quinta-feira, 30 de junho de 2022

ASHERAH, A SABEDORIA DIVINA E A CIDADE DE JERUSALÉM

1. Achados arqueológicos como a Incrição de Khirbet el Qom e de Kuntillet Ajrud sugerem que Yahweh era adorado ao lado de sua consorte, Asherah, também conhecida como Rainha do Céu. A Bíblia também preserva certos vestígios do culto a Asherah: “[Manassés] colocou a escultura de Asherah, que mandara fazer, no Templo, do qual Iahweh dissera a Davi e a seu filho Salomão” (2Rs 21,7. Veja também Jr 44).

2. A crença de que Yahweh possuía um cônjuge teria sido abolida por ocasião da reforma do rei Josias, no século VII. Mas a tentativa literária e religiosa de obliterar a deusa não foi bem sucedida na medida em que a sombra de Asherah ainda se projeta na forma de vários disfarces literários (inclusive pela mão de alguns tradutores, que substituem a palavra hebraica “Asherah” por “poste ídolo”).

3. Um desses disfarces seria a hokhmah (חכמה), palavra feminina empregada para personificar a sabedoria divina no livro de Provérbios (cap. 8). Há quem suponha, como Dvorah Lederman Daniely, que a fonte da metáfora conjugal entre Yahweh e sua noiva ou esposa, alternadamente chamada de Jerusalém, Sião ou Filha de Sião, vem das relações conjugais entre Yahweh e Asherah. Ele sugere que a cidade aparece como representação codificada da Deusa.

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Jones F. Mendonça

EZEQUIAS, CUCHITAS, ASSÍRIOS E O PROFETA NU



1. No século VIII a.C., enquanto no Antigo Israel atuavam profetas como Amós, Oseias e Isaías, o Egito era governado pelos cuchitas, guerreiros negros que viviam mais ao sul do Nilo. Na Bíblia, os cuchitas aparecem envolvidos na luta do rei Ezequias pela sobrevivência, no período em que viveu sob a ameaça assíria (2Rs 19).

2. Ao ouvir que os cuchitas vinham ao seu encontro para combatê-lo, o poderoso rei assírio recuou, “pois tinha recebido esta notícia a respeito de Taraca, o rei de Cuch: ‘ele partiu para te fazer guerra’” (2Rs 19,9). Nesta pintura, cuja autoria eu desconheço, você vê o confronto entre um soldado cuchita e um soldado assírio.

3. Irritado com a confiança de Ezequias na ajuda cuchita, o profeta Isaías anda nu e descalço, indicando que assim seus aliados seriam levados como prisioneiros: "dessa mesma maneira [nus e descalços] o rei da Assíria levará os cativos do Egito e os exilados de Cuch" (2Rs 2,4). A queda do Egito realmente aconteceu e é mencionada pelo profeta Naum (3,8-10).


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 24 de junho de 2022

JUDAS E ABSALÃO

1. De acordo como 2Sm 18,9-15, Absalão foi capturado por Joab – comandante do exército de Davi – após ter seus cabelos enroscados em um carvalho. Com “sangue nos olhos”, Joab atirou três dardos no coração de Absalão, que morreu após ser golpeado por dez escudeiros que também o perseguiam.

2. A tradição cristã medieval viu em Absalão uma representação antecipada de Judas: Absalão trai Davi; Judas trai Jesus. Além disso, Absalão, o “traidor”, morre “pendurado”, como Judas (Mt 27,5). Aquitofel, aliado de Absalão, se enforca (2Sm 17,23). De fato, há muitos elementos comuns entre as duas narrativas, mas as semelhanças não param por aí.

3. Após ser traído por Absalão, Davi atravessou o Vale de Cedron e subiu o monte das Oliveiras aos prantos (2Sm 15). Jesus, também após ser traído (por Judas), atravessou o Vale de Cedron e entrou em um jardim no mesmo monte (Jo 18,1-2). A grande diferença entre as duas narrativas é que Davi não é alcançado pelas tropas de Absalão. Jesus, como sabemos, é capturado e morto (mas seu reinado é “para sempre”).

4. Tanto os rabinos como os teólogos cristãos medievais já percebiam que alguns personagens bíblicos parecem desempenhar na narrativa o mesmo papel que um personagem mais antigo. Com um pouco de paciência e atenção, você vai encontrar muitos paralelos entre Jesus e figuras como Moisés, Elias, Samuel, Sansão, etc.


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 22 de junho de 2022

BREVÍSSIMA HISTÓRIA DE SATANÁS

1. A palavra hebraica “satan” (שטן) significa “adversário”. Este adversário pode ser humano, como Hadad, rei edomita que se coloca como “satan” (adversário) de Salomão (1Rs 11,14). Por vezes este “adversário” aparece na corte celeste, representado por um dos bney haelohim (filhos de elohim), exercendo a função de advogado de acusação (cf. Jó 1,6). Ele não é adversário de Yahweh, mas das criaturas humanas. Sua função é colocá-las à prova.

2. Apenas em Crônicas “Satan” (agora corretamente traduzido com “s” maiúsculo, cf. 1Cr 21,1) indica o adversário de Yahweh. O termo aparece sem artigo e claramente revela que a teologia judaíta sofreu uma “evolução”, passando a tratar o antigo membro da corte celeste encarregado de apontar as faltas humanas como opositor do próprio Yahweh. Aqui é possível notar a influência do dualismo persa.

3. Antes de ser incorporada essa “novidade”, a ideia que se tinha de Yahweh era bem diferente: era ele quem fazia tanto o bem quanto o mal (cf. Is 45,7; Lm 3,38). Repare que em 2 Sm 24,1 é o próprio Yahweh quem incita Davi a realizar o recenseamento (veja também 1Rs 22,20-23). Mas em Crônicas, texto tardio já influenciado pelo dualismo persa, uma nova interpretação do episódio é apresentada: não foi Yahweh, mas Satan quem incitou Davi a cometer este tropeço (2Cr 21,1).

4. No Novo Testamento a crença na existência de Satanás como opositor de Yahweh aparece com força. A novidade é que agora ele tem ao seu lado um exército de anjos rebeldes, os “caídos” (נפיל), também chamados de “Vigilantes” no livro de Enoque. Reflexos dessa crença aparecem no livro de Judas (v.6), de Pedro (2Pe 2,4) e no Apocalipse (12,4).



Jones F. Mendonça

 

terça-feira, 14 de junho de 2022

JUNG, JÓ E O APOCALIPSE DE JOÃO

1. Tenho na minha estante um livreto escrito por Carl Jung – famoso discípulo de Freud – sobre o livro bíblico de Jó. Ganhei de presente de uma pessoa desconhecida (um tipo de experiência que Jung adorava). O trabalho recebeu o título de “Resposta a Jó” e foi publicado no Brasil pela Editora Vozes. Já nas primeiras páginas Jung explica que não pretende fazer uma exegese fria e pormenorizada do livro de Jó, mas expressar “uma reação subjetiva” ao conteúdo da obra.

2. Embora considere útil a leitura de “Resposta a Jó” para quem lida com a Bíblia de maneira acadêmica, acho que em alguns momentos Jung faz interpretações muito equivocadas. Expus uma crítica ao livro a um grupo de junguianos e recebi um tratamento bastante hostil. Há fanáticos em todo o canto. Bem, mas com um pouco de paciência em meio a tantas divagações, cheguei ao capítulo XIII, parte do livro que trata sobre a representação da “imagem de Deus” no Apocalipse.

3. Esta parte da obra é por demais interessante. Isso porque Jung domina muito bem o contexto religioso do período no qual foi escrito o Apocalipse e também porque é um leitor atento, perspicaz. Ele chama a atenção, por exemplo, para a releitura que o Apocalipse faz do trono divino descrito em Ezequiel, que agora aparece adornado apenas com “matérias que pertencem à natureza inorgânica”. O trono é assustador como em Ezequiel, mas muito mais estranho e frio. Por que?

4. Jung também dá destaque ao contraste tão presente no livro entre o “Cristo manso cordeiro que se deixa levar ao matadouro” e o “Cristo belicoso e iracundo”, “Filho da vingança”, “cujo furor pode agora desencadear-se livremente”. Ele recorre a conceitos como o da “sombra”, do “arquétipo” e do “numinoso” para expor ao leitor uma interpretação psicológica do autor do Apocalipse. Antecipo que não faz um julgamento bom. Fala, por exemplo, em "sentimentos negativos longamente represados, que observamos com frequência naqueles que anseiam por ser perfeitos".


Jones F. Mendonça

sábado, 11 de junho de 2022

JEREMIAS E A "MOSCA" QUE VEIO DO NORTE

1. Jeremias, como Isaías, também acreditava que a confiança que os judaítas depositavam no Egito era inútil (veja Jr 2,18; 42,18). Diferentemente de Isaías, que anuncia sua mensagem encenando um grupo de prisioneiros egípcios sendo levados ao cativeiro caminhando descalços e com as nádegas de fora (20,2.4), Jeremias faz isso usando palavras.

2. Mas são palavras com grande força visual. Em Jr 46,20 o Egito aparece representado sob a forma de uma gazela sobre a qual "pousa" um queretz (קרץ). Veja:

O Egito era uma gazela toda bela,
mas um queretz do Norte [Babilônia] veio e pousou sobre ela [lit. “veio para dentro”].

3. De modo geral as Bíblias traduzem “queretz” por “moscardo”, “mutuca”, “tavão” ou “mosca varejeira”. É difícil saber exatamente que tipo de animal é este porque o termo “queretz” possui uma única ocorrência em toda a Bíblia hebraica. Mas uma vez que “queretz” deriva do verbo “qaratz” ( = apertar, morder), podemos supor com boa dose de certeza que indica uma picada.

4. Considerando que o bicho que “vai para dentro” da gazela (o Egito) representa o poder destruidor de Nabucodonozor, rei da Babilônia (cf. v. 26), talvez indique mesmo uma mosca capaz de causar infecções graves em um animal ou, quem sabe, uma vespa ou espécie de marimbondo. Seja “mosca”, seja “marimbondo”, a força visual da mensagem pouco se altera. Em termos modernos seria como dizer:

A Europa era uma gazela toda bela,
Mas uma “mosca” do Norte [a Rússia] veio até ela.



Jones F. Mendonça

sábado, 4 de junho de 2022

TROCADILHOS E CONTOS ETIOLÓGICOS NA BÍBLIA HEBRAICA

1. A Bíblia Hebraica está repleta de trocadilhos que se tornam invisíveis quando traduzidos para outro idioma. Um exemplo pode ser visto em 2Sm 5,20:
“Então Davi se dirigiu a Baal-Paratzim, e lá os venceu, e disse: ‘rompeu [paratz] Iahweh meus inimigos diante das minhas faces como o rompimento [peretz] das águas’. É por isso que o nome desse lugar é Baal-Paratzim”.
2. Em primeiro lugar é preciso dizer que “baal” (בעל) não é o nome de uma divindade, mas um título que significa “senhor”, “dono”, “proprietário” ou até “marido”. Assim, “baal-paratzim” significa “Senhor de paratzim”.

3. Este é o único caso na Bíblia em que “baal” é utilizado como epíteto divino atribuído a Yahweh. Mas voltemos ao trocadilho. O nome do lugar é explicado do seguinte modo: ele se chama BAAL-PARATZIM porque ali o Senhor PARATZ (rompeu) meus inimigos.

4. O que temos aqui é um conto etiológico etimológico-geográfico. Em casos como este o conto tem a finalidade de explicar o nome de um espaço geográfico, como um monte, formação rochosa, vale, etc.



Jones F. Mendonça