quarta-feira, 29 de setembro de 2021

PREPÚCIOS, ARTE E DEVOÇÃO


A ideia do artista que pintou esta tela era retratar o texto bíblico de 1Sm 18,27, mas por alguma razão trocou os “indecentes” prepúcios por cabeças. Eis a fonte da imagem: “A Bíblia dos cruzados, c. 1240, MS. M. 638, f. 30 R”.

Embora ocultado na representação medieval acima, o prepúcio aparece de forma bem evidente nos escritos de Catarina de Siena, que comenta em uma de suas cartas seu noivado com Jesus, selado não “não com um anel de prata, mas com uma aliança feita com sua própria carne sagrada” [1].

Nota:

[1]GLICK, Leonard B. Marked in your flesh: circuncision from Ancient Judea to modern America. Oxford: Oxford university Press, 2005, p. 97.

 

Jones F. Mendonça

domingo, 26 de setembro de 2021

DEUS EM TRABALHO DE PARTO

Um caso raro, presente em Is 42,14, descreve Javé como uma mulher ofegante em trabalho de parto (fiz minha própria tradução):
Calei-me por muito tempo,
Fiz silêncio, contive-me;
Como a parturiente gritei ofegante,
suspirei longamente.
Quando isolado, o texto parece sugerir passividade. Mas esse silêncio, essa dor e essa agonia contida explodem no verso seguinte:
“Assolarei colinas e montes,
e toda a vossa erva farei secar;
Converterei torrentes em ilhas (*)
e lagos em sequidão".
(*) A imagem que o texto parece evocar é a de um rio que após ter seu volume d'água reduzido exibe partes de seu leito em forma de ilhas. 



Jones F. Mendonça

sábado, 25 de setembro de 2021

AVRAM, AVRAHAM, AV-HAMON


Muita gente repete por aí que o nome “Abraão” (Avraham) significa “pai de muitas nações”. Mas isto não é certo. Na verdade, o texto destaca a semelhança fonética entre o nome Avraham (que significa “pai de raham”) e a expressão “pai de muitos”. Veja:

“Não mais serás chamado Avram (אַבְרָם), mas Avraham (אַבְרָהָם) será o teu nome; pois por av-hamon (אַב־הֲמוֹן = “pai de muitos”) povos te hei posto” (Gn 17,5).

Assim, se alguém perguntasse: “por que o patriarca Avram teve seu nome mudado para Avraham’”? A resposta seria: “porque ele é ‘av-hamon’, ou seja, ‘pai de muitos’”. Sei que isso parece não ter muito sentido para uma mente moderna, mas as etimologias populares faziam muito sucesso entre os hebreus.

  

Jones F. Mendonça

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

SOBRE OS NOMES BÍBLICOS

A origem dos nomes de todos os filhos de Jacó foram explicados tardiamente a partir de etimologias populares. No caso de José duas explicações foram colocadas na boca de Raquel: 1) Ele se chamou José (Yossef) porque “Deus removeu (assaf → אסף) minha vergonha” (Gn 30,23) e 2) Ele se chama José porque deu-me (yassaf → יסף) o Senhor outro filho” (Gn 30,24).

O mesmo acontece com Jacó (Yaakov → יעקב), que tem seu nome associado ao “calcanhar” (‘aqev → עקב) de Esaú e ao fato de tê-lo “enganado” (‘aqav → עקב). Tais histórias (Gn 25,26; 27,36) obviamente não possuem qualquer fundamento histórico. Não receberam esses nomes no momento do nascimento por mera associação a eventos inusitados, mas porque a criatividade popular assim quis.  Muitos desses nomes já existiam em outras regiões. Não foram inventados pelos hebreus. 

 

Jones F. Mendonça

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

O APÓLOGO DE JOATÃO E A HISTÓRIA DE DEBORAH: SOBRE ÁRVORES QUE FALAM

Jz 9,8-15 registra uma fábula na qual um grupo de árvores discute a respeito de quem deverá reinar sobre elas. A oliveira demonstra-se pouco interessada, uma vez que teria que abandonar a produção de seu azeite, alimento “que tanto honra os deuses e os homens” (v. 9). A figueira usa um argumento semelhante: “Iria eu abandonar minha doçura e o meu saboroso fruto, a fim de balançar-me por sobre as árvores?” (v. 11). O convite também é estendido à videira, que recusa a oferta em nome da alegria produzida por seu vinho (v. 13).

Na ausência de uma árvore nobre, finalmente fazem o convite ao espinheiro, que prontamente aceita reinar sobre todas as árvores, acolhendo-as sobre sua sombra (v. 15). Mas faz um alerta às árvores que não se sujeitarem a seu governo: “sairá fogo dos espinheiros e devorará os cedros do Líbano”. Um exemplo de fábula com árvores falantes aparece em um antigo texto acadiano intitulado: “A disputa entre a tamargueira e a tamareira”. Na fábula, de caráter didático-sapiencial, as duas árvores apresentam suas virtudes na tentativa de provar quem é a mais valiosa.

 Dois trechos chamaram a minha atenção:

“O rei em seu palácio planta tamareiras,
além disso, da mesma forma, tantas tamargueiras.
À sombra da tamargueira foi organizado um banquete.
À sombra da tamareira a decisão sobre um crime...”
“Plantou ao seu lado a tamareira [dizendo],
“Se [você estiver] no portão da cidade, acalme a contenda;
se estiver no deserto, acalme o calor” (ANET, p. 411).
Aqui, como em Jz 4,5, era à sombra de uma palmeira que as disputas judiciais eram resolvidas: “Ela tinha a sua sede à sombra da palmeira de Débora, entre Ramá e Betel, na montanha de Efraim, e os filhos de Israel vinham a ela para obter justiça”. Mas há algo estranho nesse texto: a presença do pronome “ela” (הִיא) no início da frase é desnecessário. Ao que parece a camada mais antiga do texto falava de uma mulher anônima (ela) que julgava as causas do povo ou anunciava oráculos “na palmeira de Deborah”.

Um segundo problema: as árvores também funcionavam com local sagrado para a adivinhação (Jz 9,37), como locais de aparição (Gn 18,1), de sepultamento (Gn 35,8) e de culto (Js 24,26) e, talvez, de consulta aos mortos. Ao mesmo tempo em que é apresentada como alguém que “julgava” (שֹׁפְטָה), para que por meio dela fosse obtida a “justiça” (לַמִּשְׁפָט), a personagem também atua como “profetiza” (נְבִיאָה). Ela estaria ali “julgando” ou anunciando um oráculo divino? Seu nome era mesmo “Deborah” ou ele possui relação com o local do sepultamento da ama de leite de Rebeca, enterrada aos pés de uma árvore em Betel, o "carvalho dos prantos" (cf. Gn 35,8)?

Talvez o relato presente em Gn 35,8 tenha a função de explicar a razão do "carvalho dos prantos" – o "carvalho de Deborah" – ainda frequentado, na época do redator, por pessoas que lamentam a perda de um ente querido ou, mais especificamente, de ocultar sua verdadeira função como local de consulta aos mortos. Neste caso seria necessário explicar como o "carvalho dos prantos" de Gn 35,8 se converteu em "palmeira de Deborah" em Jz 4,5. Essa questão suscita outra pergunta: será que a tradução de "tomer" (תֹּמֶר) por "palmeira" está correta? 

 

Jones F. Mendonça

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

GERSOM, O PEREGRINO

Após se retirar para Midiã fugindo de Faraó, Moisés parou junto a um poço. Lá defendeu sete moças, filhas de Raguel (ou Jetro), que estavam sendo importunadas por alguns pastores. Quando retornaram para casa contaram ao pai o acontecido. Raguel não perdeu tempo: “vocês deixaram esse homão partir?!”. Obedientes, as moças trouxeram Moisés, que se casou com Zípora. Depois ela engravidou. O nome do filho: “Gersam” (Ex 2,22). A razão de ter recebido este nome aparece logo adiante: “porque era um “ger” (“peregrino”, em hebraico) em terra estrangeira”. Não entendeu? Ele se chamou Gersom porque Moisés era um “ger” em terra estrangeira. Simples assim. 



Jones F. Mendonça

SODOMA E O IMPACTO DO COMETA

Acabei sabendo, via Paleojudaica, que um artigo publicado na Nature aponta como razão para a destruição de uma cidade ao sul do Mar Morto (Tall el-Hammam), em 1650 a.C., a explosão, no ar, de um meteoroide ou fragmento de cometa, tal como aconteceu na cidade de Tunguska, Rússia, em 1908. Em fenômenos dessa natureza não há formação de cratera no solo. Embora não tenha como foco eventos citados na Bíblia, o artigo levanta o seguinte questionamento: “consideramos se as tradições orais sobre a destruição desta cidade urbana por um objeto cósmico podem ser a fonte da versão escrita sobre Sodoma no Gênesis”. Leia o artigo completo aqui. Leia também no JPost

 

Jones F. Mendonça

terça-feira, 21 de setembro de 2021

A TERRA É PLANA... E QUADRADA

Zé Bobinho é dessas pessoas tontas que paga para assistir aula de filosofia no YouTube ministrada por professor sem diploma e sem juízo. Certo dia, absorto em suas reflexões sobre a planicidade da terra, lembrou-se de que o profeta Ezequiel menciona “os quatro cantos da terra” (Ez 7,2). Pensou com seus dois neurônios: “a terra, além de plana, é quadrada”. Um amigo, depois de acurada investigação, disse ter descoberto que o céu também é plano e quadrado. A revelação teria vindo de Jr 49,36: “Trarei sobre Elam quatro ventos, dos quatro cantos do céu” (Jr 49,36). Agora quer descobrir em que canto fica o trono divino 😉

 

 Jones F. Mendonça

domingo, 19 de setembro de 2021

AS MUITAS FACES DA TENTAÇÃO

A cena da tentação de Jesus no deserto foi retratada de diversas formas. Em boa parte delas o capiroto aparece representado com aspecto animalesco. Mas nesta, produzida por Juan de Flandes (1500/1504), ele tem a aparência de um sacerdote franciscano. Repare que sua mão direita segura algumas contas de rosário. As únicas indicações de sua natureza maligna aparecem nos pés (de pato!) e nos chifres (ou talvez seja um disfarce, afinal os chifres também aparecem associados a Moisés).



Jones F. Mendonça

A TENTAÇÃO DE JESUS: PEDRAS OU POMBOS?

Esta gravura, pintada num manuscrito do século XV (The Mirror of Human Salvation) mostra Cristo sendo tentado em três cenários distintos: 1) No deserto (Mt 4,3); 2) No pináculo do Templo (4,5); 3) Num monte (4,8). Algo que chamou a minha atenção: as pedras nas mãos do capiroto não lembram dois pombinhos? Isso sem falar na postura de Jesus, que parece ensaiar um golpe de artes marciais.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

A BÍBLIA PELAS JANELAS


No Gênesis, Noé abriu a janela, soltou um pássaro, alimentou a esperança por dias melhores (Gn 8,6). Abimeleque, rei de Gerar, viu da janela Isaque amando Rebeca (26,8). Raabe livrou na janela dois espias da morte (Js 2,15). A mãe de Síssera, pela janela, pressentiu o fim de seu filho em combate (Jz 5,28). Mical desprezou da janela o Davi seminu dançando em êxtase (2Sm 6,16). Jezabel, com olhos pintados e cabeça enfeitada, olhou da janela o chão sobre o qual expirou (2Rs 9,30). Jeremias viu a morte escalando janelas para devorar os filhos de seu povo (Jr 9,21).

Na Bíblia Hebraica, as janelas anunciam esperança, paixão, tristeza, desprezo, arrogância, morte.


Jones F. Mendonça

 

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

SOBRE POESIAS CONCRETAS

Uma tradução bem literal de Lamentações 2,1, com toda a concretude da poesia hebraica, fica assim:

    Esgotam-se as lágrimas dos meus olhos
    meu intestino ferve,
    derrama-se pela terra o meu fígado.

Na Bíblia Versão Transformadora os “olhos” desaparecem, o “intestino” dá lugar ao “coração” e o “fígado” ao “espírito”. Veja:

    Chorei até que não tivesse mais lágrimas;
    meu coração está aflito.
    Meu espírito se derrama de angústia.

O tradutor troca as palavras para que o texto se torne mais claro ao leitor. Não implico com essa adequação. Mas que fica feio, ah, fica.



Jones F. Mendonça

QUANDO A FALA ATINGE AS ENTRANHAS

“Falar ao coração” (וידבר על לב), no hebraico do Antigo Testamento, é falar às entranhas, ou seja, ao íntimo. A expressão indica uma fala que convence, que agrada, que seduz. Siquém “fala ao coração” de Diná, mulher por quem se afeiçoou, em Gn 34,3. José “fala ao coração” de seus irmãos, convencendo-os de que não lhes fará mal, em Gn 50,21. Em Jz 19,3 um homem “fala ao coração” de sua concubina a fim de convencê-la a retornar aos seus braços. Isaías “fala ao coração” de Jerusalém, anunciando o fim do exílio, em Is 40,2. Em Oseias o “falar ao coração” se relaciona ao encontro divino com Israel no deserto:

“Por isso, eis que vou, eu mesmo, seduzi-la,
conduzi-la ao deserto,e falar-lhe ao coração” (Os 2,14).



Jones F. Mendonça

DELACROIX E OS ANJOS DO GETSÊMANI


Eugène Delacroix, um dos gigantes da pintura francesa, exibe nesta tela Jesus no Monte das Oliveiras. Embora tenha por título “A agonia do jardim” (1824-26), uma vez que os evangelhos situam no Getsêmani os últimos momentos do Nazareno  antes de ser preso e crucificado, seus gestos expressam coragem. Jesus parece dizer aos anjos: “deixem-me, preciso fazer isso sozinho”. 



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

TINTORETTO E A ÚLTIMA CEIA


Esta tela de Tintoretto (A última ceia: 1592-94) possui características únicas. O jogo de sombras é feito a partir de dois pontos de luz: a auréola de Jesus e a luminária à esquerda. Observe que ele representa a cena numa perspectiva diagonal totalmente inédita, que é enriquecida com personagens complementares em primeiro plano. É mais ou menos como se um fotógrafo retratasse um casamento e desse destaque aos garçons. O artista – também conhecido como Il furioso – é um dos grandes nomes do maneirismo, movimento artístico que expressa novos valores estéticos, distanciando-se dos cânones do período renascentista.

 

Jones F. Mendonça