terça-feira, 19 de junho de 2018

FÍLON DE ALEXANDRIA: A MULHER É O CAMPO, O HOMEM O SEMEADOR

Leio os escritos de Fílon de Alexandria, judeu helenista do primeiro século a.C. Interessam-me suas considerações a respeito da Lei judaica no que concerne à licitude de certas práticas sexuais.

Em Leis III, 32, o sábio judeu aconselha o marido a vigiar o corpo de sua mulher assim como o lavrador habilidoso vigia o campo no qual depositará sua semente. Explica que ele deve abster-se de semear quando o “campo” (a vagina) está “inundado” (pelo sangue da menstruação). Mas por que todo esse cuidado para não “desperdiçar a semente”? Simples: é que Fílon entende (como os filósofos estoicos) que o sexo tem como finalidade única a reprodução: “o prazer sexual não foi dado ao homem para o gozo ou a fruição, mas para a propagação da espécie” (Sêneca em “Consolação à Hélvia”).

Isso explica sua condenação aos homens que se casam com mulheres estéreis mesmo sabendo de sua condição (34). Neste caso o ato sexual seria um inaceitável “desperdício de semente”, algo que ele classifica como “contra a natureza” (pecado da luxúria). Igual condenação ele estende aos jovens que “encaracolam os cabelos”, “maquiam o rosto” e “delineiam os olhos”, “mudando o seu caráter viril” (efeminados). Tal prática, explica Fílon, consiste num “desperdício do poder de propagar a espécie” (39), permitindo que “terras férteis e produtivas permaneçam em repouso”, provocando a “desolação das cidades”.

Entre os primeiros cristãos a visão do sexo como prática restrita à procriação reaparece, por exemplo, em Clemente de Alexandria: “O casamento é o desejo da procriação e não a ejaculação desordenada do esperma que, aliás, é contrária tanto à lei quanto à razão” (Pédagoge, II, 10). Jerônimo chega a dizer (citando Xystus) que “aquele que é muito ardente com sua própria esposa é adúltero” (Contra Joviniano, I, 49). Quando Levy Fidelix, num debate presidencial em 2014, condenou a homossexualidade masculina argumentando que “aparelho excretor não reproduz”, repetiu a velha condenação estoica ao “desperdício de esperma”, repetida pelos judeus helenistas, pelos cristãos dos primeiros séculos e pelo catolicismo moderno.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 15 de junho de 2018

O "JESUS PIMENTINHA" NA ARTE E NA LITERATURA


Nesta tela, de Max Ernst (Virgin Spanking, 1926), o menino Jesus aparece sendo disciplinado por Maria. Repare que o halo despenca de sua cabeça enquanto a mão ameaçadora de sua mãe desce em direção às suas nádegas já avermelhadas.

Embora esta representação ousada tenha causado muito escândalo no início do século XX, já nos primeiros séculos, nos chamados “Evangelhos da infância”, Jesus aparece como uma criança travessa, astuta e até mesmo cruel.

No evangelho de Tomé da infância, por exemplo, uma criança provoca Jesus e é transformada numa árvore seca. Em outra passagem Jesus é acusado de empurrar um menino de um terraço. Para provar sua inocência, ele a ressuscita.

Os cristãos dos primeiros séculos, criadores de tais narrativas, não viam problemas em aceitar a infância do Filho de Deus com as cores de uma infância comum, repleta de rebeldia, imaturidade e até mesmo de maldade.


Jones F. Mendonça

terça-feira, 5 de junho de 2018

O PESCOÇO NO ANTIGO TESTAMENTO

O texto hebraico do AT usa a expressão “pescoço duro” para se referir a uma pessoa teimosa, rebelde, difícil de domar: “Pois conheço a tua rebeldia, o teu pescoço duro” (Dt 31,27). O livro de Crônicas diz que Sedecias rebelou-se contra Nabucodonosor “endurecendo seu pescoço” (2Cr 36,13). Isaías repreende Israel dizendo que seu pescoço é um “tendão de ferro” (48,4). Os tradutores, visando ajudar o leitor, trocam pescoço por “cerviz” (pescoço duro = dura cerviz).

O Jó angustiado lamenta que sua vida tranquila tenha sido interrompida quando o Senhor o agarrou pelo pescoço e o triturou (16,12), afinal era sobre o pescoço que os jugos de ferro eram colocados (Dt 28,48) ou, também, os pés do opressor (Js 10,24). “Colocar o pescoço”, revela Nee 3,5, era o mesmo que submeter-se ao serviço de alguém. “Dar o pescoço” (em nossas versões, “dar as costas”), era, ao contrário, desdenhar de alguém (2Cr 29,6).

Mas o pescoço também aparece associado aos afetos. Jacó se lança ao pescoço de Esaú e o beija. José chora após se lançar ao pescoço de Benjamim (45,14) e de Israel, seu pai (46,29), após revelar sua identidade aos seus irmãos.



Jones F. Mendonça