sexta-feira, 11 de outubro de 2019

A ESPOSA DE JÓ E A "BÊNÇÃO DA MORTE"

Em todos os manuscritos do Antigo Testamento preservados, as palavras da mulher do Jó próximo da morte são: “abençoa a Deus e morre”. As Bíblias, no entanto, trazem: “amaldiçoa a Deus e morre” (Jó 2,9). Há três hipóteses para o caso em questão.

Opção 1: a palavra "bênção", neste caso específico, seria um modo debochado de dizer "amaldiçoa". Os tradutores, entendendo o deboche, optaram por traduzir o termo por “amaldiçoa”. Até onde sei, esta é a teoria mais aceita (mas que eu não engulo, e vou expor minhas razões).

Opção 2: “Bênção” seria mesmo um pedido de bênção, prática costumeira entre os antigos hebreus, que invocavam o seu Deus nos últimos momentos de vida. A mulher de Jó, neste caso, estaria dizendo: “faça sua bendição final e morra, ninguém merece tanto sofrimento”. Ocorre que não há na Bíblia hebraica qualquer referência a uma tal “bendição dos moribundos” (talvez haja no judaísmo rabínico).

Opção 3: No texto original constava "maldição", mas um copista piedoso trocou “maldição” por "bênção", afinal seria desonroso inserir “maldição” ao lado no nome divino (elohim). Teve que optar: ou “ofende” o texto ou ofende a Deus. Optou pela primeira. Trata-se de um típico caso de tiqqun soferim (correção do escriba). Esta é a tese que faz mais sentido. Eis minhas razões:

Muita gente não se dá conta de que no livro de Jó a presença da palavra “benção” com sentido de “maldição” ocorre em outro verso. E o mais importante: como no caso anterior surge com sentido trocado ao lado do nome divino. Jó, preocupado com uma possível vida pecaminosa de seus filhos, diz assim:

“Talvez meus filhos tenham cometido pecado, ABENÇOANDO A DEUS em seu coração” (Jó 1,5).

Fiz a tradução acima a partir do texto hebraico. Nele não consta “maldizendo”, mas “abençoando” (uberakhu). Neste caso não cabe a explicação de que se trata de uma bendição que se faz nos últimos momentos de vida. Tampouco faz sentido ver no texto qualquer indício de deboche. Note o leitor que como no caso anterior, se a palavra correta fosse inserida (maldição, “qelalah”), o termo estaria ao lado do nome divino. O copista, por piedade, trocou a palavra por seu antônimo.

Há ainda um outro caso, em que Nabode é acusado de AMALDIÇOAR a Deus e ao rei (1Rs 21,10.13). Mas no texto hebraico vem escrito “abençoar a Deus”. Ora, por que alguém seria acusado de abençoar a Deus? Aqui o escriba empregou o mesmo recurso: por piedade, trocou o termo “maldição” (qelalah) por “bênção” (berakah).



Jones F. Mendonça

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