quarta-feira, 17 de agosto de 2022

DAS TRADUÇÕES

1. No hebraico bíblico – escrito apenas com consoantes – a partícula את pode ser lida como “at” (pronome pessoal “tu”, no feminino, mas também excepcionalmente no masculino), “et” (preposição “como”) ou simplesmente como indicativo do objeto direto (sem tradução). Você pode estar se perguntando: “como os judeus conseguiam ler e interpretar corretamente os versos sagrados?”. Bem, a vocalização do texto, e, portanto, também sua tradução, foi preservada pela tradição, até que surgiram os massoretas.

2. Os massorestas eram escribas judeus cuja vida era dedicada à preservação das Escrituras. No século VII d.C. estes estudiosos inseriram sinais vocálicos ao lado e acima das consoantes (uma série de pontos e traços) com a finalidade de preservar a pronúncia correta do texto, de forma que ela não se perdesse. Ocorre que quando comparamos as traduções do texto hebraico feitas para outros idiomas (como o grego e o siríaco), notamos que nem sempre os tradutores judeus estavam de acordo em relação ao modo como o texto deveria ser lido e traduzido.

3. Essa característica do texto hebraico gerou tantos problemas que é até difícil de explicar. Quer saber o lado bom disso? Os tradutores têm um passatempo que nunca se esgota. E é de graça 😀


Jones F. Mendonça

terça-feira, 9 de agosto de 2022

JEREMIAS E O DEUS QUE CHORA

1. Por razões equivocadas e injustas o profeta Jeremias ficou conhecido como “profeta chorão”. Há duas razões principais para a origem deste rótulo: a versão grega das Lamentações (Septuaginta) atribui a autoria do livro a Jeremias, que é apresentado sentado e chorando enquanto compõe os belíssimos poemas estruturados em cinco partes. A segunda razão vem do livro das Crônicas, obra que apresenta Jeremias como autor de um lamento sobre a morte de Josias, rei que capitulou após ser atingido por arqueiros egípcios liderados pelo Faraó Neco (2Cr 35,25). É importante destacar que Davi também é apresentado como compositor de lamentos fúnebres (2Sm 1,17-27). Seja como for, o apelido de “profeta chorão” atribuído a Jeremias acabou consagrado pela tradição.

2. Mas um leitor atento perceberá que Jeremias praticamente não chora no livro que leva seu nome. Vale destacar ainda que Davi (5 vezes) e José (8 vezes) são muitas vezes apresentados chorando e nem por isso ficaram conhecidos respectivamente como “o rei chorão” e “o filho chorão de Jacó”. Na verdade, o livro do profeta Jeremias enfatiza muito mais o choro de Deus que o do profeta*. Um exemplo pode ser encontrado em Jr 31,20. Ao falar sobre Efraim (Israel), “seu filho querido”, Deus diz assim: “Por isso murmuram minhas entranhas por ele, afetadas por intenso amor”. Muitos textos sugerem que o choro era percebido como uma espécie de transbordamento das estranhas. Delas vinham as lágrimas, manifestação concreta do esgotamento e desfalecimento do corpo.

3. De modo geral a imagem de Deus chorando não agrada os teólogos mais ortodoxos (sobretudo calvinistas), que veem essa expressão de dor como fraqueza, como indicação de mudança de humor, de instabilidade. A aceitação do choro divino afetaria gravemente um dos principais "atributos naturais de Deus": a imutabilidade (ah, esse deus impassível dos filósofos...). Bem, Nietzsche dizia que só poderia acreditar em um Deus que soubesse dançar. Parafraseando o filósofo eu diria que só faz sentido acreditar em um Deus que é capaz de chorar.

*Aos interessados no choro de Deus no livro do profeta Jeremias, sugiro a leitura do artigo “The Tears of God in the Book of Jeremiah”, escrito por David A. Bosworth e publicado na Revista Biblica (Vol. 94, nº. 1 (2013), pp. 24-46).



Jones F. Mendonça

terça-feira, 2 de agosto de 2022

AS ENTRANHAS DO JUSTO SOFREDOR

1. Traduzido literalmente, o Sl 26,2 fica desse jeito: “examina-me, Senhor, coloca-me à prova, depura meu coração e meus rins”. A palavra hebraica traduzida por “depura” é tzaraf (צרף), utilizada para indicar a atividade do ourives na purificação de metais preciosos. Mas por que o salmista pede para que seu coração e seus rins sejam “depurados/purificados”?

2. No hebraico, os rins, o coração, o fígado, o ventre aparecem como metáforas para tudo aquilo que está oculto, como pensamentos, intenções, desejos, etc. Ao pedir para que seu “coração” e seus “rins” sejam depurados, o salmista está dizendo algo do tipo: “penetra nas minhas entranhas, no subsolo dos meus pensamentos”.

3. Como Jó, ele se declara inocente, distante do caminho dos perversos: “quanto a mim, eu ando na minha integridade” (v. 11). Assim, pede para que suas intenções sejam colocadas à prova e a justiça lhe seja feita: “faze-me justiça, ó Senhor...” (v. 1,1). O tema do servo que sofre sem razão aparente é algo recorrente na religiosidade do Antigo Israel. Surge nos Salmos, em , em Isaías, em Jeremias e na figura do Cristo que padece no Gólgota.



Jones F. Mendonça