele te esconde com suas penas,
sob suas asas encontras um abrigo.
A mesma imagem aparece em Dt 32,11, texto que apresenta Javé como uma águia velando por seu ninho. Há quem sugira, como Alonso Schökel (Comentário aos Salmos II), que o as “asas” mencionadas no v. 4 fazem alusão aos querubins com suas asas estendidas sobre a arca da aliança. Ocorre que os querubins não protegiam os fiéis, mas a santidade de Javé. Assim, parece que faz mais sentido pensar em alusões mais evidentes, já presentes em outros textos, como estar sob a sombra (Nm 14,9; Sl 121,5; 91,1) ou, de maneira mais visual, sob as asas de uma ave (Dt 32,11; Sl 91,4).

 

Jones F. Mendonça