quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

NEGACIONISMOS

Em maio de 2020, quando a pandemia começava a empurrar para a cova grande número de vítimas, a “Coalizão pelo Evangelho” (TGC Brasil) divulgou um manifesto destacando: 1) Os negativos e “inevitáveis efeitos colaterais sociais” do isolamento social; 2) O papel da mídia, que “claramente não goza da credibilidade que outrora desfrutava” e, finalmente, 3) O “endeusamento da ciência”. Deveria ter criticado, ao contrário: 1) Os efeitos perigosos das aglomerações; 2) A desinformação que se reproduzia como piolho nas mídias não oficiais; 3) O negacionismo da ciência. Essa galera do “Soli Deo gloria”, como sempre, coando mosquitos e engolindo camelos.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

O CÉU DE AGOSTINHO

1. Em “A cidade de Deus”[1], obra do início do V século escrita por Agostinho de Hipona, uma série de razões são apresentadas para defender a reprodução como principal finalidade da relação matrimonial. O catolicismo preserva esse costume até hoje, por isso proíbe métodos contraceptivos.

2. Um dos argumentos de Agostinho baseia-se no conceito jurídico romano do liberum quaesendum causa, ou seja, no costume romano, oriundo da Lei das Doze Tábuas, segundo o qual a principal função da relação matrimonial é contrair filhos.

3. Além do direito romano, o teólogo africano também busca caracterizar as paixões sexuais como algo degradante e vergonhoso. Assim, ele apresenta dois argumentos em forma de pergunta.

4. O primeiro: Embora a geração de filhos seja algo lícito e honesto, o casal não busca um quarto afastado para concretizá-lo? O segundo: As carícias sexuais não são feitas longe dos paraninfos e familiares?

5. Em sua conclusão Agostinho cita Cícero, famoso orador romano: “todos os atos legítimos pretendem realizar-se em plena luz”. Ele acrescenta que seria muito bom se pudéssemos gerar filhos sem a libido, sem “as emoções inoportunas”.

6. Na cabeça de Agostinho a relação sexual ideal seria aquela realizada sem as paixões, de forma que os “órgãos criados para essa função” se submetessem ao espírito, como os demais membros do corpo, como os pés, as mãos e os dedos.

7. Chato esse mundo de Agostinho, não?

[1] Livro 2, XVI ao XVIII (veja também o XXIV).
* Agostinho geralmente é classificado como neoplatônico, mas no campo da moral boa parte da sua influência é estoica.


Jones F. Mendonça

sábado, 25 de dezembro de 2021

LUTERO E A TEOLOGIA LIBERAL (PARTE II)

1. O termo “teologia liberal” tem aparecido com certa frequência associado ao discurso cristão progressista de forma bastante equivocada. A teologia liberal clássica é um fenômeno de natureza bem distinta. Nascida no ambiente acadêmico alemão do século XIX, suas principais características podem ser resumidas em cinco pontos (aqui sigo Grenz e Olson). Alguns deles têm os pés fincados na Reforma. Vejamos.

2. A primeira característica – influência do iluminismo – é a tentativa de reconstruir a fé à luz do conhecimento moderno, por isso o liberalismo teológico também tem sido chamado de “modernismo teológico”. A segunda, herança dos reformadores (e do humanismo), é o espírito crítico e certa a rejeição à autoridade da tradição. Estavam decididos, como Lutero, a romper com as crenças tradicionais quando isso parecia correto e necessário.

3. A terceira é a ênfase na dimensão prática do cristianismo em detrimento das especulações teológicas a respeito da natureza de Deus. Em quarto lugar aparece uma tendência que também foi buscada por Lutero: o cânon dentro do cânon. Mas se para Lutero a essência das Escrituras é o Cristo Divino-Salvador (como enfatizado por Paulo), para os liberais é o Cristo ético, completamente despido de sua dimensão sobrenatural.

4. A última característica da teologia liberal é o deslocamento da transcendência para a imanência, outra influência marcante do iluminismo. A “filosofia moral” de Kant, a “filosofia intelectual” de Hegel e a “filosofia intuitiva” de Schleiermacher formaram o tripé, no século XIX, sobre o qual a teologia liberal nasceu. No início do século XX, teólogos como Barth, Brunner e Bultmann propuseram, cada qual a seu modo, um retorno à transcendência.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

LUTERO E A TEOLOGIA LIBERAL

1. No final da Idade Média, a última moda entre teólogos escolásticos como Tomás de Aquino era a busca pela exposição das verdades divinas nos termos da filosofia de Aristóteles. Lutero achava tudo isso pura perda de tempo. Em sua tese 49 “Contra os Escolásticos”, divulgada em setembro de 1517, o reformador declarou: “Se uma fórmula silogística subsistisse em questões divinas, o artigo sobre a Trindade seria conhecido, em vez de ser crido”. Lutero tinha um discurso um tanto quanto fideísta, como o de Tertuliano.

2. Bem, não demorou muito e os teólogos protestantes ressuscitaram o gosto medieval pela filosofia aristotélica. Entre os séculos XVI e XVII nasceu a chamada “escolástica protestante”, cujos principais expoentes foram Johann Gerhard, David Hollaz e Johannes Quenstedt. A linguagem sofisticada era usada e abusada pelos teólogos para falar sobre o nascimento de Cristo: Maria seria a “causa materialis”, o Espírito Santo, a “causa efficiens” e blá, blá, blá. É bem provável que Lutero ficasse horrorizado.

3. No século XIX os chamados “teólogos liberais” reduziram o cristianismo aos limites da razão. Não se contentaram em demonstrar que as verdades reveladas são compatíveis com a razão, como gostavam os escolásticos (e os neocalvinistas). Queriam submeter a Revelação à razão. Os teólogos liberais também levaram às últimas consequências o livre exame luterano e reivindicavam total autonomia para interpretar as Escrituras. Queriam pensar teologicamente sem as amarras dogmáticas.

4. Não há, no século XXI, qualquer movimento de matriz protestante com legitimidade para reivindicar o papel de verdadeiro herdeiro da reforma. Hoje Lutero seria excomungado por propor uma mudança no cânon, algo que seria enxergado como “atualização das Escrituras”. Para quem não sabe, o reformador atribuiu aos livros de 2 Pedro, 1 e 2 João, Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse um valor menor de inspiração. Tiago foi chamado de “epístola de palha” e Judas de “epístola desnecessária”.

5. O reformador, como qualquer um, fazia leitura seletiva das Escrituras. Seu critério era o seguinte: “Tudo aquilo que Cristo não prega não é apostólico, mesmo que seja escrito por São Pedro ou São Paulo... Tudo aquilo que Cristo prega seria apostólico mesmo que procedesse de Judas, Pilatos ou Herodes”[1]. Lutero tinha muitos defeitos, mas não era dissimulado. Assumia o que fazia. Hoje seria excomungado pela Santíssima Ordem dos Pastores. A acusação: negar a doutrina da inspiração das Escrituras.

[1] WA, 7, 386 (Prefácio a Tiago e Judas, 1546).


Jones F. Mendonça

 

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

ORTODOXIAS

Em julho de 1952 o periódico presbiteriano “O Puritano” expôs uma orientação aos fiéis a respeito a seguinte questão: “pode o crente ser jogador de futebol?”. Após explicar que a prática desportiva é útil para o corpo, faz uma ressalva: “cremos, todavia, que a prática do futebol como profissão, como emprego ou meio de vida, especialmente no Brasil, não serve para o crente, já por obrigá-lo, ao crente, a quebra do dia do Senhor (o Domingo)”. A atual Declaração Doutrinária dos Batistas segue na mesma linha: “Nesse dia [o Domingo] os cristãos devem abster-se de todo trabalho secular, excetuando aquele que seja imprescindível e indispensável à vida da comunidade. Devem também abster-se de recreações que desviem a atenção das atividades espirituais”.

A ortodoxia simula passos firmes, mas tem sapatos de manteiga.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

DE ANIMA

1. Em nosso idioma, quando desejamos expressar tristeza, podemos empregar termos visuais como “prostrado” (alusão ao corpo encurvado), ou mais abstratos, como “desanimado” (com o ânimo, com o vigor enfraquecido). O hebraico tem grande predileção por termos visuais. Bons exemplos são encontrados nos textos poéticos.

2. No Salmo 42,5, por exemplo, lemos assim: “por que está INCLINADA (שחח) minha GARGANTA (נפש)?”, ou seja, “por que está ABATIDO meu VIGOR/minha VIDA?”. A garganta aparece associada ao vigor, à vida, porque é por ela que passa o alimento, o ar que respiramos, o grito de dor, o brado de alegria.

3. Até mesmo no grego a relação entre “vida” e “fôlego” (associado à garganta) está presente. O termo “psychḗ” (ψυχη) significa “respiração”, “fôlego”. Por desdobramento: “vida”, “alma” (aquilo que dá ânimo ao corpo). Em Lc 12,22 lemos: “não andeis ansiosos pela vossa psychḗ”, ou seja, pela vossa “vida”.

4. A ideia de que a “psychḗ” é algo que subsiste sem o corpo aparece em Mt 10,28: “Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a psychḗ” (ou seja, que não podem dar um fim definitivo à existência e impedir ressurreição do corpo). Ocorre que na maioria das vezes, psychḗ significa simplesmente “vida”. Infelizmente a maioria dos tradutores opta por traduzir o termo por “alma” de forma indiscriminada.

5. A ênfase na percepção da existência humana na terra como sendo caracterizada por uma alma imortal aprisionada a um corpo mortal tem trazido grandes consequências. A tradição cristã medieval insistiu nessa ideia, que foi repetida pelos reformadores (como Calvino), deixando grandes reflexos na relação negativa do cristianismo com a sexualidade e com o prazer.

 

Jones F. Mendonça

sábado, 18 de dezembro de 2021

A LEITURA SICRÔNICA/CANÔNICA DE ROBERT ALTER E BREVARD CHILDS


1. A partir do século XIX, com o surgimento da chamada “hipótese documental”, o livro do Gênesis passou a ser estudado de uma forma completamente diferente. Ao invés de atribuído a um único autor, o livro tal como se encontra hoje passou a ser visto como o resultado da junção de três fontes-documentos: Javista, eloísta e sacerdotal. O entrelaçamento desses documentos teria ocorrido ao longo de alguns séculos, acompanhado de intervenções redacionais.

2. Duas reações extremadas a esse tipo de abordagem têm ganhado espaço nas últimas décadas: a abordagem fundamentalista tradicional e a abordagem sincrônica-radical. A primeira reafirma a autoria única do livro e insiste em classificar os adeptos da hipótese documental como “teólogos liberais”, hereges, etc.; a segunda aceita que o Gênesis tem origem compósita, mas gosta de enfatizar a inutilidade da hipótese documental, da crítica das formas e de outras ferramentas do método histórico-crítico.

3. Um nome de peso que por vezes é inserido neste segundo grupo é o hebraísta estadunidense Robert Alter. Em “Genesis, translation and commentary”, Alter expressa sua convicção de que o primeiro livro da Bíblia, mesmo não sendo obra de um único autor, “possui uma coerência poderosa como obra literária e que essa coerência é, acima de tudo, o que precisamos abordar como leitores”.

4. Alter acrescenta – em minha opinião com grande exagero – que “alguns dos comentaristas judeus medievais costumavam ser mais úteis do que quase todos os modernos”. Ele diz isso porque os medievais faziam, como ele, leitura sincrônica, ou seja, interpretavam o texto considerando sua forma final, acabada, canônica.

5. Outro exegeta que faz esse tipo de leitura é Brevard Childs. Em “The Book of Exodus”, Childs também valoriza comentaristas clássicos como Calvino, Drusius, Rashi e Ibn Ezra, mas ao invés exaltá-los excessivamente, como Alter, declara que devem ser lidos “em sintonia com Wellhausen e Gunkel”, acadêmicos interessados, respectivamente, nas fontes literárias (crítica das fontes) e na pré-história oral dos textos (crítica das formas).

6. A proposta de Childs aparece indicada no início da introdução do livro: “a intenção deste comentário é tratar de interpretar o livro do Êxodo como escritura canônica dentro da disciplina teológica da Igreja cristã”. Embora assuma que o texto tem origem compósita, Childs insiste – como Alter – que deve ser lido e compreendido a partir de sua forma final. Alter e Childs concordam que o redator final foi capaz de harmonizar múltiplas tradições com bastante eficiência.



Jones F. Mendonça

OS TRÊS FILHOS NATIMORTOS DA REFORMA

Quando um fiel assume que determinada Declaração Doutrinária (batista, presbiteriana, metodista, etc.) é fiel às Escrituras, está, de certa forma, dizendo que ela também é inspirada e inerrante. Mais do que isso: está dizendo que a comissão que elaborou a Declaração é inerrante. Nesse sentido a Declaração Doutrinária desempenha a mesma função do Papa. Mas não é Papa de carne e osso, é Papa de tinta papel. O livre exame, o sacerdócio universal dos crentes e o Sola Scriptura são três filhos natimortos da Reforma.



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

QARATZ: “FORMAR”, “PISCAR” E “MORDER”

1. Um exemplo muito didático de como o tradutor precisa ajustar o sentido de uma palavra tomada do idioma original para que o leitor entenda o que está sendo dito, é o verbo hebraico qaratz (apertar → קרץ). Dou três exemplos. 1) Ser “apertado” do barro converteu-se, em nossas versões, em ser “formado do barro” (Jó 33,6); 2) “apertar os olhos” foi traduzido como “piscar os olhos” (Sl 35,19); 3) “apertar os lábios” como “morder os lábios” (Pv 16,30). Explico.

2. O hebraico é um idioma muito concreto e bem pobre em diversidade de palavras. Assim, o texto hebraico não fala em “ser formado”, mas em “ser apertado” do barro (apertado > moldado > formado). Considerando que carece de uma palavra equivalente ao nosso “piscar” (unir as pálpebras), o hebraico usa “apertar” os olhos. Do mesmo modo acontece com os lábios. Nós preferimos usar a expressão “morder” os lábios, mas entre os hebreus era simplesmente “apertar” os lábios.

3. Trocando em miúdos: um mesmo verbo hebraico, “qaratz” (apertar), é simultaneamente traduzido por “formar”, “piscar” e “morder”. Que coisa não?


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

LAMENTAÇÕES: UM PRÓLOGO, QUATRO EQUÍVOCOS

O livro bíblico de Lamentações em sua versão hebraica começa assim: “Como está solitária a cidade populosa...”. A versão grega do livro (LXX) acrescenta um prólogo, provavelmente inspirado em 2Cr 35,25: “...JEREMIAS sentou-se CHORANDO e lamentando com este lamento sobre Jerusalém”. Esse prólogo apócrifo produziu quatro equívocos:

1) o costume de se atribuir ao profeta Jeremias a autoria do livro; 2) a inclusão do livro entre os “profetas”, algo que não acontece na Bíblia Hebraica; 3) A classificação do livro como profeta “Maior”, com 5 capítulos, sendo na verdade muito menor que profetas “Menores” como Oseias, com 14 capítulos; 4) A injustiça de classificar Jeremias como “profeta chorão”.

Resumindo: 1) Há poucas razões para crer que Lamentações foi escrito por Jeremias; 2) O livro não deveria estar entre os “profetas”, mas entre os “poéticos”; 3) Não pertencendo ao gênero profético e com apenas 5 capítulos, não faz nenhum sentido tê-lo entre os “Profetas Maiores”; 4) Definir Jeremias como “chorão” seria mais ou menos como tratar Isaías como o “profeta peladão”, considerando o que diz Is 20,3: “Ele assim fez, andando nu e descalço”.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

HAGAG: RODOPIOS NAS FESTAS, RODOPIOS NA TORMENTA

O verbo hebraico usado para indicar “celebração” é “hagag” (חגג), cujo sentido primário é “rodopiar”. Veja: “deixa ir o meu povo, para que HAGAG (rodopiem, ou seja, dancem, festejem) para mim no deserto” (Ex 5,1). O sentido mais básico do verbo aparece no Sl 107,27: “HAGAG (rodopiaram) e cambalearam como bêbados...”. Este texto se refere a marinheiros, que em meio a uma tormenta invocam a Javé. Neste caso não é rodopio de dança, de festejo, é rodopio causado pelo movimento das águas. O hebraico é uma língua muito simples, muito concreta, muito visual.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

SOBRE AS HERESIAS

1. A palavra grega αιρεσις (hairesis), origem de “heresia”, aparece 8 vezes no Novo Testamento. Entre os gregos significava simplesmente “escolha”. Assim, o livro de Atos faz menção à “hairesis” dos saduceus (5,17) e dos fariseus (15,5), ou seja, fala da “escolha” do “partido”, da “opção religiosa” dos saduceus/fariseus.

2. “Hairesis” também foi usada para classificar os cristãos, tratados por Tertúlio – advogado dos judeus que acusavam Paulo – como seguidores da “hairesis dos nazarenos” (At 24,5). O próprio Paulo, dirigindo-se a Félix, reconhece ser seguidor do “Caminho”, chamado de “hairesis” (24,14).

3. A doutrina de Jesus foi considerada “hairesis” em relação ao legalismo farisaico. Boa parte das teses de Lutero foi considerada “hairesis” pela cúria romana. No início do século XX os pentecostais foram tratados como “hairesis” pelo protestantismo histórico. Depois vieram os neopentecostais, também vistos como “hairesis”. A bola da vez são os evangélicos progressistas.

4. Quem dá a devida atenção a essas disputas percebe que em sua base estão questões políticas e não religiosas. No caso do Brasil, o que está em curso é um projeto de poder. Projeto de silenciamento de minorias, de aniquilação da “hairesis”. Não é projeto novo, é projeto requentado cujas origens podem ser buscadas na Roma do século IV.

5. Resumindo bem: é um projeto dos infernos.



Jones F. Mendonça

sábado, 4 de dezembro de 2021

JEREMIAS, O PROFETA DA DOR

1. A palavra hebraica “patah” (פתה) pode expressar diversos sentidos na Bíblia Hebraica. Seu significado mais neutro é “convencer”, como em Pv 25,15: “o teu comprido nariz ( = tua paciência) convence o magistrado”. Em sentido negativo expressa engano: “quem enganará a Abab?” (2Cr 18,19). Quando o convencimento aparece relacionado a alguma transgressão, ganha o sentido de “aliciar”: “o homem violento alicia seu companheiro” (Pv 16,29). O termo também pode ter conotação sexual: “se o homem seduzir uma virgem...” (Ex 22,16).

2. Isso explica a diversidade de traduções para Jr 20,7: “seduziste-me, Senhor”, ou “enganaste-me, Senhor”, ou “persuadiste-me, Senhor”. Aqui Jeremias quer dizer o seguinte: “não quero fazer isso, mas a vontade divina me arrasta como um grilhão”. Ou, como ele mesmo declara no v. 9: “então isto era em meu coração como um fogo devorador, encerrado em meus ossos”. A dor profunda experimentada pelo profeta o leva a dizer: “estou cansado de suportar” (v. 9), “maldito o dia em que eu nasci!” (v. 14) e “porque ele não me matou desde o seio materno?” (v. 17).

3. Quem lê o livro com livro com atenção percebe que é injusta a classificação “profeta chorão” atribuída a Jeremias. Assim como é um equívoco ver Jó como exemplo de homem paciente. Não é paciente nem resignado.

 

Jones F. Mendonça

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

CALVINO E OS “HORRIVELMENTE EVANGÉLICOS”

Calvino, aquele reformador que ajudou a fundar uma espécie de teocracia em Genebra, chama de “decretum horribile” a decisão divina de lançar, sem remédio, à morte eterna, um punhado de gente “por seu decreto” (Institutas, Livro III, XXIII). Talvez tenha saído daí alcunha “terrivelmente evangélico”. Querem nos convencer, como Calvino, que o "horribile" é "boa nova". Mas aquilo que é "horribile" é só horrível mesmo...

As Institutas em latim, aqui.


Jones F. Mendonça

sábado, 27 de novembro de 2021

SOBRE O CRISTIANISMO IDEOLÓGICO

A justificativa apresentada pelo pastor José Wellington, presidente da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil, para abandonar sua postura apolítica e mergulhar de cabeça na política partidária foi a seguinte: “quando tivemos agora esta última reforma da nossa Carta Magna, [...] nós descobrimos que havia um pacto da religião maior no Brasil [o catolicismo] para querer se assenhorar do direito de culto religioso no país. [...] Foi quando nós acordamos [...]. E nós temos isso até como Providência Divina. Pode-se dizer que foi Deus quem não deixou” (28/02/92). Foi Deus, sei...

O abuso da religião com fins fins políticos já dura – só no cristianismo – cerca de dois mil anos. A teologia foi instrumentalizada pela ideologia imperial cristã romana, pelas Coroas portuguesa e espanhola no período colonial, por Lutero para legitimar a servidão, por Calvino para justificar a morte aos hereges, por racistas da Ku Klux Klan para por fogo em negros nos EUA, por fanáticos negacionistas no século XXI. Aí me aparece aquele líder religioso do YouTube (como o Malapacas e o NicoSolaFide) dizendo os evangélicos progressistas inventaram o cristianismo ideológico. Só sendo muito tonto...



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

O SALMO ESTOMACAL

1. No Sl 7,5 o salmista pede a proteção de Javé contra seus inimigos e declara, em sua defesa, que sempre buscou viver de forma íntegra e justa. Se isso não é verdade, ele prossegue: que “persiga o inimigo a minha garganta (נפש = néfesh) e alcance e pisoteie na terra meu estômago (חי = hay) e a minha glória no pó se estabeleça para sempre”.

2. Tanto “néfesh” (lit. “garganta”) como “hay” (lit. “estômago”) são traduzidos, na grande maioria das vezes, por “vida”. Este Salmo é um raríssimo exemplo da ocorrência dessas duas palavras com sentido absolutamente concreto. Desconheço versão bíblica que traduza assim (dá uma olhada na sua).

3. Um bom leitor perceberá que “perseguir a GARGANTA e alcançar e pisotear o ESTÔMAGO na terra” é o mesmo que aniquilar a vida. Versões como a NVI traduzem assim: “no chão me pisoteie e aniquile a minha vida”. A NVI capturou a mensagem. Mas que tirou toda a beleza da poesia hebraica, ah, tirou...

 

Jones F. Mendonça

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

A BÍBLIA HEBRAICA E AS PAIXÕES VISCERAIS

Entre os antigos hebreus, as entranhas, as vísceras, os intestinos,  eram percebidos como sede das emoções fortes. Um exemplo: o juízo dirigido a Moab, em Isaías 16,11, parece produzir em Javé uma profunda e paradoxal tristeza: “minhas entranhas (מעה) vibram (המה) por Moab como uma cítara”. Do mesmo modo se sente Jeremias: “minhas entranhas, minhas entranhas... meu coração vibra...” (4,19). Aqui o profeta chora pela destruição de Judá.

Mas nem sempre a imagem das entranhas vibrando/zunindo/gemendo indicam tristeza, dor ou agonia. Em Cantares 5,4, já despida, a amada espera seu amado no quarto. Quando ele chega, com os cabelos cheios de orvalho, deslizando seus dedos úmidos pela abertura (da porta?), as entranhas dela “vibram por ele”. Não vibram de tristeza, vibram de paixão, de fogo, de desejo. Mas o moço desaparece antes que ela lhe abra a porta. Ficou ali, com os dedos gotejando mirra.

 

Jones F. Mendonça

terça-feira, 23 de novembro de 2021

EZEQUIEL 29,18: CARECAS DE OMBROS ESFOLADOS

O profeta Ezequiel, buscando enfatizar os efeitos negativos da guerra na cidade fenícia de Tiro, atacada pelos babilônios, apresenta ao leitor o seguinte quadro: “toda cabeça ficou calva e todo ombro esfolado(29,18). Aparentemente era uma força de expressão usada para realçar o desgaste físico provocado pela guerra (ou sinal de luto dos fenícios, cf. Ez 7,18; Am 8,10; Miq 1,16). Difícil saber com certeza. A NVI tenta dar maiores explicações ao leitor: “toda cabeça FOI ESFREGADA até não ter ficar CABELO NENHUM” (eita!). A NTLH explica a cabeça e o ombro “depilados/esfolados” como resultado do peso extremo carregado pelos soldados: “CARREGARAM TANTO PESO, que os cabelos deles caíram, e os seus ombros ficaram esfolados” (como?!). 

Bem, na dúvida, o melhor é não inventar, né!



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

O “JORNALEIRO” EM ISAÍAS 16,14

1. Algumas versões bíblicas – como ALMEIDA, desde 1819! – traduzem Is 16,14 assim: “tais como os anos do jornaleiro, será aviltada a glória de Moabe”. E a gente fica pensando: vendia “O Globo” ou “Estadão”? Algo não está certo aí...

2. Ocorre que “jornaleiro” indicava, há muito tempo atrás, pessoa que recebia por jornada de trabalho, daí a escolha da palavra portuguesa “jornaleiro” (o que hoje chamaríamos de “diarista”). Assim, eu não diria que a tradução está errada, mas desatualizada.

3. O termo hebraico traduzido por “jornaleiro” é שכיר (sakiyr). Ele serve para indicar uma pessoa que luta diariamente por seu sustento. O termo reaparece em Jó 7,1. Veja: “Não está o homem condenado a trabalhos forçados aqui na terra? Não são seus dias os de um sakiyr” (assalariado, diarista, etc.)?


Jones F. Mendonça

domingo, 14 de novembro de 2021

AS DISPUTAS RELIGIOSAS E AS "FAKE NEWS" NO BRASIL REPÚBLICA

1. Leio jornais das primeiras décadas do século XX para compreender bem como se davam as disputas religiosas após a Constituição Republicana de 1891. Em julho de 1943, diante do crescimento do pentecostalismo no Brasil, um jornal católico publicou texto contra os pentecostais, classificados como “os mais ignorantes, os mais fanáticos e os mais perniciosos de todos os protestantes”. E acrescenta “suas reuniões são verdadeiras ‘macumbas’”.

2. O autor destaca que a “seita pentecostal” era repudiada até mesmo pelos demais protestantes e argumenta, por exemplo, que uma edição do Jornal Batista no início da década de 30 – classificado pelo autor como “jornal protestante-esquerdista” (!) – enumerou alguns dos frutos do pentecostalismo. Na relação aparecem: “perda de fé, amor livre, imoralidade, espiritismo, hipnotismo... loucura”, etc. A estratégia católica era destacar os efeitos nocivos do livre exame luterano, prática que a cada dia gerava mais denominações protestantes que já nasciam se digladiando.

3. Na sequência também é mencionado o jornal presbiteriano “A Mensagem”, que teria tratado o pentecostalismo como “seita turbulenta e de confusão”. Outro jornal presbiteriano, “O Puritano”, publicado em 1939, teria noticiado que num culto pentecostal, “após alguns dias de jejum e reuniões e gritarias” um membro tentou arrancar a língua de um bebê, imaginando estar possuída pela “antiga serpente”.

4. Apesar de toda a oposição católica (com boa dose de exageros, inclusive ampliando a crítica protestante aos pentecostais), o pentecostalismo veio para ficar. O jornal Diário da Noite noticiava, em 10 de março de 1969, a inauguração no largo da Pompeia, em São Paulo, daquele que seria “o átrio do maior templo evangélico do mundo”, com a presença do prefeito Faria Lima. O projeto do templo, sede da Igreja Pentecostal Brasil para Cristo, previa até mesmo a construção de um heliponto!

 

Jones F. Mendonça

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

AS PROLES E A NATUREZA DOS SENTIDOS

No dia 10 de janeiro de 1951 o jornal “O Puritano”, semanário mantido por presbiterianos, publicou a seguinte pergunta com o propósito de orientar os fiéis: “é lícito a casal crente limitar a sua prole, tendo em conta fatores econômicos, sociais e saúde?”. A resposta: “a prole é bênção que o Senhor dá aos pais, e bênção não se pode nem deve limitar”. E acrescenta: “tão nobre dever [...] deve ser cumprido santamente e nunca sob o império da natureza e dos sentidos”. Coisa rara é ver sobre a terra tamanha piedade 😃


Jones F. Mendonça

terça-feira, 9 de novembro de 2021

PROTESTANTISMO E IDEOLOGIA LIBERAL

1. Ao contrário do que aconteceu na Europa, no Brasil o catolicismo dominou soberano por três séculos, praticamente sem qualquer tipo de disputa pelo espaço religioso com o protestantismo. Assim que chegaram no país, no século XIX, os protestantes passaram a ser vistos como ameaça por “novas ideias e falsos princípios”, sobretudo pela burguesia rural, interessada na manutenção do status quo. Os protestantes eram, de maneira geral, liberais sob a perspectiva política e econômica.

2. Enquanto a burguesia latifundiária rural defendia a velha ideologia feudal ibérica, os protestantes chegavam trazendo consigo, além da religião, a nova ideologia liberal anglo-saxônica. Imaginavam, inspirados na filosofia do destino manifesto, que eram representantes do progresso econômico, político e cultural. Na prática os missionários protestantes atuavam – conscientes ou não – como agentes do imperialismo estadunidense.

3. As portas para as religiões de matriz protestante se abriram em 1810, por meio do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação celebrado entre a Coroa Portuguesa e a Inglaterra. Embora fosse um tratado comercial, o documento assegurava aos ingleses residentes no Brasil, a “perfeita liberdade de Consciência, e licença para assistirem, e celebrarem o Serviço Divino em honra do Todo Poderoso Deos” (art. XII).

4. Os locais de culto, no entanto, precisavam ter a arquitetura “semelhante às casas de habitação” e, um detalhe importante: não podiam ter sinos para anunciar as atividades religiosas. Você pode acessar e ler o documento  escrito no bom português do século XIX e digitalizado pela equipe da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin  clicando aqui.

 

 Jones F. Mendonça

 

sábado, 6 de novembro de 2021

DAVI E SALOMÃO COMO REIS NÔMADES

Erez Ben-Yosef, professor da Universidade de Tel Aviv, está sugerindo que os reinos de Davi e Salomão eram reinos... nômades! Com a tese ele pretende justificar a falta de evidências arqueológicas capazes de demonstrar que um reino unificado sob o governo dos dois reis realmente existiu. Sendo reinos nômades não faria sentido buscar evidências materiais como construções sofisticadas. Mas que tipo de evidências Ben-Yosef apresenta para apoiar sua teoria? O arqueólogo argumenta que as minas de cobre de Timna e em outros locais desérticos no Vale de Aravah revelam sinais de que foram exploradas com técnicas avançadas por uma confederação tribal nômade edomita na Idade do Ferro.  Assim, ele sugere que esse modelo de organização tribal nômade pode ter existido em Judá no período em que a Bíblia situa os governos dos reis Davi e Salomão. A tese foi muita criticada por Israel Finkelstein

Você pode se aprofundar no assunto lendo esta matéria, publicada no Haaretz ou consultando os artigos produzidos por Ben-Yosef disponíveis na Academia.edu.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

SOBRE OS “HOMOSSEXUAIS” EM 1CORÍNTIOS 6,9

1. As palavras gregas “malakos” e “arsenokoites”, presentes em 1Co 6,9, são traduzidas de diversas formas: “efeminados e sodomitas” (ARA), “effeminados e machos que se deitaõ com machos” (Almeida 1819), “homossexuais ativos e passivos” (NVI), “depravados e pessoas com costumes infames” (BJ), “adúlteros e homossexuais” (NTLH), e por aí vai. Os tradutores geralmente são bem criativos em seu repertório de palavras.

2. “Malakos” só reaparece em Mt 11,8 e Lc 7,25. Seu sentido concreto é “mole”, “macio”, “suave”, “flexível”. No caso dos Evangelhos o termo é usado para indicar um tecido “luxuoso”, “fino”, dada sua maciez. Rastreei o emprego do termo em textos fora do NT com a ajuda o Perseus Digital Library. Ele aparece em textos de Platão, Aristóteles, Heródoto e tantos outros. Sempre indica algo que é macio, mole, flexível, etc. De modo geral os tradutores pensam que o termo foi usado como metáfora para “delicado”, daí “efeminado”. Quem pode ter certeza?

3. “Arsenokoites” é um neologismo paulino. Só reaparece em 1Tm 1,10, mas o contexto não ajuda a entender seu significado com clareza. O termo resulta da junção de “arsen” (macho) + “koite” (cama). Será que indica o macho que traz para sua cama outro macho? Ou uma mulher casada que macula o seu leito com outro homem? Talvez esteja se referindo ao abuso de homens mais velhos cometidos contra homens mais jovens, prática bem atestada entre gregos e romanos. Difícil saber com certeza.

4. Confesso que não estou convencido de que o texto esteja se referindo ao que hoje chamamos de relação homoafetiva. Os exegetas da BJ são os mais honestos. Sabem que as palavras no máximo revelam um tipo de relação/comportamento considerado imoral (mas qual?), daí terem optado por termos mais genéricos como “depravados e pessoas com costumes infames”. O que passa disso é invenção, é leitura ideológica da Bíblia.

5. Bem, se você me perguntar se Paulo teria posição contrária às relações sexuais homoafetivas eu diria que sim. É o que parece dizer Rm 1,26-27. A posição de Paulo em Romanos concorda com a de outros judeus do período, como Fílon de Alexandria, que condenava relações sexuais entre homens porque via o sexo como algo exclusivamente relacionado à reprodução. Vale dizer que Fílon também condenava sexo entre um homem e uma mulher estéril, uma vez que não promovia a reprodução da espécie.

 

Jones F. Mendonça

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

A LENDA DO REI KERET

A lenda do rei Keret (ou “a epopeia de Kirta”) é um poema épico ugarítico datado para 1500-1200 a.C. A desordem no reino permite o crescimento da injustiça, que atinge pessoas mais vulneráveis, como órfãos e viúvas:
Tu não julgas a causa da viúva,
Nem decide o caso dos miseráveis;
Não expulsas os que atacam os pobres;
Não alimentas o órfão antes de ti (ANET, 149).
O profeta Isaías também repreende os “príncipes ávidos por subornos” que “não fazem justiça ao órfão e não acolhem a causa da viúva” (1,23). O órfão e a viúva reaparecem como principais grupos necessitados da benevolência dos reis no épico de Aqhat



Jones F. Mendonça

domingo, 31 de outubro de 2021

JUBILAR UNIGENITUS DEI FILIUS

1. As 95 teses escritas por Lutero, em 31 de outubro de 1517, tiveram como foco principal a venda de indulgências, prática que se desenvolveu a partir da Bula Jubilar Unigenitus Dei Filius, assinada em 1343. Também conhecida como “bula extravagante”, o documento colocava a Igreja como herdeira dos “Tesouros de Cristo”, que poderia ser usado para livrar os fiéis de suas penas temporais, "sequelas de pecados a purificar".

2. Os teólogos entendiam que essas “penas temporais” eram eliminadas no purgatório, uma espécie de varanda sombria do céu. Diante desse remédio amargo, as indulgências se apresentavam como um caminho mais rápido e fácil contra as terríveis penas temporais. As indulgências podiam ser adquiridas de duas formas: 1) oferecimento de práticas penitenciais acompanhadas de orações; 2) doação de importância material à Igreja (“óbolo de São Pedro”).

3. Tais tesouros, também afirmava o documento, tinham o poder de livrar até mesmo as penas temporais devidas pelas almas que já se encontravam no purgatório. Bem, como o negócio estava rendendo uma grana forte à Igreja, a prática se popularizou, convertendo-se em uma grande fonte de arrecadação. Bebendo em Agostinho, apoiando-se nos humanistas, gozando do apoio dos príncipes, subindo nos ombros de John Wycliff e Jan Huss, Lutero mirou na rolinha e acertou um avião.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

BAAL NO TEMPLO DE JUDÁ

Publicado hoje no Haaretz (27/10/21):

Um fragmento de relevo encontrado em um santuário semelhante ao Templo de Salomão lembra uma divindade cananeia, sugerindo que o culto a imagens e a vários deuses estava bem vivo na Judá bíblica.

O objeto – encontrado na antiga comunidade de Motza, a 6 km de Jerusalém – pode ser apenas uma pedra desgastada de uma maneira que lembra um homem de pé. O arqueólogo que dirige a escavação, Shua Kisilevitz, sugere que seja um fragmento de relevo mostrando a representação de uma divindade da tempestade, como Baal.

 

Jones F. Mendonça

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

O SOL “ME AVISTOU”, MEUS IRMÃOS “ME QUEIMARAM”

O livro Bíblico dos Cânticos dos Cânticos, no v. 6 do capítulo 1, traduzido literalmente, fica assim:
Não OLHEIS eu estar empretecida, foi o sol que me AVISTOU. Os filhos de minha mãe QUEIMARAM-SE contra mim.
É curioso que o texto não use o verbo “queimar” para indicar a ação do sol sob a pele da personagem, mas “avistar/ver” (שזף). A ideia talvez seja enfatizar a ação dos “filhos de sua mãe”. Estes sim, “queimaram-se” (חרר) contra ela.

A moça, coitada, foi obrigada por seus irmãos a guardar vinhas que não eram suas. Eram de fato uns “filhos da mãe”.


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

CÂNTICO DOS CÂNTICOS: UMA LEITURA HISTÓRICO-SOCIAL

Sempre que leciono “poesia e sabedoria hebraica” no STBC, exijo dos meus alunos como tarefa avaliativa uma análise crítica da aula “O desejo e o erotismo em Cântico dos Cânticos: uma leitura histórico-social”, ministrada pelo prof. Dr. Osvaldo Luiz Ribeiro. Faço isso por três razões: 1) a exposição, verso a verso, é algo fora da curva (não é mera repetição do que aparece nos manuais); 2) O prof. Osvaldo faz muitas provocações necessárias (e julgo que meus alunos precisam ser provocados); 3) Sua leitura histórico-social faz muito sentido.

Caso você tenha interesse em assistir a aula online, faça o seguinte:
  • Clique aqui para acessar a página da Faculdade Unida de Vitória;
  • Depois clique em “quero comprar” na arte que anuncia o curso (é de graça, exceto se você optar pela emissão de certificado);
  • Um quadrinho vai aparecer (acesso – sob demanda). Caso ainda não tenha uma conta, crie uma clicando em “ainda não possui conta, clique aqui” (em cinza, na parte inferior do quadrinho).


Jones F. Mendonça

ALEGORIAS E MAÇÃS DE OURO

1. A interpretação alegórica entrou no universo exegético judaico por influência da cultura grega. Ao que parece a ideia era tornar antigos relatos mitológicos, repletos de eventos absurdos à luz da razão, aceitáveis à racionalidade grega. Heródorus de Heraclea – autor de uma história sobre Hércules, no século IV a.C. – viu nas três maçãs de ouro que o herói obteve após matar o dragão como sendo uma alusão às três virtudes obtidas por meio da filosofia [1].

2. Fílon de Alexandria, inserido no ambiente helenizado, acompanhou os gregos no costume de atribuir aos textos antigos sentidos ocultos, vendo neles elementos simbólicos. O objetivo era o mesmo: tornar aceitáveis relatos repletos de elementos incompatíveis à razão. Ao explicar que os dias da Criação devem ser entendidos como simbólicos, Fílon usa e abusa de concepções platônicas e pitagóricas. Analogias com o número sete são um tanto curiosas. Veja:
Mas a natureza se delicia com o número sete. [...] sete são as secreções [do corpo]: lágrimas, muco do nariz, saliva, líquido seminal, os dois tipos de evacuação [urina e fezes], e o suor que sai de todas as partes do corpo (Interpretação Alegórica I, IV, 8).
3. Cristãos como Orígenes e Clemente de Alexandria embarcaram no mesmo “trem exegético”. As parábolas de Jesus, por exemplo (que não são alegorias, exceto as que foram reinterpretadas por Mateus), foram lidas como se cada elemento tivesse um significado especial, oculto aos “neófitos literalistas”. Aqui vai um exemplo: uma interpretação da parábola do bom samaritano, citada [neste caso, em tom crítico, dado seu exagero] por Orígenes em sua Homilia sobre Lucas, tinha não apenas um, mas vários significados. Os ladrões representam os demônios; o homem caído é a natureza humana, corrompida; o bom samaritano é Cristo; o animal de carga é o corpo de Cristo; a hospedaria é a Igreja; o taverneiro os apóstolos, etc. (Homilia 34).

4. O mais curioso é que o método ainda faz sucesso.

[1] EVANS, Craig A. The Interpretation of Scripture in Early Judaism and Christianity. Sheffield: Sheffield Academic Press, 2000, p. 426.


Jones F. Mendonça

domingo, 17 de outubro de 2021

LUTERO E AS ORDENS CELESTES

Em suas Preleções ao Gênesis, Lutero dedica algumas linhas para discutir a natureza dos querubins mencionados pela primeira vez em Gn 3,24. Ele não vê os querubins como sendo uma ordem específica na hierarquia angelical – serafins, querubins, tronos, domínios, poderes, principados, etc. – tal como pensava Pseudo-Dionísio areopagita. Por isso conclui: “ora, quem não vê que todas essas representações são nada mais nada menos do que vãs e fúteis invenções humanas?”.

Recorrendo a etimologias um tanto duvidosas, Lutero sugere que o termo “querubim” indica o aspecto jovial dos anjos, perceptível “nos rapazes e nas moças no desabrochar de suas idades”, dotados de “rostos rechonchudos e cheio de alegria”. É por isso – ele acrescenta – que os anjos “são representados em imagens como crianças”. O mesmo ele pensa em relação aos serafins (Is 6,2.6), que não seriam membros de ordem específica de anjos. O termo indicaria o aspecto “ardente e brilhante” das faces dos anjos ("serafim" vem do verbo hebraico "queimar": שרף).

Nesse sentido, os termos hebraicos “querubim” (כרבים) e “serafim” (שרפים) seriam adjetivos, empregados para destacar algumas qualidades dos anjos, como seu brilho, seu aspecto jovial, reluzente, glorioso, etc. A interpretação que Lutero faz do texto de Gênesis revela que mesmo abandonando a alegoria, sua exegese “literal”, “histórica” e “gramatical” deixa muito a desejar.


Jones F. Mendonça

sábado, 16 de outubro de 2021

LUTERO E O MÉTODO HISTÓRICO-GRAMATICAL

Em suas Preleções ao Gênesis, Lutero interpreta o “haja luz” de Gn 1,3 insistindo em seu sentido histórico e na necessidade de uma interpretação que leve em conta o aspecto gramatical simples do texto. Veja:
Moisés está aqui registrando fatos históricos [...]. Embora seja difícil descrever que tipo de luz era essa, ainda não estou inclinado a pensar que devemos nos afastar, sem motivo, da gramática simples.
O reformador rejeita as interpretações alegóricas que entendiam essa “luz” como sendo uma referência aos “anjos bons” e as “trevas” como indicação velada aos “anjos maus”. E assim conclui: “isto é brincar com alegorias”.

Apesar de reconhecer que essa “luz” não poderia ser o sol, criado somente no quarto dia, Lutero insiste que “essa luz era móvel” e que “girava em um movimento circular” tal como imaginava ser o trajeto do sol ao redor da terra, marcando um período de 24 horas.

O reformador foi influenciado pelos exegetas de Antioquia, por comentaristas judeus (ambos rejeitavam a alegoria), por Nicolau de Lira e pelos pensadores humanistas. Em relação a Lira, ele comenta:
É por esse motivo que sou tão favorável a Lira e, de bom grado, classifico-o entre os melhores comentaristas. Ele sempre obedece e segue cuidadosamente a história.
A centralidade do comentário de Lira para os pensadores da Reforma foi homenageada em ditados latinos como, ‘‘Si Lyra non lyrasset, Luther non saltasset ’’ (Se Lira não tivesse tocado, Lutero não teria dançado). Lutero certamente não foi o inventor do método que hoje chamamos de histórico-gramatical, mas em seus textos há clara ênfase nos aspectos históricos e gramaticais do texto.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

A VIOLAÇÃO DO SÁBADO EM NM 15


A imagem acima ilustra o episódio narrado em Nm 15,32-36: 1) um homem (camisa verde, ao fundo), segue em direção a uma árvore; 2) Violando o sábado, ele a derruba para coletar lenha; 3) Como consequência é apedrejado pela comunidade.

Um detalhe curioso: a disposição da cena feita pelo artista parece ter se inspirado nas representações cristãs da cena da flagelação de Cristo, que exibem o Nazareno sendo açoitado com as mãos atadas a um tronco/coluna.

A imagem aparece impressa na Bíblia Hebraica Poliglota, publicada em 1665. O projeto British Library Labs está disponibilizando o manuscrito gratuitamente para download aqui:



Jones F. Mendonça

terça-feira, 12 de outubro de 2021

ASSUR, JAVÉ, CHUVA DE FOGO E GRANIZO

A Bíblia Hebraica apresenta Javé punindo seus inimigos com fogo, granizo e enxofre em diversas ocasiões. Sodoma e Gomorra, por exemplo, são destruídas após uma chuva de “enxofre e fogo” (Gn 19,24). Em Ez 38,22 a terra de Gog é ameaçada pela ira divina com uma “chuva torrencial de pedras de granizo, fogo e enxofre”. Usando um querubim como montaria, Javé dispersa seus inimigos com “granizo e brasas de fogo” em 2Sm 22,13. As “chamas de fogo” e o “granizo” reaparecem no Sl 105,32 e em Is 30,30. Um oráculo de salvação neo-assírio também incorpora alguns desses elementos:
Eu [Assur] ouvi seu clamor [de Esarhaddon].
Saí como um brilho ardente do portão do céu,
para lançar fogo e devorá-los.
Estavas no meio deles,
por isso retirei-os da tua presença.
Eu os levei montanha acima
e choveu pedras (granizo) e fogo do céu sobre eles.
Matei seus inimigos
e enchi o rio com o sangue deles.
Que eles vejam (isso) e me louvem,
(sabendo) que sou Assur, Senhor dos deuses (SAA, 24).
O texto aparece na obra identificada pela sigla SAA, cuja descrição completa é: PARPOLA, Simo. Assyrian Prophecies: State Archives of Assyria, vol. 9. Helsinki, Finland: Helsinki University Press, 1997. O autor é um respeitado assiriólogo finlandês. 

Jones F. Mendonça

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

A BÍBLIA HEBRAICA E A LITERATURA DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO

Tenho reservado o pouco tempo disponível para ler e analisar a produção literária dos povos vizinhos de Israel, como Egito, Assíria, Babilônia e Ugarit, na Síria. Tais textos foram traduzidos e podem ser encontrados em muitas obras – a maioria em inglês e alemão. Quem estiver interessado em conhecer este material e algumas de suas relações com a cultura preservada pelo Antigo Israel na Bíblia Hebraica (BH), encontrará uma boa antologia de textos aqui:
PRITCHARD, James B. (edit.). Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament. Princeton: Princeton University Press, 1969.
A obra aparece na literatura especializada pela sigla ANET e consiste em uma coleção de mitos, contos, crônicas reais, orientações ritualísticas, encantamentos, textos mortuários, cartas reais, preceitos legais, oráculos proféticos e textos de natureza sapiencial, como provérbios e lamentos de um justo que sofre (semelhantes ao de e aos Salmos 22 e 38).



Jones F. Mendonça

O QUE É O “CONHECIMENTO DO BEM E DO MAL” EM GN 3,5?

Em Gn 3,5 a serpente diz à mulher que o fruto da “árvore do conhecimento do bem e do mal” dará a ela (e ao homem) o poder de “ser como os deuses, versados no bem e no mal” (ou "no certo e do errado"). A serpente dizia a verdade, pois no v. 22 Javé declara: “o homem já é como um de nós, versado no bem e no mal”. Mas o que significa “ser versado no bem e no mal”?

2Sm 14,17.20 pode lançar uma luz sobre o problema. Uma mulher sábia de Técua diz o seguinte a Davi: “meu rei é como o anjo de elohim (כמלאך האלהים) para discernir o bem e o mal”, afinal ele tem “a sabedoria de um anjo de elohim”. Ao que parece a capacidade dada pelo fruto proibido foi a de avaliarperceberdecidir com justiça.

Repare que no relato de Gênesis homem e mulher recebem a sabedoria para julgar, mas não a vida eterna: “que agora ele não estenda a mão e colha também da árvore da vida, e coma e viva para sempre!” (3,22). No mito de Adapa – o primeiro homem criado – algo semelhante acontece. Adapa recebe de Ea a sabedoria, mas não a vida eterna:

Para ele [Adapa], ele [Ea] deu sabedoria,
a vida eterna que ele não lhe deu (ANET, 102).

No segundo relato bíblico da criação (não sacerdotal) essa sabedoria, esse conhecimento, é visto de forma negativa, como uma espécie de busca por autonomia em relação a Javé.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

A SABEDORIA E A INSENSATEZ EM PROVÉRBIOS

1. O capítulo 9 do livro bíblico de Provérbios apresenta a “Sabedoria” e a “Insensatez” de forma personificada. A primeira constrói uma casa, prepara uma mesa farta e convida os ingênuos e os sem juízo a se alimentarem de seu banquete. No v. 6 deixa um conselho: “Deixai a ingenuidade e vivereis; segui o caminho da inteligência”.

2. A partir do v. 13 a “Senhora insensatez” também faz seu discurso. Ela se assenta à porta da casa e chama os que seguem pelo caminho reto: “venham cá, tolinhos, quero falar com vocês, seus desmiolados” (v. 16). Quando se aproximam ela diz assim: “a água roubada é mais doce e o pão escondido é mais saboroso” (v. 17).

3. Esses que passam pela rua e que caem em sua conversa são os ingênuos, pessoas de “cabeça fraca”. No v. 18 a Sabedoria faz um alerta aos que seguem os conselhos da Senhora insensatez: “não sabem que em sua casa estão os rephaim e seus convidados no fundo do Sheol”. A imagem evocada no final do capítulo é pra lá de sinistra (ela reaparece em 2,18).

4. O termo hebraico “rephaim” (plural de rapha’) era usado para indicar o aspecto sombrio, fantasmagórico, dos habitantes do mundo dos mortos, o Sheol. A mensagem final basicamente é esta: “não caia na conversa mole da Senhora Insensatez: sua casa está apinhada de mortos e suas paredes ocultam o alçapão dos infernos”.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

SOB A SOMBRA DE SHADDAY

Na linguagem do Antigo Oriente Próximo, estar sob a sombra de uma divindade equivalia a estar sob sua guarda. O rei assírio Esarhaddon (680-669), certo da proteção recebida dos deuses, declara o seguinte:
[Os deuses] puseram-me em um esconderijo diante dessas maquinações malignas, espalhando sua doce sombra protetora sobre mim, preservando-me para a realeza (ANET, 289).
Na Bíblia Hebraica a sombra tem o mesmo sentido: “Não tenhais medo do povo daquela terra, [...] pois foi removida a sua sombra (צל)” (Nm 14,9). A metáfora reaparece no Sl 121,5, desta vez em relação ao deus de Israel: “Javé é teu guarda, Javé é tua sombra (צל)”. O texto mais famoso, no entanto, surge no Sl 91,1:
Aquele que se assenta no esconderijo de Elyon,
pernoita à sombra (צל) de Shadday.
No caso do Sl 91 esse “esconderijo”, essa “sombra” evocam a imagem de uma ave protegendo seus filhotes sob suas asas, como fica claro no v.4:
Ele te esconde com suas penas,
sob suas asas encontras um abrigo.
A mesma imagem aparece em Dt 32,11, texto que apresenta Javé como uma águia velando por seu ninho. Há quem sugira, como Alonso Schökel (Comentário aos Salmos II), que o as “asas” mencionadas no v. 4 fazem alusão aos querubins com suas asas estendidas sobre a arca da aliança. Ocorre que os querubins não protegiam os fiéis, mas a santidade de Javé. Assim, parece que faz mais sentido pensar em alusões mais evidentes, já presentes em outros textos, como estar sob a sombra (Nm 14,9; Sl 121,5; 91,1) ou, de maneira mais visual, sob as asas de uma ave (Dt 32,11; Sl 91,4).

 

Jones F. Mendonça

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

PREPÚCIOS, ARTE E DEVOÇÃO


A ideia do artista que pintou esta tela era retratar o texto bíblico de 1Sm 18,27, mas por alguma razão trocou os “indecentes” prepúcios por cabeças. Eis a fonte da imagem: “A Bíblia dos cruzados, c. 1240, MS. M. 638, f. 30 R”.

Embora ocultado na representação medieval acima, o prepúcio aparece de forma bem evidente nos escritos de Catarina de Siena, que comenta em uma de suas cartas seu noivado com Jesus, selado não “não com um anel de prata, mas com uma aliança feita com sua própria carne sagrada” [1].

Nota:

[1]GLICK, Leonard B. Marked in your flesh: circuncision from Ancient Judea to modern America. Oxford: Oxford university Press, 2005, p. 97.

 

Jones F. Mendonça

domingo, 26 de setembro de 2021

DEUS EM TRABALHO DE PARTO

Um caso raro, presente em Is 42,14, descreve Javé como uma mulher ofegante em trabalho de parto (fiz minha própria tradução):
Calei-me por muito tempo,
Fiz silêncio, contive-me;
Como a parturiente gritei ofegante,
suspirei longamente.
Quando isolado, o texto parece sugerir passividade. Mas esse silêncio, essa dor e essa agonia contida explodem no verso seguinte:
“Assolarei colinas e montes,
e toda a vossa erva farei secar;
Converterei torrentes em ilhas (*)
e lagos em sequidão".
(*) A imagem que o texto parece evocar é a de um rio que após ter seu volume d'água reduzido exibe partes de seu leito em forma de ilhas. 



Jones F. Mendonça

sábado, 25 de setembro de 2021

AVRAM, AVRAHAM, AV-HAMON


Muita gente repete por aí que o nome “Abraão” (Avraham) significa “pai de muitas nações”. Mas isto não é certo. Na verdade, o texto destaca a semelhança fonética entre o nome Avraham (que significa “pai de raham”) e a expressão “pai de muitos”. Veja:

“Não mais serás chamado Avram (אַבְרָם), mas Avraham (אַבְרָהָם) será o teu nome; pois por av-hamon (אַב־הֲמוֹן = “pai de muitos”) povos te hei posto” (Gn 17,5).

Assim, se alguém perguntasse: “por que o patriarca Avram teve seu nome mudado para Avraham’”? A resposta seria: “porque ele é ‘av-hamon’, ou seja, ‘pai de muitos’”. Sei que isso parece não ter muito sentido para uma mente moderna, mas as etimologias populares faziam muito sucesso entre os hebreus.

  

Jones F. Mendonça

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

SOBRE OS NOMES BÍBLICOS

A origem dos nomes de todos os filhos de Jacó foram explicados tardiamente a partir de etimologias populares. No caso de José duas explicações foram colocadas na boca de Raquel: 1) Ele se chamou José (Yossef) porque “Deus removeu (assaf → אסף) minha vergonha” (Gn 30,23) e 2) Ele se chama José porque deu-me (yassaf → יסף) o Senhor outro filho” (Gn 30,24).

O mesmo acontece com Jacó (Yaakov → יעקב), que tem seu nome associado ao “calcanhar” (‘aqev → עקב) de Esaú e ao fato de tê-lo “enganado” (‘aqav → עקב). Tais histórias (Gn 25,26; 27,36) obviamente não possuem qualquer fundamento histórico. Não receberam esses nomes no momento do nascimento por mera associação a eventos inusitados, mas porque a criatividade popular assim quis.  Muitos desses nomes já existiam em outras regiões. Não foram inventados pelos hebreus. 

 

Jones F. Mendonça

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

O APÓLOGO DE JOATÃO E A HISTÓRIA DE DEBORAH: SOBRE ÁRVORES QUE FALAM

Jz 9,8-15 registra uma fábula na qual um grupo de árvores discute a respeito de quem deverá reinar sobre elas. A oliveira demonstra-se pouco interessada, uma vez que teria que abandonar a produção de seu azeite, alimento “que tanto honra os deuses e os homens” (v. 9). A figueira usa um argumento semelhante: “Iria eu abandonar minha doçura e o meu saboroso fruto, a fim de balançar-me por sobre as árvores?” (v. 11). O convite também é estendido à videira, que recusa a oferta em nome da alegria produzida por seu vinho (v. 13).

Na ausência de uma árvore nobre, finalmente fazem o convite ao espinheiro, que prontamente aceita reinar sobre todas as árvores, acolhendo-as sobre sua sombra (v. 15). Mas faz um alerta às árvores que não se sujeitarem a seu governo: “sairá fogo dos espinheiros e devorará os cedros do Líbano”. Um exemplo de fábula com árvores falantes aparece em um antigo texto acadiano intitulado: “A disputa entre a tamargueira e a tamareira”. Na fábula, de caráter didático-sapiencial, as duas árvores apresentam suas virtudes na tentativa de provar quem é a mais valiosa.

 Dois trechos chamaram a minha atenção:

“O rei em seu palácio planta tamareiras,
além disso, da mesma forma, tantas tamargueiras.
À sombra da tamargueira foi organizado um banquete.
À sombra da tamareira a decisão sobre um crime...”
“Plantou ao seu lado a tamareira [dizendo],
“Se [você estiver] no portão da cidade, acalme a contenda;
se estiver no deserto, acalme o calor” (ANET, p. 411).
Aqui, como em Jz 4,5, era à sombra de uma palmeira que as disputas judiciais eram resolvidas: “Ela tinha a sua sede à sombra da palmeira de Débora, entre Ramá e Betel, na montanha de Efraim, e os filhos de Israel vinham a ela para obter justiça”. Mas há algo estranho nesse texto: a presença do pronome “ela” (הִיא) no início da frase é desnecessário. Ao que parece a camada mais antiga do texto falava de uma mulher anônima (ela) que julgava as causas do povo ou anunciava oráculos “na palmeira de Deborah”.

Um segundo problema: as árvores também funcionavam com local sagrado para a adivinhação (Jz 9,37), como locais de aparição (Gn 18,1), de sepultamento (Gn 35,8) e de culto (Js 24,26) e, talvez, de consulta aos mortos. Ao mesmo tempo em que é apresentada como alguém que “julgava” (שֹׁפְטָה), para que por meio dela fosse obtida a “justiça” (לַמִּשְׁפָט), a personagem também atua como “profetiza” (נְבִיאָה). Ela estaria ali “julgando” ou anunciando um oráculo divino? Seu nome era mesmo “Deborah” ou ele possui relação com o local do sepultamento da ama de leite de Rebeca, enterrada aos pés de uma árvore em Betel, o "carvalho dos prantos" (cf. Gn 35,8)?

Talvez o relato presente em Gn 35,8 tenha a função de explicar a razão do "carvalho dos prantos" – o "carvalho de Deborah" – ainda frequentado, na época do redator, por pessoas que lamentam a perda de um ente querido ou, mais especificamente, de ocultar sua verdadeira função como local de consulta aos mortos. Neste caso seria necessário explicar como o "carvalho dos prantos" de Gn 35,8 se converteu em "palmeira de Deborah" em Jz 4,5. Essa questão suscita outra pergunta: será que a tradução de "tomer" (תֹּמֶר) por "palmeira" está correta? 

 

Jones F. Mendonça