quinta-feira, 31 de outubro de 2019

LUTERO, ÉTICA CRISTÃ E A CARTA AOS GÁLATAS

Em sua Ética Cristã, publicada entre maio e junho de 1520, Lutero defende ferrenhamente a supremacia da fé sobre as obras. Mais do que isso. Para o reformador, uma obra só pode ser considerada boa se produzida pela fé. Fora da fé, todas as obras seriam más (mesmo aquelas que são aparentemente boas).

São nítidas as críticas de Lutero à teologia escolástica medieval, inspirada na filosofia de Aristóteles (ele é chamado de “palhaço” pelo reformador). De acordo com os escolásticos, o homem teria sido dotado por Deus com o “habitus”, disposição natural para o bem, aperfeiçoada pelo exercício. O reformador se impõe energicamente a esta concepção.

Mas Lutero distorce um texto de Gálatas para fundamentar sua teologia da graça. Na versão em português de sua Ética Cristã (Sinodal, 1999, 154 p.), o texto aparece assim: “vocês receberam o espírito não de suas BOAS OBRAS, mas por terem CRIDO na palavra de Deus” (Gl 3,2). O texto grego, no entanto, traz: “OBRAS DA LEI” e não “boas obras”.



Jones F. Mendonça 

terça-feira, 15 de outubro de 2019

OS REFORMADORES E AS AUTORIDADES

Muitas das ideias defendidas por Lutero no século XVI já haviam sido anunciadas por John Wyclif, teólogo e professor da universidade de Oxford. Um exemplo. Em seu tratado De Officio Regis (1379), Wyclif coloca o estado acima da igreja, contrariando o ensinamento de Tomás de Aquino, maior teólogo medieval.

Wyclif fundamentou suas posições citando Agostinho e Paulo aos Romanos: “todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus” (Rm 13,1). Em seu desejo de enfraquecer o clero, Wycliff acabou ajudando a criar outro monstro: o absolutismo monárquico.

A crença no direito divino dos reis só foi combatida mais tarde por John Locke (1632-1704). Ainda hoje é possível encontrar cristãos fundamentalistas usando Rm 13 para justificar a submissão incondicional às autoridades (quando essas autoridades são apoiadas por eles, claro!).



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

NINGUÉM NASCE MULHER?

De modo geral, quando um bebê nasce, projetamos sobre ele nossas aspirações e impomos sobre ele desde cedo características de diferenciação sexual. Se é do sexo masculino: roupa e quarto azul. Se é menina: roupa e quarto rosa. Também o comportamento é direcionado: “menina não joga futebol!”, “menino não chora”, etc. O procedimento é comum em diversas culturas. Esses elementos distintivos, no entanto, não caem do céu, são construções humanas. Têm lá seus aspectos positivos (como a coesão social) e também negativos (alguns não se identificam com esses “selos” de diferenciação).

Quando Simone de Beauvoir disse, já no final da década de 50, que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, não queria com isso negar as diferenças biológicas entre macho e fêmea (é óbvio!), muito menos insinuar que os seres humanos nascem sexualmente neutros. Muitas de suas queixas tinham a ver com o papel reservado à mulher imposto pela sociedade (sobretudo pelos homens). O termo “mulher”, em sua fala, era usado para indicar essa construção, essa imagem idealizada da fêmea transformada numa espécie de modelo imutável e definitivo.

“O segundo sexo”, de Simone de Beauvoir, é uma obra-prima de quase mil páginas. Fazer um pouquinho de esforço para entender o que ela diz não fará mal a ninguém.



Jones F. Mendonça

DA DILUIÇÃO DAS COISAS

Perguntam-me sobre a origem, sobre as razões históricas ou filosóficas que desencadearam o processo de diluição das coisas. Bem, a percepção do homem como um projeto em construção (e desconstrução) e não como tendo uma essência determinada remonta a filósofos do século XX, tais como Jean Paul Sartre (diluição da identidade).

A negação de um fundamento absoluto da moral pode ser encontrada em Nietzsche, filósofo do século XIX: “não existem fenômenos morais, mas interpretações morais dos fenômenos” (diluição da moral). Aliás, a frase nietzschiana “Deus está morto” diz respeito à negação de fundamentos metafísicos para a moral e não da existência de Deus.

No século XVII, sob a influência de John Locke, o liberalismo inglês rejeitou o direito divino dos reis e lançou as sementes para o nascimento da democracia e dos direitos humanos (diluição da autoridade política). Atualmente há gente tonta o suficiente para rejeitar essas duas conquistas...

No século XVI Lutero lançou sal no caramujo das verdades absolutas do dogma ao negar que o Papa tenha as chaves da igreja e da interpretação das Escrituras (diluição da autoridade religiosa). E você encontra protestantes ingênuos reclamando da diluição da fé. Não se dão conta de que o remédio para isso é a teocracia e a Inquisição.

A diluição e fragmentação da identidade, dos costumes, da religião, da moral não é um projeto elaborado por um grupo de pessoas. São os efeitos colaterais (negativos ou positivos) da busca pela autonomia e pela liberdade.


Jones F. Mendonça

O JUÍZO FINAL E O LIVRO DA VIDA (E DA MORTE)


Este macabro painel, de Jacobello Alberegno (século XIV), mostra a ressurreição do corpo no dia do juízo final tal como expressa em Ap 20. As obras que cada um realizou estão registradas nos livros (nas mãos dos esqueletos). Os da esquerda (livros pretos) são os condenados. Os da direita (livros vermelhos), os redimidos.



Jones F. Mendonça

A ESPOSA DE JÓ E A "BÊNÇÃO DA MORTE"

Em todos os manuscritos do Antigo Testamento preservados, as palavras da mulher do Jó próximo da morte são: “abençoa a Deus e morre”. As Bíblias, no entanto, trazem: “amaldiçoa a Deus e morre” (Jó 2,9). Há três hipóteses para o caso em questão.

Opção 1: a palavra "bênção", neste caso específico, seria um modo debochado de dizer "amaldiçoa". Os tradutores, entendendo o deboche, optaram por traduzir o termo por “amaldiçoa”. Até onde sei, esta é a teoria mais aceita (mas que eu não engulo, e vou expor minhas razões).

Opção 2: “Bênção” seria mesmo um pedido de bênção, prática costumeira entre os antigos hebreus, que invocavam o seu Deus nos últimos momentos de vida. A mulher de Jó, neste caso, estaria dizendo: “faça sua bendição final e morra, ninguém merece tanto sofrimento”. Ocorre que não há na Bíblia hebraica qualquer referência a uma tal “bendição dos moribundos” (talvez haja no judaísmo rabínico).

Opção 3: No texto original constava "maldição", mas um copista piedoso trocou “maldição” por "bênção", afinal seria desonroso inserir “maldição” ao lado no nome divino (elohim). Teve que optar: ou “ofende” o texto ou ofende a Deus. Optou pela primeira. Trata-se de um típico caso de tiqqun soferim (correção do escriba). Esta é a tese que faz mais sentido. Eis minhas razões:

Muita gente não se dá conta de que no livro de Jó a presença da palavra “benção” com sentido de “maldição” ocorre em outro verso. E o mais importante: como no caso anterior surge com sentido trocado ao lado do nome divino. Jó, preocupado com uma possível vida pecaminosa de seus filhos, diz assim:

“Talvez meus filhos tenham cometido pecado, ABENÇOANDO A DEUS em seu coração” (Jó 1,5).

Fiz a tradução acima a partir do texto hebraico. Nele não consta “maldizendo”, mas “abençoando” (uberakhu). Neste caso não cabe a explicação de que se trata de uma bendição que se faz nos últimos momentos de vida. Tampouco faz sentido ver no texto qualquer indício de deboche. Note o leitor que como no caso anterior, se a palavra correta fosse inserida (maldição, “qelalah”), o termo estaria ao lado do nome divino. O copista, por piedade, trocou a palavra por seu antônimo.

Há ainda um outro caso, em que Nabode é acusado de AMALDIÇOAR a Deus e ao rei (1Rs 21,10.13). Mas no texto hebraico vem escrito “abençoar a Deus”. Ora, por que alguém seria acusado de abençoar a Deus? Aqui o escriba empregou o mesmo recurso: por piedade, trocou o termo “maldição” (qelalah) por “bênção” (berakah).



Jones F. Mendonça

DANIEL E O ÉPICO DE AQHAT

Leio o épico de Aqhat, antiga lenda semítica (séc. XIV a.C.) escrita para explicar a seca que assola a terra no verão. Um trecho do poema cita "Daniel" (ou Danel), herói com o mesmo nome do personagem bíblico. Outro trecho menciona a preocupação com órfãos e viúvas:

Daniel, homem de Rapiu [uma divindade]
O herói, homem dos harnemitas (um povo),
Levanta e senta junto ao portão,
entre os chefes na eira.
Cuida do caso da viúva
Defende as necessidades dos órfãos.

SMITH, Mark S. Ugaritic Narrative Poetry (Vol IX). Society of Biblical of Literature, 1997, p. 58.


Jones F. Mendonça


A BÍBLIA E OS GORDINHOS

Após confessar que invejou os arrogantes, o salmista expõe as (injustificadas) razões de seu pecado: “pois não conhecem tormentos para a morte. Gordas são as barrigas deles” (Sl 73,4). A NVI trocou “barriga gorda” por “corpo saudável e forte”. A NTLH optou por “fortes e cheios de saúde”. Mas é "barriga gorda" mesmo, viu! A palavra “gordo(a)” (bariy’) reaparece em Jz 3,17, usada para qualificar o rei Eglon de Moab: “Eglon era muito gordo”. Mas por que o salmista invejaria a "barriga gorda" dos ímpios? Ora, por que eram bem alimentados, claro.


Jones F. Mendonça

O HEBRAICO EM CORPOS CONCRETOS

Em boa parte das traduções toda a beleza concreta do hebraico se perde. No Salmo 44,25 alguém numa situação muito difícil (o exílio?) lamenta o estado de humilhação no qual se encontra seu povo. E diz assim (tradução literal):

“Pois se inclina(A) ao pó(B) a nossa garganta(C),
Adere(A') à terra(B') o nosso ventre(C')”.

Repare que a poesia hebraica valoriza a correspondência entre palavras do verso 1 e do verso 2: inclina/adere(A); pó/terra(B); garganta/ventre(C). O paralelismo sinonímico é um dos recursos literários mais utilizados na Bíblia hebraica. 


Jones F. Mendonça

CATECISMO PROTESTANTE

O que você lê aqui, dito por Frankin Ferreira em sua “Teologia cristã” (Vida Nova, 2015), segue a mesma “lógica” de Augusto Nicodemus e Jonas Madureira:

“A fé cristã afirma a necessidade de abraçarmos, com todo nosso coração, certos pressupostos, que determinarão como interpretamos as Escrituras e a criação”.

Na ordem, teríamos: fé > pressupostos > interpretação correta das Escrituras. Ora, mas se os pressupostos da fé estão nas próprias Escrituras (ou não estão?), como alguém poderia tê-los consigo antes de lê-las?

Os pressupostos corretos, aos quais ele se se refere, é a teologia reformada. Não diz isso com todas as letras, mas fica implícito. Na prática, vá lá, é assim que a coisa funciona no ambiente eclesial. Batistas leem a Bíblia com as lentes da doutrina batista, pentecostais com as lentes pentecostais, etc. Mas neste caso o Sola Scriptura se converte numa farsa. Na prática as Escrituras são lidas a partir da tradição! Como os católicos sempre fizeram e fazem.


Jones F. Mendonça

A REFORMA PROTESTANTE E AS JAULAS MEDIEVAIS

Até o século XV os cristãos da Europa formavam praticamente um único rebanho: eram católicos apostólicos romanos. Reuniam-se ao som do mesmo sino, da mesma doutrina, do mesmo Papa, dos mesmos sacramentos, da mesma liturgia, dos mesmos preceitos morais. As igrejas ocupavam o centro geográfico e o centro da existência humana. Era um mundo seguro, ordenado, estável. Mas não era um mundo livre.

Quando Lutero questionou a autoridade do Papa como legítimo intérprete das Escrituras, esse mundo se dissolveu como caramujo em pedra de sal. A verdade, antes guardada no estojo dourado das coisas imutáveis, saltou para os celeiros das leituras individuais. Cada qual passou a ler o texto a seu jeito. Uma crise de autoridade se instalou. Não demorou e o povo também começou a questionar o direito divino dos reis. Entramos na era das revoluções.

Sob uma perspectiva existencial, não era mais um mundo seguro, ordenado, estável. O universo das verdades religiosas, ideológicas e morais foi se tornando cada vez mais fluido. Formaram-se muitos rebanhos, infinitas crenças, identidades cada vez mais fragmentadas. As ideologias se espalhavam como fumaça em dia de ventania. Um mundo – é verdade – em certa medida angustiante, doloroso.

Há quem tente superar essa inquietação erguendo muros ao redor de sua própria vida. É uma solução legítima. Mas há aquela galera perigosa, rancorosa, mal resolvida, defendendo clausuras coletivas. Morrem de saudade das jaulas medievais. Não apenas para si, mas para todos os outros.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

AS CARTAS DE PAULO NO MAPA

Clique para ampliar
Embora tenha nascido em Jerusalém, o cristianismo se estruturou em Roma, capital do Império. O mapa mostra as comunidades cristãs com as quais Paulo se correspondeu por meio de cartas (e que ganharam valor canônico). Fiz o mapa com a ajuda do peripleo.pelagios.org e do bibleatlas.org.


Jones F. Mendonça