sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

GUARATIBA ESTÁ QUEIMANDO, O MUNDO ESTÁ FERVENDO

Praia da  Marambaia, Rio de Janeiro
Praia da Marambaia, Guaratiba, RJ

1. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em fevereiro de 2022, jornais “ocidentais” e os “não ocidentais” divulgavam informações bem diferentes a respeito do andamento do conflito. Em nome da verdade, teve até boicote aos canais de notícias russos, como o Russia Today e o Sputnik, bloqueados no Facebook e no YouTube por supostamente divulgarem informações falsas.

2. Enquanto isso, nos jornais ditos “ocidentais”, comprometidos com “a verdade”, líamos coisas como “Putim sofre com um câncer em estágio terminal, dizem fontes”, ou “soldados russos sequer possuem botas para o combate”. Falava-se ainda a respeito de falta de munição, incompetência de generais, armas obsoletas, canibalismo russo no campo de guerra e outras bobagens.

3. Na prática todos sabemos que a Rússia está vencendo a guerra. As sanções não funcionaram. A ajuda militar oferecida pelos membros da OTAN foi insuficiente. A ordem de prisão emitida pelo TPI contra Putin ficou só no papel. O confisco de ativos russos não surtiu o efeito desejado. Nada parece deter o líder russo em seu obstinado avanço em direção à Ucrânia (e à Europa?).

4. O eixo que conhecemos como “Ocidente”, formado pela Europa Ocidental e pelos Estados Unidos, parece desorientado. Sem Ângela Merkel a Europa perdeu força e lucidez. Os Estados Unidos precisam escolher entre um Biden patético e um Trump canalha. No meio de toda essa balbúrdia, ainda temos o conflito entre Israel x Hamas que a cada dia ganha novos atores.

5. Acha que paramos por aí? Boa parte dos analistas acredita que mais cedo ou mais tarde haverá guerra entre os Estados Unidos e a China pela disputa por Taiwan. A vitória de Lai Ching-te nas urnas – um candidato pró-independência – tornou esse conflito mais provável e mais iminente. Fora as tensões políticas, ainda sofremos com os efeitos das mudanças climáticas (em Guaratiba, onde trabalho, a sensação térmica é de 60 graus!).

6. A gente não precisa ser tão pessimista (como o chato do Pondé), mas com um cenário como este – o do mundo, não o da foto de Guaratiba – dá pra ser otimista?


Jones F. Mendonça

DOUGLAS WILSON E A ESCRAVIDÃO NO SUL DOS EUA


1. Ganhou grande repercussão na mídia o convite feito ao teólogo reformado Douglas Wilson para participar como palestrante em um evento organizado pela Consciência Cristã. O motivo do estranhamento: Douglas Wilson seria um defensor da escravidão, desde que seja feita "de acordo com padrões bíblicos".

2. Como não tenho o costume de acolher acriticamente informações vindas de segunda mão, fui consultar "Southern Slavery: as it was" (Escravidão no Sul: como era"), escrita pelo referido teólogo. Na página 8 você lê o seguinte: "A verdade é que a escravatura no Sul está sujeita a críticas porque não seguiu o padrão bíblico em todos os pontos”.

3. Parei por aí...


Jones F. Mendonça

"CONTRA A TEOLOGIA LIBERAL", DE ROGER OLSON


1. Em dezembro do ano passado foi publicado em português “Contra a teologia liberal”, escrito por Roger Olson, teólogo batista conhecido por publicações relacionadas à história da teologia cristã. Não julgue o livro pelo título [apologético], ou pela editora [pobre em produções teológicas mais densas]. Nem de longe as críticas de Olson à teologia liberal lembram os ataques acalorados, imprecisos e intelectualmente desonestos feitos por apologetas despraparados que se multiplicam em canais do YouTube. 

2. Embora trate com respeito amigos que simpatizam com a teologia liberal, Olson considera problemáticos alguns pontos defendidos por teólogos liberais mais radicais, tais como a negação da inspiração das Escrituras, da ressurreição física de Jesus ou da realidade histórica de seus milagres. Assim, defende que os liberais não devem ser considerados verdadeiros cristãos, uma vez que rompem com dogmas formulados nos primeiros séculos e aceitos tanto por católicos como protestantes. Faz uma avaliação [quase] estritamente técnica.

3. O autor reconhece neles verdadeira piedade, verdadeiro entusiasmo religioso, além das mais elevadas intenções. Mas enfatiza que o liberalismo teológico se distanciou da ortodoxia cristã tanto quanto o cristianismo se distanciou do judaísmo. Enfim, fez nascer uma religião nova, diferente, distinta do seu tronco de origem. Olson faz uma ressalva importante logo no início do livro: “não seja tonto, liberalismo teológico é uma coisa, progressismo teológico é outra totalmente diferente”. É claro que ele não usa essas palavras, mas eu uso. E repito: “não seja tonto”.

4. Além dos livros assinados por Olson, duas obras de peso sobre a teologia do século XX (ao contrário de Olson, meramente descritivas, evitam fazer juízo de valor) são "Deus na filosofia do século XX" e "Teologia do século XX", escritos por Rosino Gibellini.



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

A APOSTASIA, O AMOR E A DOR EM AGOSTINHO DE HIPONA


1. Um provérbio popular muito repetido no universo evangélico é “se [a conversão religiosa] não for pelo amor, será pela dor”. Mas de onde veio esta sentença? Minha hipótese é que nasceu a partir da leitura um tanto quanto livre do livro bíblico de Provérbios feita por Agostinho de Hipona, teólogo e filósofo do V século.

2. Atormentado pela insubmissão dos donatistas, grupo cristão cujas doutrinas foram consideradas cismáticas e heréticas, Agostinho entendeu que era preciso tomar medidas mais duras a fim de preservar a comunhão e o respeito às lei imperiais. Em uma carta endereçada a Bonifácio, o teólogo africano saiu-se com essa:
3. A inspiração vem de Pv 23,14: “Quanto a ti, deves bater-lhe com a vara, para salvar-lhe a vida do inferno”[1]. (Na vulgata: tu virga percuties eum et animam eius de inferno liberabis). Mas na verdade o texto hebraico não fala de “inferno”, nem tem como objetivo dirigir-se àqueles que se distanciaram da “reta doutrina”.

4. O texto de provérbios é dirigido aos “meninos” (na’ar), instruídos na arte da sabedoria, dos bons modos e dos bons pensamentos. A "vara" era um instrumento antigo de educação. A violência como forma de disciplina também era praticada pelos mestres da Babilônia, que recorriam ao método com a finalidade de corrigir seus discípulos.

Nota: [1] No texto hebraico “sheol” é mundo dos mortos e não inferno. A mensagem do provérbio é clara: “a vara não mata” (v. 13), mas, pelo contrário, “livra a néfesh (=vida) do sheol” (=da morte, cf. v. 14)”. Trocando em miúdos: “a vara da disciplina fere a carne, mas livra da morte"


Jones F. Mendonça

domingo, 14 de janeiro de 2024

DEUS LÍQUIDO


Arte: Robert Crumb

1. Por mais de mil anos os dogmas cristãos mantiveram-se sob o controle da Igreja com grilhões de ferro. Mas desde que Lutero ganhou projeção ao questionar a autoridade do Papa e da tradição em textos produzidos a partir da segunda década do século XVI, os dogmas cristãos formam enfraquecendo em proveito de crenças mais pessoais, “à la carte”. A reforma herdou o individualismo humanista renascentista.

2. É verdade que os dogmas mais elementares, como a trindade, o nascimento virginal, a ressurreição e a parousia de Cristo ainda são compartilhados pela esmagadora maioria dos diversos segmentos cristãos em atividade (ao menos no papel). Mas todas essas crenças, outrora percebidas como fundamentais, têm sido realmente relevantes nos sermões e na piedade individual e coletiva?

3. A cada alvorada, a cada gota de orvalho que seca sob os primeiros raios de sol, uma nova igreja cristã dá seus primeiros sinais de vida. Seus discursos são muitas vezes contraditórios, assim como seus padrões de moral, suas liturgias, suas crenças e até suas posições políticas. Há o evangelho coach, da prosperidade, da confissão positiva, da reta doutrina, da esquerda, da direita, da ação social, do êxtase, da cura, da ladainha sem fim.

4. Em um mundo que se dissolve em meio a tantas crenças como caramujo ao sal, cientistas da religião têm refletido a respeito do papel desempenhado pela religião na sociedade contemporânea. Como ela dialoga com a política, com a arte, com as relações de consumo, com a diversidade cultural, com as demais religiões? Como dialogará com a inteligência artificial, com um eventual prolongamento extraordinário da vida humana?

5. Não há respostas fáceis ou definitivas. Certo mesmo é que atualmente a religião ainda está viva nos monumentos, nos nomes de batismo, no discurso político, nos ritos fúnebres, na conversa barata da esquina, no tropel ofegante dos pregadores televisivos. Mas todas essas manifestações expressam a face de um mesmo Deus? Nietzsche estava errado: Deus não morreu. Deus se dissolveu.



Jones F. Mendonça