sexta-feira, 29 de abril de 2022

CÂNTICO DOS CÂNTICOS: ENTRE BEIJOS E SEIOS

1. O texto hebraico do Antigo Testamento não continha vogais, apenas consoantes. As vogais só foram inseridas no texto no século VII d.C. com a finalidade de ajudar na leitura. Essa característica permitiu que o texto fosse entendido de formas diferentes pelos leitores/tradutores. Um exemplo:
teus amores são melhores do que o vinho (Ct 1,2).
2. Acontece que “teus amores” (דדיך) em hebraico é graficamente igual a “teus seios” (דדיך, cf. Ez 23,21). Assim, o tradutor fica em dúvida se deve traduzir a parte b do v. 2 por “teus amores [dele] são melhores do que o vinho” ou “teus seios [dele] são melhores do que o vinho”.

3. De modo geral nossas Bíblias optam por “teus amores” (seguem o texto vocalizado do século VII d.C.). Mas os judeus responsáveis pela tradução do texto hebraico para o grego (Septuaginta) entenderam que a tradução correta é “teus seios” (μαστοι, "mastoi").

4. Eleazar de Worms, um rabino da era medieval, interpretou a palavra hebraica como "seios" e saiu-se com essa: "os 'seios' referem-se a Moisés e Arão que amamentaram o povo de Israel com a Torá". Sei...

5. Quer saber a minha opinião? O escritor fazia isso de propósito. O Cântico dos Cânticos adora duplos sentidos...




Jones F. Mendonça

segunda-feira, 25 de abril de 2022

"MACUMBA" E COMUNISMO

Leio jornais da década de 40 em busca de comentários depreciativos dirigidos às religiões de matriz africana. Em 6 de abril de 1941 um colunista do Jornal do Brasil publicou texto anunciando a prisão de um “macumbeiro” que supostamente estava fundando uma seita “espírito-nudista”. No final do texto o colunista faz uma denúncia curiosa: “os agentes de Moscou encontram nos centros do baixo espiritismo a possibilidade de difundir suas ideias, atribuindo a inspiração às ‘almas do outro mundo’”. E conclui: “nos ‘terreiros’ começa a dominar Stalin”. O título da matéria: “Macumba e Comunismo”😃



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 18 de abril de 2022

LUTERO E AS ÁGUAS NA ESTRUTURA COSMOGÔNICA DOS HEBREUS

1. Neste vídeo, publicado no canal “A Tenta do Necromante”, o professor Osvaldo Luiz Ribeiro fala sobre a semelhança entre as palavras hebraicas “mayim” (água/águas) e “shamaiym” (céu/céus). Ambas têm terminação plural dual, usada para indicar elementos que aparecem em pares, como mãos e orelhas. Mas por que "céus" e "águas" teriam terminação dual?

2. Na percepção do professor Osvaldo, a semelhança entre as palavras e seu caráter dual tem relação com o imaginário dos hebreus quanto à estrutura cosmogônica: as “águas de baixo” (mayim) e as “águas de cima” (shamayim). Os céus, nesse sentido, seriam percebidos como águas superiores. 

3. O professor Osvaldo chegou a essa conclusão por intuição, por seu contato com o hebraico e pela compreensão que tem em relação ao modo como os hebreus enxergavam o mundo. E eu acho que ele está certíssimo. Ele não diz no vídeo (e eu não sei se sabe disso), mas Lutero tinha uma opinião muito parecida, certamente pela influência de gramáticos/exegetas judeus medievais:
Os hebreus derivam muito apropriadamente o termo shamaim, o nome dos céus, da palavra maim, que significa “águas”. Pois a letra shin muitas vezes é empregada em palavras compostas para designar a relação [de uma coisa com a outra], de modo que shamaim é algo aquoso ou que provém da água. Isso também se evidencia pela sua cor; e a experiência ensina que o ar é úmido por natureza (Lutero, Preleções ao Gn 1,6).
4. Lutero diz muita bobagem em suas Preleções ao Gênesis. Mas aqui ele acerta. Caso queira ler algumas de suas bobagens, veja aqui, aqui e aqui.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 15 de abril de 2022

A PÁSCOA EM CINCO PONTOS

1. Há ao menos três hipóteses para a origem da palavra “Páscoa” (do hebraico “pessah”). A primeira sugere que deriva do verbo hebraico “passah” (פסח), que significa “saltar”. Isso porque Ex 12,13 diz que o Senhor “saltará” as portas sinalizadas com o sangue do cordeiro. Esta é a hipótese tradicional.

2. Mas há quem pense que o ritual de marcação dos umbrais das portas tenha uma origem mais antiga e que a palavra “pessah” deriva do acádio pašâhu (acalmar, apaziguar). O ritual (apotropaico), praticado por pastores nômades, visava apaziguar a ira do “Destruidor” (Ex 12,13).

3. Há ainda quem defenda que o termo “pessah” seja a transcrição de uma palavra egípcia que significa “golpe”, uma referência a décima praga: em Ex 11,1 é dito que o Senhor desferirá “ainda mais um golpe sobre Faraó”.

4. Coincidentemente o hebraico “pessah” se conecta foneticamente ao grego “pascho” (πασχω) que significa "sofrer" (cf. 1Pe 2,21), por isso os primeiros cristãos passaram a usar o termo “Páscoa” para se referir à sexta-feira da Paixão, e não ao domingo da ressurreição.

5. Fica a dica: religião é também ressignificação.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 8 de abril de 2022

AMÓS E OS "DIREITOS HUMANOS"

1. O livro do profeta Amós, atribuído a um sujeito que não era “nem profeta, nem filho de profeta”, expõe logo no início do livro que leva seu nome uma série de oráculos condenatórios contra oito nações vizinhas: Damasco, Gaza, Tiro, Amon, Moab, Edom, Judá e Israel. Com o perdão do anacronismo, poderíamos dizer que boa parte das denúncias presentes nos capítulos 1 e 2 aparecem relacionadas a “violações dos direitos humanos”.

2. Os arameus de Damasco são criticados por “devastarem a terra”; os filisteus de Gaza por “deportarem populações”; os fenícios de Tiro e o povo de Edom por “violarem pactos” entre irmãos. Os amonitas são duramente censurados por terem ferido grávidas com a morte; os moabitas por profanarem cadáveres e o povo de Judá por desprezar os preceitos divinos. Amós – como Jeremias – não poupa nem o seu próprio povo (ele era natural de Tecoa, ao sul de Jerusalém).

3. A última nação a ser condenada é o reino de Israel, ou “Israel do Norte”, também referenciada como “casa de Jacó” ou “casa de Isaac”. São onze versos destinados a esta nação. Muito mais do que a média. Trata-se de um crime terrível. Suas críticas são formuladas poeticamente com muita maestria, força e clareza:

        "Eles vendem o justo por prata
        e o indigente por um par de sandálias".

        "Esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos
        e tornam torto o caminho dos pobres".

4. Agostinho, no século V, teve a infelicidade de classificar esses livros mais curtos como "profetas menores". Muita gente – ainda mais infeliz! – imagina que são "menores" porque são menos importantes. Mas é um livro arretado. Atual. Forte. Sempre Necessário.



Jones F. Mendonça

AMÓS NO MAPA

O vídeo exibe a localização das nações que são objeto de oito oráculos do profeta Amós, presentes nos capítulos 1 e 2 do livro. Ao final também são mostradas as localizações de três cidades mencionadas no livro: 1) Técua (20 Km ao sul de Jerusalém e local de nascimento do profeta), 2) Betel (local onde ficava o santuário do rei Jeroboão II e era controlado pelo sacerdote Amazias), e 3) Basã, referência a uma região localizada na Transjordânia, conhecida por suas pastagens e seu gado bem alimentado (cf. Dt 33,14).



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 6 de abril de 2022

O ARTEFATO DO MONTE EBAL [ATUALIZAÇÕES]

1. Em 2019, peneirando resíduos de entulho de uma escavação feita na década de 80 no Monte Ebal (território sob controle civil palestino e militar israelense, na Cisjordânia), um grupo de arqueólogos alegou ter descoberto um pequeno artefato de chumbo dobrado, com inscrições visíveis pelo lado de fora, medindo 4cm2. O objeto foi enviado à Academia de Ciências da República Tcheca e submetido a uma tomografia computadorizada. O objetivo: verificar o que havia em seu interior.

2. Em uma coletiva de imprensa realizada em 24 de março de 2022 foi anunciado que a equipe conseguiu visualizar 40 consoantes do alfabeto proto-cananeu formando uma inscrição contendo a palavra YHW, nome da divindade adorada no Antigo Israel. O artefato foi datado para o século XIII/XIV a.C. Até o momento o modo como a suposta descoberta foi anunciada têm sido criticado por duas figuras de peso: Israel Finkelstein (arqueólogo) e Christopher Rollston (epigrafista).

3. De acordo com o Haaretz, alguns membros da equipe de arqueólogos estão dizendo que este é o mais antigo registro de uma inscrição em hebraico. Para o prof. Gershon Galil, um dos responsáveis pela divulgação da descoberta, “Esta inscrição não será menos importante que Merneptah [a Estela de Merneptah no Egito, também datada do século XIII a.C., onde o nome Israel aparece pela primeira vez], se não mais” (tudo isso parece bastante exagerado...). As declarações do Dr Scott Stripling, diretor das escavações, são ainda mais problemáticas. 

4. O anúncio da descoberta extrapolou os limites da discussão acadêmica. Há suspeitas de violação do direito internacional e de leis locais, uma vez que o objeto foi encontrado em território palestino por um grupo privado e enviado para outro país para ser analisado. Ainda de acordo com o Haaretz, por trás do projeto há um grupo de cristãos interessados em validar interpretações fundamentalistas de profecias messiânicas.

5. Acabo de ler, no Paleojudaica, que também foi divulgada a descoberta de uma haste de ferro supostamente utilizada como instrumento para riscar o objeto de chumbo. A imagem da haste não foi exibida ao público, nem como foram capazes de associar a haste com o objeto de chumbo, uma vez que ambos foram encontrados em resíduos de escavações feitas na década de 80. Está tudo muito estranho.😳


Jones F. Mendonça