terça-feira, 24 de dezembro de 2019

ISAÍAS, CIRO E OS FORJADORES DE METAIS

Os versos 6 e 7 do capítulo 41 do profeta Isaías descrevem de maneira poética forjadores de metais em preparação para a batalha. O que se tem em vista é a ascensão de Ciro, “aquele que sujeita os reis” (v. 2), tratado pelo profeta como o “messias de Javé” (Ungido de Deus, cf. 45,1). Leia com atenção:
“Cada um ajuda o seu companheiro,
e diz ao seu irmão: “Coragem!”
O artífice dá coragem aos OURIVES;
aquele que alisa com o martelo, ao que bate na bigorna,
dizendo a respeito da solda: “Ela está boa”;
ele firma-a com pregos para que não se abale 
(Trad. Bíblia de Jerusalém).
Não é difícil perceber que o texto descreve o ambiente de trabalho de especialistas no manejo de metais utilizados em armas de guerra. Quando li o texto, pensei: “o que o ourives faz ali?”. Intrigado, consultei o texto hebraico. Não é ourives. Tzaraf é verbo (fundir, refinar). Uma tradução mais fiel seria algo como “FUNDIDOR” (como em Zc 13,9), pessoa que trabalha os metais no fogo (A Bíblia TEB acerta ao traduzir tzaraf por “moldador”).

Tzaraf (fundidor) até pode ser traduzido como “ourives”, quando o que ele funde é o ouro, como em Is 40,19: “o tzaraf a reveste de ouro [a imagem]”. Em Is 41 este tzaraf “alisa o martelo”, “bate na bigorna”, “firma a solda com pregos”. Parece fabricar armas, não joias preciosas. Outras versões (como a NVI) fazem pior. O que está sendo firmado pelo ferreiro é a solda, mas a NVI entende que é o ídolo: “E fixa o ídolo com prego para que não tombe”.


Jones F. Mendonça


terça-feira, 10 de dezembro de 2019

TROCADILHOS NA BÍBLIA: INIMIZADES

Arte: Robert Crumb
Não há qualquer verso na Bíblia dizendo que o nome “Jacó” (Yaaqov) significa “usurpador”. O que o texto faz é destacar a semelhança fonética entre “Yaaqov” e outras duas palavras hebraicas: “'aqav” (usurpar, enganar) e “aqev” (calcanhar). Veja:
“e sua mão segurava o calcanhar (aqev) de Esaú, por isso foi chamado de Jacó (Yaaqov)” (Gn 25,26).
“Esaú disse: ‘verdadeiramente recebeu o nome de Jacó (Yaaqov): pois é a segunda vez que me enganou (aqav)’” (Gn 27,36).
As duas narrativas, de natureza etiológica, visam explicar – cada qual a seu modo – a inimizade entre israelitas e edomitas.



Jones F. Mendonça

TROCADILHOS NA BÍBLIA: PEREGRINOS


Após se retirar para Midiã fugindo de Faraó, Moisés parou junto a um poço. Lá defendeu sete moças, filhas de Raguel, que estavam sendo importunadas por alguns pastores. Quando retornaram para casa contaram ao pai o acontecido. Raguel não perdeu tempo: “vocês deixaram esse homão partir?!”. Obedientes, as moças trouxeram Moisés, que se casou com Zípora. Depois ela engravidou. O nome do filho: “Gersam” (Ex 2,22). A razão de ter recebido este nome aparece logo adiante: “porque era um “ger” (“peregrino”, em hebraico) em terra estrangeira”. A Bíblia está repleta desses trocadilhos.

Ah, o “homão” é por minha conta.



Jones F. Mendonça

POR QUE JACÓ NÃO RECONHECEU LIA?

A história é bem conhecida: Jacó trabalha por sete anos para se casar com Raquel, mas na hora “H”, numa tenda sob o céu noturno, é enganado por Labão e passa a noite com Lia, irmã mais velha de Raquel. Os rabinos quebraram a cabeça para entender como Jacó não percebeu que ela era a mulher errada. Veja as respostas:

1. Era noite (Gn 29,23), por isso Jacó não conseguiu ver o rosto de Raquel;
2. Mas não havia velas? A resposta: é indecente fazer sexo à luz de velas;
3. Como Jacó não reconheceu a voz de Lia? A resposta: é falta de decoro falar durante o sexo;
4. Jacó estava bêbado após o banquete mencionado em Gn 29,22 e a embriaguez atordoa os sentidos.
5. Jacó tinha miopia grave, pouca sensibilidade no tato e ouvia muito mal (brincadeira, essa hipótese ninguém levantou. Mas as quatro primeiras são verdadeiras, viu!). 

Levando em conta que a história precisava ser crível para seus ouvintes primários, talvez a resposta nº 4 seja a que faz mais sentido. Leia mais no The Torah.



Jones F. Mendonça

ACÃ, O “OKER”, NO VALE DE AKOR


Uma das histórias mais populares do livro bíblico de Josué é a que narra o pecado e o apedrejamento de AKAN (Acã, em português), personagem que “perturbou” (AKAR, cf. Js 7,25) o acampamento israelita, subtraindo objetos sob interdição divina. Além do apelo à obediência, o relato explica a origem do nome de um vale ao norte de Jericó: “Por esse motivo se deu àquele lugar o nome de vale de AKOR, até hoje” (Js 7,26). Com o propósito de tornar o jogo de palavras mais afinado, a tradição mudou o nome de Akan para AKAR, na medida em que ficou lembrado como “o perturbador (OKER) de Israel que transgrediu o interdito divino” (1Cr 2,7).

Traduzindo e simplificando: AKAN (nome próprio), “perturbou” (AKAR, verbo) a ordem estabelecida, converteu-se no “perturbador” (OKER) de Israel e por isso o vale no qual foi apedrejado recebeu o nome de AKOR. Quando as crianças perguntavam aos pais a razão do amontoado de pedras em um vale conhecido como “AKOR, eles tinham uma resposta rica em similaridade sonora.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

TROCADILHOS NA BÍBLIA: PRIMOGENITURAS


A disputa pelo direito da primogenitura é um tema recorrente no Antigo Testamento. O mais famoso envolve Esaú e Jacó. Esaú, o mais velho, de pele avermelhada (Gn 25,25), vende a Jacó seu direito de primogenitura por um punhado de cozido vermelho (25,30). Também chamado de “Edom” (significa “vermelho”), torna-se o pai dos edomitas (32,3; Ob 1,8).

Uma segunda narrativa bíblica incorpora elementos muito parecidos. Trata-se da história de Zará e Peres, filhos da relação incestuosa entre Judá e Tamar (Gn 38). As semelhanças: 1) Eram gêmeos (v. 27); 2) Disputavam os privilégios da primogenitura desde o ventre (v. 29); 3) O mais velho, também indicado pela cor vermelha (v. 28), perde o direito de primogenitura para seu irmão mais novo (v. 29).

Uma última curiosidade: Jacó (yakov) recebe este nome porque segurava o “akev” (calcanhar) de Esaú (Gn 25,26). Peres (Parez), também o mais novo, recebe este nome porque “paraz” (rompe) uma abertura, permitindo que saia na frente de seu irmão.


Jones F. Mendonça