segunda-feira, 24 de abril de 2023

JEREMIAS E O "FLUXO DOS VALES"


1. Jr 49,4 dirige o seguinte oráculo contra os amonitas: “Por que tu te glorias nos vales, fluxo do teu vale, filha rebelde”. Alguns tradutores pensam que “fluxo do teu vale” é uma referência às orgias sexuais praticadas no vale, daí a tradução: “teus luxuriantes vales” (Almeida Revista e Corrigida).

2. Neste caso, o tradutor parece supor que o verbo “fluir” (זוב) é uma referência ao fluxo seminal. De fato, em muitos casos este verbo aparece relacionado ao fluxo de sêmen, como Lv 15,2: “Quando um homem tem fluxo que sai do seu corpo...”. Ocorre que o verbo também pode ser usado para falar dos alimentos que “fluem” da terra.

3. Um exemplo clássico é o “terra que mana leite e mel(Ex 3,8). O verbo traduzido por “mana” é o mesmo de Jr 49,4 e significa exatamente isso: manar, jorrar, fluir. Neste caso, é empregado de forma metafórica, afinal, nem o mel nem o leite “jorram” literalmente da terra, mas podem ser abundantes na terra.

4. No caso de Jr 49,4 o contexto sugere que a crítica se dirige à confiança que os amonitas depositam na fartura de alimentos produzida em seus vales irrigados – no “fluxo dos teus vales” – e nos seus “tesouros” (אוצר), ou seja, em sua riqueza de modo geral. Toda essa discussão pode parecer infrutífera e desnecessária, mas no fim das contas o tradutor precisa decidir.

5. Nunca é demais repetir: não é fácil a vida do tradutor.



Jones F. Mendonça

sábado, 22 de abril de 2023

BÍBLIA, EXEGESE E RACISMO

1. Os versos 7 e 8 do capítulo 4 do livro bíblico de Lamentações parecem indicar que indivíduos com pele “mais branca do que o leite” são mais desejáveis do que aquelas “mais negras do que o carvão” (NVI). Uma leitura apressada sugere que pessoas de pele negra tinham pouco valor na antiga sociedade israelita. Será?

2. Em minha opinião a palavra hebraica traduzida por “branca” (tzahah) não indica cor, mas outra característica presente no leite e na neve. Explico. Embora “tzahah” só apareça neste verso de Lamentações (daí a dificuldade em traduzi-la), ela deriva de outra palavra (tzah) que significa “ofuscante”, “resplandecente”, “abrasador”, etc.

3. No livro bíblico de Cantares (5,10), por exemplo, o amado é descrito como “tzah” e “adom”. O texto destaca o VIGOR da pele de seu amado e sua aparência AVERMELHADA ( = corada, saudável): "meu amado é ALVO [ou melhor, "resplandecente"] e rosado" . Ou seja, é "puro vigor", um "homão". 

4. No caso de Lamentações a pele “enegrecida” [hashakh] não é desvalorizada pela cor, mas pela imagem evocada. Repare que no v. 8 a pele “enegrecida” faz alusão a uma pele seca, sem vigor: “sua pele [enegrecida] se lhe colou aos ossos, ela é seca como a lenha”. A mesma descrição aparece em Jó 30,30: “Minha pele se enegrece [shahar] e cai”.

5. Não é minha intenção aqui fazer uma leitura politicamente correta das Escrituras. No Antigo Testamento determinadas condutas são nitidamente reprováveis à luz dos valores éticos e morais adotados em nossa sociedade moderna. Mas racismo não há (até onde pude constatar).


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 13 de abril de 2023

JEZABEL, POR TINA PIPPIN


1. Jezabel, princesa fenícia dada como esposa ao rei Acab, converteu-se em uma espécie de ícone da imagem feminina considerada degradante: vulgar, sedutora, mentirosa, feiticeira, traiçoeira, duas caras, desavergonhada, e por aí vai. Na década de 80 – lembro-me bem – mulheres que tingiam o cabelo eram acusadas de estar possuídas pelo “espírito de Jezabel”. Isso na igreja batista...

2. Em “Jezebel re-vamped”, Tina Pippin rastreia o desenvolvimento da representação dessa rainha nos textos e na tradição. Para a autora, o discurso sobre Jezabel muitas vezes foi utilizado para aviltar a imagem do “outro”, sobretudo da mulher estrangeira, considerada perigosa, sedutora, má, como as negras africanas escravizadas no Sul dos Estados Unidos.

3. O artigo de Pippin pode ser lido no volume 69/70 da Revista Semeia (1995, pp. 221-233). 


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 12 de abril de 2023

A FILHA DE JÓ E O ANTIMÔNIO NOS OLHOS


1. No capítulo quatro, o livro do profeta Jeremias compara Jerusalém a uma mulher extremamente bela, porém desprezada. Ela veste púrpura, tem enfeites de ouro, e seus olhos estão “rasgados com antimônio” (4,30), ou seja, alargados, pintados com tintura. O antimônio já era conhecido por suas qualidades cosméticas por indianos e egípcios. Era bom para sombrear os olhos.

2. Esse metal sólido, acinzentado e de constituição quebradiça reaparece poucas vezes na Bíblia Hebraica. Sua ocorrência mais inusitada surge em Jó 42,14. De acordo com o texto, Jó teve três filhas: Jemimah, Qetziah e Qeren-Hapukh. Os significados de Jemimah e Qetziah são incertos, mas o de Qeren-Hapuk é claro. Significa “chifre de antimônio” (קרן הפּוךְ).

3. Bem, se o antimônio fosse um metal dotado de grande dureza, seu nome poderia indicar força, uma vez que a palavra hebraica qeren (chifre) é usada como metáfora para "força" (cf. Sl 18,2). A moça seria conhecida por algo como “chifre/força de aço”. Mas não é este o caso. Minha hipótese é que “chifre” podia funcionar como referência visual para o prolongamento dos olhos pelo antimônio.

4. Assim, "chifre de antimônio" seria uma alusão à sua beleza, a seus olhos alongados. Quer saber se tenho certeza? Claro que não, mas esta é minha melhor hipótese.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 7 de abril de 2023

OS SALMOS, EM CINCO PARÁGRAFOS CURTOS


1. O Livro dos Salmos, tal como se encontra em nossas Bíblias, é fruto de um longo trabalho feito por compositores, colecionadores e editores. Estes últimos dispuseram os Salmos de acordo com alguns esquemas programáticos. Algumas vezes esse esquema segue a lógica da autoria: 42-49 (Coré); 50 (Asaf); 51-72 (DAVI); 72-83 (Asaf) e 84-89 (Coré). Note que o “Salmo de Davi” aparece no centro, cercado por Asaf e Coré (disposição quiásmica).

2. Mas até mesmo os títulos de “autoria” parecem ter sido incluídos pelos editores. Aliás, a tradução “Salmo de...” (Davi, Coré, Asaf...) tem sido objeto de muita discussão. Afinal, o Salmo 51 foi escrito por Davi, foi inspirado na vida de Davi ou o nome “Davi” é apenas uma homenagem à personalidade a qual se atribuía o patrocínio da coleção? Está confuso? Eu explico.

3. Na abertura do Salmo 3 lemos assim: “mizmor LeDavid”. Uma tradução mais fiel seria “Salmo para Davi” ou “Salmo a Davi” (o “Le”, antes do nome de Davi é preposição). Em alguns casos esse “Le” (לְ) indica pertencimento, como consta, por exemplo em um selo encontrado em Jerusalém datado para a época de Ezequias: “PERTENCE a Ezequias, filho de Acaz” (LeEzequias).

4. Na Bíblia essa preposição também funciona como indicativo de pertencimento quando aparece antes de nomes próprios. Quer exemplos? Lá vai. Veja o caso de Rt 4,9: “comprei da mão de Noemi tudo o que PERTENCIA a Elimelec” (לאלימלך). Veja agora 1Sm 27,6: “É por isso que Siceleg PERTENCE aos reis de Judá” (למלכי). Assim sendo, porque não devemos ler: “Salmo pertencente a Davi”?

5. Seja como for, esses títulos deixam uma coisa bem clara: de alguma maneira o editor via afinidade entre o Salmo e a personalidade referida no título. Talvez pensasse que era seu autor, talvez patrocinador, talvez que essas personalidades apenas funcionavam como inspiração para um poeta posterior, que se imaginava, por exemplo, na pele de Davi. Quem saberá?


Jones F. Mendonça

sábado, 1 de abril de 2023

JEREMIAS E AS SOMBRAS DA GUERRA



1. O livro do profeta Jeremias, no capítulo 6, descreve os sinais de uma guerra que aponta no horizonte, conduzida pelo “mal que vem no Norte” (v.1). Na cidade de Jerusalém, a “bela e delicada Filha de Sião”, o povo está em polvorosa: pastores recolhem seus rebanhos, atravessam os portões e tentam protegê-los, cada qual a seu modo (vv. 2-3).

2. Com a intenção de materializar o terror que assola a população de Jerusalém, o texto busca auxílio em imagens que ainda fazem parte do nosso cotidiano. A noite, tão temida por quem experimenta um cerco inimigo, é anunciada poeticamente pelo efeito da luz do sol sobre os corpos. Uma luz que se despede e dá lugar às sombras, que dá lugar à morte:
“ai de nós que o dia declina,
que se alongam as sombras da tarde” (Jr 6,4).


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 22 de março de 2023

SOBRE "NUVENS", AGOUREIROS E CANNABIS


1. A palavra “nuvem”, em hebraico, é ‘anan (ענן). Ela aparece, por exemplo, em Gn 9,13: “porei nas NUVENS o meu arco”. Pode parecer bem estranho, mas o hebraico possui um verbo usado para designar a ação de fazer nuvens. Veja: “E acontecerá que quando eu ENEVOAR (verbo) NUVENS (substantivo) sobre a terra...” (Gn 9,14).

2. “Enevoar” e “nuvem” são palavras de mesma raiz e grafadas do mesmo modo: ענן. Bem, mas a afinidade entre verbo e substantivo é algo muito comum, até em nosso idioma. Estranho mesmo é que os “adivinhos” ou “agoureiros” eram tratados como “enevoadores” ou “produtores de nuvens” (verbo no poel, forma intensiva). Por quê?

3. Inicialmente é preciso dizer que ‘anan serve para designar “nuvem” ou “fumaça”, como em Ez 8,11: "[cada um] elevava o perfume de uma NUVEM de incenso". O texto descreve a fumaça produzida pelos incensos dos 70 anciãos que adoravam divindades estrangeiras (aparentemente, Tamuz) no Templo de Jerusalém.

4. Assim, talvez os adivinhadores tenham recebido o rótulo de “enevoadores” ou “produtores de fumaça” porque executavam seus rituais de adivinhação em meio à fumaça produzida pelo incenso ou, quem sabe, por outros materiais, como ervas. Não é muito difícil imaginar o cenário.

5. Em 2020 um grupo de arqueólogos descobriu incenso misturado com maconha em um antigo altar localizado em Tel Arad, ao sul de Jerusalém. Bem, as demais conclusões ficam por tua conta😃. Sobre a maconha encontrada em Tel Arad, leia aqui.


Jones F. Mendonça

terça-feira, 21 de março de 2023

O HEBRAICO E SEU ALFABETO REDUZIDO

1. Uma das primeiras coisas que o estudante de hebraico aprende é que seu alfabeto possui 22 consoantes e que palavras de mesma raiz geralmente carregam algum tipo de conexão, como ‘ebed (servo) e ‘abad (trabalho). Ambas as palavras são grafadas com as mesmas consoantes: עבד. Uma vez que o hebraico não possui vogais, a vocalização era transmitida de pais/mães para filhos(as).

2. Mitchell First, em artigo publicado no Jewish Link, chama a atenção para o seguinte: assim como o árabe moderno, há boas razões para pensar que o hebraico mais antigo possuía 27 ou 29 consoantes e não 22 como atualmente. Ele explica que algumas consoantes foram aglutinadas em uma única, fenômeno observado no ayn, o het, o shin, o zayin e o tzad.

3. O resultado prático disso é que algumas palavras hebraicas, embora visualmente aparentem possuir a mesma raiz, na verdade podem conter consoantes que foram modificadas pela aglutinação. Assim, o fenômeno pode conduzir o exegeta a buscar relações que jamais existiram entre palavras formadas pelas mesmas consoantes, como entre עצם, que significa “forte”, e עצם, que significa “próximo”.

4. Interessou-se pelo o assunto? Siga o link.



Jones F. Mendonça

SOBRE O JEJUM DE DANIEL

1. Muita gente se pergunta a respeito das razões que levaram o autor do livro de Daniel a registrar a rejeição dos judaítas empregados na corte babilônica às “iguarias do rei” (1,8). Seriam esses alimentos oferecidos a divindade locais? A abstenção visava evitar o luxo e demonstrar humildade? Uma dieta de legumes é mais saudável? Seria Daniel um vegetariano ou vegano? Nada disso. A razão é outra.

2. O episódio tem finalidade didática, e é destinado às comunidades judaicas da diáspora, expostas diariamente aos costumes estrangeiros, vistos como uma ameaça à sua fé e às suas tradições. Veja que Daniel rejeita alimentos de origem animal, mas aceita alimentos “semeados” (זרע; “legumes” não é uma boa tradução), ou seja, tudo o que vem da terra (exceto o vinho, cf. 1,8), como frutas, legumes, verduras, azeite e cereais.

3. O profeta aparece como modelo de como se portar em terras estrangeiras no que diz respeito à dieta judaica, baseada em um conjunto de regras alimentares estabelecidas pela tradição (Torah/Talmud). Assim, fez opção por uma alimentação especial, atualmente chamada de kosher. As regras preveem uma série de restrições relacionadas aos alimentos de origem animal e ao vinho, mas poucas em relação aos frutos da terra.

4. Legumes, frutas, verduras e cereais precisavam passar por um exame relativamente simples: deveriam ser bem lavados para e evitar a ingestão de pequenos moluscos e insetos. Assim, o texto quer enfatizar que o vigor de Daniel e de seus companheiros (cf. 1,15) vem da fidelidade a seu Deus, e não dos alimentos em si. A Lei judaica jamais proibiu o consumo de carne ou de vinho.

5. Talvez você não saiba, mas atualmente existe até telefone kosher e um KosherTube!




Jones F. Mendonça

segunda-feira, 20 de março de 2023

GABRIEL, O VALENTE DE DEUS


1. Além de Ish/Ishah (homem/mulher) e zakar/neqebah (macho/fêmea), o hebraico emprega os termos gibbor/geberet para designar um homem ou mulher dotados de grande poder. São classificados como Gibbor: Ninrode, Jefté, Davi e Jeroboão, dentre outros.

2. Geberet é aplicado, por exemplo, a mulheres como Sara, “poderosa” em relação a Hagar, em Gn 16,4: “Quando [Hagar] se viu grávida, começou a olhar sua GEBERET (גברת) com desprezo”. A tradução “sua senhora”, funciona bem aqui.

3. Tanto gibbor como geberet vêm da raiz verbal GaBaR = ser forte, poderoso. Também deriva da mesma raiz o nome Gabriel (GaBRi-el), que significa “poderoso de El”, ou “poderoso de Deus” (Dn 8,16; 9,21).



Jones F. Mendonça

SOBRE BÊNÇÃOS E SOBRE JOELHOS


1. O verbo “abençoar”, no hebraico, é barakh (lê-se baraR, com o “r” pronunciado na garganta). É no mínimo curiosa a semelhança entre barakh (abençoar) e berekh (joelho). Seria mera coincidência? Suponho que não.

2. Vale dizer que barakh pode ser traduzido tanto por “abençoar” como por “ajoelhar”. Considerando que o hebraico é um idioma muito visual, é provável que o ato de abençoar envolvesse alguma ação relacionada aos joelhos.

3. Há poucos casos em que “barakh” deve ser traduzido por “ajoelhar” e não por “abençoar”. Um exemplo poder ser tomado de 2Cr 6,13: “E AJOELHOU [Salomão] sobre os joelhos dele na frente de toda a assembleia”.

4. É difícil saber se o ato de abençoar aparece relacionado aos joelhos do abençoador ou do abençoado. Provavelmente do abençoado, que dobrava os joelhos diante do abençoador, esperando o anúncio da bênção.

5. Ou, talvez indique os joelhos do abençoador, sobre os quais o abençoado se debruçava (cf. imagem, produzida por Gustave Doré).



Jones F. Mendonça

sábado, 18 de março de 2023

DOS NOMES


1. Não é difícil encontrar gente dizendo que "nome não se traduz". Assim, argumentam que nomes bíblicos como Abraão, Moisés e Jacó devem ser pronunciados como no hebraico: Avraham, Mosheh e Ya'aqov. Jesus – dizem os mais puristas – deve ser tratado como Yeshua ou Yehoshua. Que canseira...

2. Ocorre que alguns judeus do primeiro século não pareciam ver problemas em ajustar seus nomes à cultura na qual estavam inseridos. O nome judaico de Paulo, por exemplo, é Shaul (Saul; שאול). No mundo grego ficou conhecido como Saulos (σαυλος) e no mundo latino como Paulos (παυλος).

3. Tiago é outro exemplo. Na carta que leva seu nome, o personagem é tratado como Iakobos (Ιακωβος). Mas Iakobos é versão grega do hebraico Ya'aqov (Jacó; יעקב). Na Espanha ficou conhecido como Saint Iago, daí Santiago. Nosso "João" era Yohanan (יוחנן) em hebraico e Iohannes (Ιοαννης) em grego.

4. Na boca do povo os nomes são como foca ensaboada e manteiga escorrendo pelos dedos.


Jones F. Mendonça

terça-feira, 7 de março de 2023

FRAGMENTO COM O NOME DE DARIO, O PERSA, EM LAQUIS

1. Na semana passada os jornais de Israel anunciaram a descoberta de um pequeno fragmento de cerâmica contendo uma inscrição fazendo referência a Dario, rei persa mencionado nos livros de Esdras, Neemias, Daniel, Ageu e Zacarias.

2. Haggai Misgav, famoso epigrafista da Universidade Hebraica de Jerusalém, confirmou que a inscrição é autêntica, ou seja, que o tipo de escrita gravada no objeto corresponde ao tipo de grafia aramaica usada na época de Dario.

3. Outros detalhes pareciam depor a favor da autenticidade do artefato: 1) a cidade de Laquis, local onde foi descoberto o fragmento, funcionou como centro administrativo durante o período persa; 2) exames de laboratório atestaram a antiguidade da cerâmica. Tudo parecia perfeito.

4. Mas assim que viu a notícia na imprensa, um especialista em escrita aramaica revelou que a inscrição fora feita por ele enquanto visitava o local, há alguns meses. O alegado objetivo dessa ação: demonstrar a seus alunos como uma inscrição era feita. O caco - realmente antigo, mas sem inscrições - havia sido apanhado no chão.

5. O episódio revela que não é tão difícil falsificar um artefato arqueológico. Sobretudo quando os “especialistas” estão com muita vontade de que ele seja autêntico. Mais detalhes no Haaretz.


Jones F. Mendonça

terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

SOBRE SATANÁS E SUA "QUEDA"

1. Uma interpretação que se tornou tradicional e remonta aos primeiros séculos vê Is 14 e Ez 28 como uma espécie de sinopse poética da queda de Satanás, desde sua rebelião contra Yahweh até sua punição definitiva, sendo “reduzido a cinzas” (Ez 28,18), “precipitado no abismo” (Is 14,15). Mas tanto Isaías como Ezequiel falam da punição de reis de carne e osso.

2. Isaías 14,3-23 consiste em um mashal (sátira poética) contra o rei da Babilônia, nação responsável pela destruição de Jerusalém no início do século VI. Ez 28, 11-19 é um qiyna (elégia, lamento fúnebre) contra o rei de Tiro, cidade fenícia conhecida por seu comércio marítimo. Os destinatários dos oráculos são indicados nos títulos (Is 14,4 = Babilônia; Ez 28,12 = Tiro).

3. Além de Ezequiel e Isaías, oráculos contra nações estrangeiras também podem ser encontrados, por exemplo, em Amós, Jeremias, Naum e Obadias. De forma geral esses oráculos seguem um modelo: tal rei foi tomado pelo orgulho, por isso será punido severamente por Yahweh. São recorrentes as imagens da “queda”.

4. O rei de Edom, arrogante porque habita na “fenda do rochedo”, e que deseja ter “entre as estrelas o seu ninho” (Ob 1,3-4), será precipitado de lá. O rei de Tiro, orgulhoso do sucesso de seu “comércio intenso”, será “atirado por terra” (28,16-17). Em Isaías a imagem é a mesma: “dizias no teu coração: ‘Hei de subir até o céu... [mas] foste precipitado no Sheol” (Is 14,13-15).

5. As palavras atribuídas a Jesus, em Lc 10,18: “Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago!” apenas reproduzem uma percepção já consagrada na literatura judaica: “todos os poderes opressores (humanos ou não) serão lançados por terra". Mas não há qualquer razão para associar Lc 10,18 a Isaías 14 ou Ezequiel 28. Isso é invenção dos exegetas alegoristas dos primeiros séculos.


Jones F. Mendonça

sábado, 24 de dezembro de 2022

SALOMÃO DE BOCHECHA ROSADA

1. Assim como os pintores renascentistas retratavam os personagens bíblicos como europeus (fisionomia, vestes, arquitetura, etc.), os tradutores europeus certamente também foram influenciados por sua própria cultura enquanto traduziam a Bíblia. Dou um exemplo.

2. O Livro dos Cânticos, capítulo 5, verso 10, geralmente é traduzido desse modo: “Meu amado é branco e rosado”. Esta tradução sugere que o amado é branco com bochechas rosadas. Mas não é isso. Explico.

3. Uma tradução mais literal fica assim: “meu amado é ofuscante/ardente e vermelho”. A ideia talvez seja retratá-lo como Davi ou quem sabe destacar seu vigor, representá-lo como uma brasa avermelhada e ofuscante. Difícil saber com certeza.

4. A palavra traduzida por “branco” e que optei por traduzir por “ofuscante” é “tzah” (צח). Ela reaparece em Is 18,4 para qualificar o calor: “como um calor ardente  [tzah] em plena luz do dia” e em Is 32,4: “a língua dos gagos falará com desembaraço e com limpidez”.

5. “Tzah” sempre indica algo brilhante, ofuscante, claro, límpido, nunca a cor branca. Veja que até os cuchitas, que eram negros, são descritos como sendo “altos e polidos”. O termo que traduzi por “polido” aqui “morat” (מורט), um verbo.

6. Os tradutores divergem quanto à tradução de “morat”. A NVI entende que os cuchitas são “um povo alto e de pele macia”. A BJ que são “gente de alta estatura e de pele bronzeada”. Eita! Quem tem razão? Nem a NVI nem a BJ.

7. O verbo é empregado para indicar o “bronze polido” ou a “espada polida” (cf. 1Rs 7,45; Ez 21,10-11). Tudo isso sugere que quando alguém era qualificado como “reluzente”, “polido”, “brilhante”, “límpido” ou “ofuscante”, a ideia era indicar sua força, seu vigor.

8. Assim, tanto o amado do Livro dos Cânticos, como os poderosos guerreiros cuchitas mencionados no livro do profeta Isaías, eram tratados como pessoas “ofuscantes”, ou seja, “vigorosos”.




Jones F. Mendonça

LAMEC, JÓ E SUA MULHERES EM MANUSCRITO MEDIEVAL


1. Na folha 23r do manuscrito medieval Speculum humanae salvationis (séc. XV) duas imagens chamam a atenção. À esquerda aparece Lamec sendo importunado por suas esposas Adah e Tzelah. À direita você vê , sendo castigado por sua mulher e por Satanás. Comparações entre cenas tomadas de textos diferentes são muito comuns nesses manuscritos.

2. Ocorre que Gn 4,17-25 nada diz sobre o comportamento das esposas de Lamec. Por que aqui estão sendo retratadas como megeras? No caso do livro de Jó, os homens que se opõem a ele (Elifaz, Beldad, Sofar e Eliú) dizem coisas muitíssimo mais tolas a seu respeito que sua esposa. Por que sua ela aparece aqui como algoz, ao lado de Satanás?

3. Simples: porque espezinhar mulheres era um exercício que dava muito gosto a boa parte dos homens religiosos na era medieval.

Dê uma boa olhada no manuscrito aqui:



Jones F. Mendonça

terça-feira, 29 de novembro de 2022

A LUTA DE JACÓ E A "JUNTA DA COXA"

1. Em Gn 32,24 lemos a seguinte narrativa a respeito de Jacó: “E foi deixado Jacó sozinho, e empoeirou-se um homem com ele até a subida da alvorada”. Uma vez que o contexto sugere ter havido algum tipo de embate entre Jacó e este homem desconhecido, a decisão de traduzir o verbo “empoeirar” (אבק) por “lutar” me parece bem razoável (é como entendeu o texto grego da LXX).

2. É possível que o uso de “empoeirar” – um verbo que só aparece aqui – tenha como finalidade indicar a poeira que sobe do chão quando dois indivíduos lutam freneticamente agarrados um ao outro. No Rio de Janeiro, quando dois ou mais indivíduos brigam ferozmente, costumamos dizer que “o couro comeu” (talvez seja uma referência ao cinto de couro usado para disciplinar os filhos).

3. Traduzir expressões idiomáticas e até mesmo algumas formas verbais oriundas de um idioma antigo é uma tarefa difícil, porque em boa parte das vezes nem o falante tem condições de explicar com clareza sua origem. Sem a contribuição do falante original, as palavras ganham asas, tornam-se lisas como limo em calçada velha. No verso seguinte a dificuldade da tradução é outra. Veja:
“E vendo [o homem desconhecido] que não prevalecia sobre ele [Jacó], tocou A PALMA DO QUADRIL DELE [o que é isso?] e arrancou (ou “deslocou?) a palma do quadril enquanto Jacó SE EMPOEIRAVA com ele”.
4. Meus queridos, o que raios é essa “palma do quadril” (כף־ירך)? O primeiro termo é geralmente usado para indicar a palma das mãos e a sola do pé. O segundo para designar a região que vai da cintura à coxa (e inclui os testículos), daí “palma do quadril”. De modo geral os tradutores optam por “junta da coxa”. Mas será que é isso mesmo?

5. Outra questão: depois que foi “tocada” pelo homem desconhecido, a “palma do quadril” de Jacó foi “deslocada” – como prefere a maioria dos tradutores – ou foi “removida”? O verbo empregado aqui (יקע) possui campo semântico amplo. 

6. Não é fácil a vida do tradutor.




Jones F. Mendonça

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

MOISÉS E SALOMÃO: NÃO POSSO/NÃO SEI “SAIR OU ENTRAR”

1. Em Deuteronômio 31,2 o Moisés já velho e cansado diz assim: “Tenho hoje cento e vinte anos. Não posso mais sair ou entrar”. Como assim não pode sair ou entrar? Será que Moisés já não andava mais?

2. Certamente não é isso. Veja que uma declaração muito parecida surge na boca do jovem Salomão, em 1Rs 3,7: “sou um pequeno jovem. Não sei sair ou entrar”. Como se pode ver, a expressão não indica incapacidade física.

3. Por alguma razão, uma pessoa muito jovem ou muito velha sabia que em tais condições não tinha capacidade para “sair ou entrar”. Mas o que significa isso? Creio que Nm 27,16 pode iluminar essa questão:
Que Iahweh, Deus que dá fôlego a toda a carne, estabeleça sobre esta comunidade um homem que saia diante da face dela e que a faça sair e entrar, para que a comunidade de Iahweh não seja como um rebanho sem pastor.
3. Note que “fazer sair e entrar” indica neste texto alguém que seja capaz de liderar a comunidade, de modo que a faça “sair” e “entrar”, ou seja, que seja capaz de dirigi-la, guiá-la, orientá-la como um pastor que conduz suas ovelhas.

4. O hebraico – vivo dizendo – é um idioma muito visual.



Jones F. Mendonça

sábado, 15 de outubro de 2022

O CRISTO MORTO NO CÂNON ETÍOPE



1. Embora a palavra “Bíblia” seja geralmente usada para indicar um conjunto específico de livros considerados sagrados, há na verdade várias “Bíblias” (ou melhor, cânones bíblicos). A Bíblia judaica (ou Bíblia Hebraica) contém apenas 36 livros (equivalem aos 39 do AT protestante); A Bíblia católica possui 73; A Bíblia protestante 66; e a Bíblia etíope 83.

2. O cânon etíope, mas extenso, inclui o Livro dos Jubileus, o Livro de Enoc e o Salmo 151, dentre outros. Caso tenha curiosidade em relação a esta Bíblia, você pode dar boa olhada no manuscrito e em suas magníficas gravuras acessando o site da British Library.

3. Repare nesta ilustração da página 25 (parte superior). Ela exibe um tema recorrente na arte medieval e renascentista: a lamentação sobre o Cristo morto. O modo de representar o corpo de Cristo, com mulheres chorando aos seus pés e sobre sua cabeça aparece em outras telas famosas. Sandro Botticelli, por exemplo, retratou o Cristo morto utilizando um esquema muito parecido.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

CARAVAGGIO E AS TRÊS MARIAS


Muita coisa pode ser dita sobre esta tela de Caravaggio (A deposição de Cristo, 1602-3), como a disposição dos personagens em leque. Mas quero me concentrar na parte superior, onde são retratadas as três Marias: Maria mãe e de Jesus, Maria Madalena e Maria de Clopas (Jo 19,25). A primeira olha para o corpo sem vida; a segunda para dentro de si mesma; a terceira para os céus. Note ainda que as mãos das três funcionam como extensão olhos.



Jones F. Mendonça

ÁGAPE E FILEO NO EVANGELHO DE JOÃO

1. Não poucos manuais de teologia e comentários bíblicos sugerem que o grego do Novo Testamento distingue dois tipos de amores: fileo e ágape. Fileo serviria para indicar o amor entre amigos ou entre irmãos; ágape para sinalizar expressões de amor incondicional, como o amor divino. Mas será que essa hipótese se sustenta?

2. Com a ajuda de um software simples e gratuito como a e-Sword é possível rastrear todas as ocorrências desses dois verbos nos Evangelhos. Em Jo 16,27, por exemplo, lemos assim: “o próprio Pai vos AMA, porque me AMASTES e crestes que vim de Deus”. A palavra grega traduzida por AMA e AMASTES é fileo, não ágape.

3. Repare que neste caso, tanto o amor divino dirigido aos humanos como o amor dos humanos dirigidos a Jesus são indicados pelo verbo fileo. Na verdade, agape e fileo eram usados de forma intercambiável e podiam significar a mesmíssima coisa: AMOR (entre Deus e humanos, entre humanos e Deus, entre humanos e humanos).


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

O GÊNESIS E O TELEFONE DA CRIAÇÃO



1. A origem do nome do serviço de combate ao crime chamado “Disque denúncia” precisa ser situada no tempo em que os aparelhos telefônicos faziam ligação por meio de um disco numérico giratório. Foi graças a um modelo de telefone específico que “discar” passou a ser usado como sinônimo de “fazer uma ligação telefônica”. Com o tempo é provável que pouca gente se dê conta de como foi estabelecida a relação entre “discar” e “telefonar”.

2. Recorrendo ao processo descrito acima é possível descobrir a origem de alguns verbos hebraicos. Um exemplo é o verbo bara’ (ברא), geralmente traduzido por “criar”. Em alguns casos bara’ indica a ação de cortar árvores (cf. Js 15,17-18), ou de golpear com uma espada (cf. Ez 23,47). Mas que tipo de relação haveria entre “criar” e “golpear” (com espada, com machado)? A resposta pode ser encontrada na atividade de um artesão escultor.

3. Note que a atividade do escultor envolve a ação de cortar/desbastar/esculpir entalhes, dando forma ao objeto que se deseja CRIAR. Com o tempo, “cortar/desbastar” passou a ser usado como “criar”, na medida em que o processo de criação envolve o corte/desbaste do material utilizado como matéria prima. O hebraico é um idioma muito visual, característica que proporciona muita beleza ao texto, sobretudo à poesia.

4. Vale dizer que bara’ nunca indica “criar do nada”, como sugerem alguns dicionários. Esta é uma dedução que aparece relacionada à teologia, não à semântica.


Jones F. Mendonça

A GRÁVIDA E O FETO NA BÍBLIA HEBRAICA

1. Quando traduzido literalmente, Eclesiastes 11,15 fica desse jeito: “Assim como não conheces o caminho do vento ou dos OSSOS (עצם) no ventre da CHEIA (מלא), também não conheces a obra de Deus”. Ficou confusa a tradução?

2. Tendo em mente que os “ossos” são uma referência aos ossos do “embrião” e o “cheia” faz um apelo visual à aparência da “grávida”, tudo se esclarece. Assim, temos: “...ou do EMBRIÃO no ventre da GRÁVIDA”.

3. A palavra “embrião” (גלם) reaparece em algumas Bíblias em português no Sl 139,16. Veja:
Teus olhos viam o meu EMBRIÃO. No teu livro estão todos inscritos os dias que foram fixados e cada um deles nele figura (Sl 139,16).
4. Neste caso, a palavra hebraica traduzida por embrião é outra, “golem”, termo de tradução difícil, porque só aparece uma única vez na Bíblia Hebraica (trata-se de um hápax legomenon).

5. “Golem” vem da raiz verbal “galam”, cujo sentido é “dobrar”, “enrolar”. O feto aqui é chamado de “enrolado/enrugado”. Mais uma vez o apelo é visual, talvez obtido pela observação de fetos abortados ou removidos do ventre materno pela violência (Cf. 2Rs 8,12).



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

O SOGRO, O GENRO E O "ÚTERO" NA BÍBLIA HEBRAICA

1. Em nosso idioma usamos “sogro” para designar o pai da mulher com quem o “noivo” se casou (ele é "genro"). No hebraico bíblico – por mais estranho que possa parecer – um só substantivo servia para indicar “sogro” e “noivo”: חתן (hatan). Como explicar isso? Em minha opinião o termo tinha essa dupla função porque era usado para indicar qualquer uma das partes envolvidas no acordo de casamento: o pai da noiva e o noivo. Como cheguei a essa conclusão?

2. Bem, além do substantivo hatan, o hebraico possui um verbo de mesma raiz, hatan, cuja finalidade é indicar a relação entre genro e noivo. Veja: “Hatan (Aliai-vos) a nós: vós nos dareis vossas filhas e tomareis as nossas para vós” (Gn 34,9). Aqui tudo se esclarece: o verbo indica a aliança de casamento entre as famílias; o substantivo as partes que selam o acordo (sogro e noivo). A noiva, coitada, era tratada apenas como mercadoria, como útero (cf. Jz 5,30).



Jones F. Mendonça

SOBRE COCHONILHAS, VERMES E CORANTES


1. Na Bíblia a palavra hebraica תולע (tola') é traduzida ora por “verme” (cf. Ex 16,20; Is 41,14) ora por “carmesim/escarlate” (vermelho vivo, cf. Lm 4,5). Com explicar isso?

2. Bem, é que o vermelho utilizado para tingir roupas vinha da cochonilha-do-carmim, um pequeno inseto que se alimenta parasitando cactos.

3. Assim, תולע (tola') designa tanto uma cor como um “bichinho”. É como fazemos hoje com o “laranja”, simultaneamente nome de cor e de fruta.

4. No livro das Lamentações (4,5) fica muito claro que o termo deve ser traduzido por cor, não por "bichinho". Veja:
"os que se criaram no תולע (ou seja, no "vermelho", cor da nobreza), agora apertam-se no lixo".


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

DAS TRADUÇÕES

1. No hebraico bíblico – escrito apenas com consoantes – a partícula את pode ser lida como “at” (pronome pessoal “tu”, no feminino, mas também excepcionalmente no masculino), “et” (preposição “como”) ou simplesmente como indicativo do objeto direto (sem tradução). Você pode estar se perguntando: “como os judeus conseguiam ler e interpretar corretamente os versos sagrados?”. Bem, a vocalização do texto, e, portanto, também sua tradução, foi preservada pela tradição, até que surgiram os massoretas.

2. Os massorestas eram escribas judeus cuja vida era dedicada à preservação das Escrituras. No século VII d.C. estes estudiosos inseriram sinais vocálicos ao lado e acima das consoantes (uma série de pontos e traços) com a finalidade de preservar a pronúncia correta do texto, de forma que ela não se perdesse. Ocorre que quando comparamos as traduções do texto hebraico feitas para outros idiomas (como o grego e o siríaco), notamos que nem sempre os tradutores judeus estavam de acordo em relação ao modo como o texto deveria ser lido e traduzido.

3. Essa característica do texto hebraico gerou tantos problemas que é até difícil de explicar. Quer saber o lado bom disso? Os tradutores têm um passatempo que nunca se esgota. E é de graça 😀


Jones F. Mendonça

terça-feira, 9 de agosto de 2022

JEREMIAS E O DEUS QUE CHORA

1. Por razões equivocadas e injustas o profeta Jeremias ficou conhecido como “profeta chorão”. Há duas razões principais para a origem deste rótulo: a versão grega das Lamentações (Septuaginta) atribui a autoria do livro a Jeremias, que é apresentado sentado e chorando enquanto compõe os belíssimos poemas estruturados em cinco partes. A segunda razão vem do livro das Crônicas, obra que apresenta Jeremias como autor de um lamento sobre a morte de Josias, rei que capitulou após ser atingido por arqueiros egípcios liderados pelo Faraó Neco (2Cr 35,25). É importante destacar que Davi também é apresentado como compositor de lamentos fúnebres (2Sm 1,17-27). Seja como for, o apelido de “profeta chorão” atribuído a Jeremias acabou consagrado pela tradição.

2. Mas um leitor atento perceberá que Jeremias praticamente não chora no livro que leva seu nome. Vale destacar ainda que Davi (5 vezes) e José (8 vezes) são muitas vezes apresentados chorando e nem por isso ficaram conhecidos respectivamente como “o rei chorão” e “o filho chorão de Jacó”. Na verdade, o livro do profeta Jeremias enfatiza muito mais o choro de Deus que o do profeta*. Um exemplo pode ser encontrado em Jr 31,20. Ao falar sobre Efraim (Israel), “seu filho querido”, Deus diz assim: “Por isso murmuram minhas entranhas por ele, afetadas por intenso amor”. Muitos textos sugerem que o choro era percebido como uma espécie de transbordamento das estranhas. Delas vinham as lágrimas, manifestação concreta do esgotamento e desfalecimento do corpo.

3. De modo geral a imagem de Deus chorando não agrada os teólogos mais ortodoxos (sobretudo calvinistas), que veem essa expressão de dor como fraqueza, como indicação de mudança de humor, de instabilidade. A aceitação do choro divino afetaria gravemente um dos principais "atributos naturais de Deus": a imutabilidade (ah, esse deus impassível dos filósofos...). Bem, Nietzsche dizia que só poderia acreditar em um Deus que soubesse dançar. Parafraseando o filósofo eu diria que só faz sentido acreditar em um Deus que é capaz de chorar.

*Aos interessados no choro de Deus no livro do profeta Jeremias, sugiro a leitura do artigo “The Tears of God in the Book of Jeremiah”, escrito por David A. Bosworth e publicado na Revista Biblica (Vol. 94, nº. 1 (2013), pp. 24-46).



Jones F. Mendonça

terça-feira, 2 de agosto de 2022

AS ENTRANHAS DO JUSTO SOFREDOR

1. Traduzido literalmente, o Sl 26,2 fica desse jeito: “examina-me, Senhor, coloca-me à prova, depura meu coração e meus rins”. A palavra hebraica traduzida por “depura” é tzaraf (צרף), utilizada para indicar a atividade do ourives na purificação de metais preciosos. Mas por que o salmista pede para que seu coração e seus rins sejam “depurados/purificados”?

2. No hebraico, os rins, o coração, o fígado, o ventre aparecem como metáforas para tudo aquilo que está oculto, como pensamentos, intenções, desejos, etc. Ao pedir para que seu “coração” e seus “rins” sejam depurados, o salmista está dizendo algo do tipo: “penetra nas minhas entranhas, no subsolo dos meus pensamentos”.

3. Como Jó, ele se declara inocente, distante do caminho dos perversos: “quanto a mim, eu ando na minha integridade” (v. 11). Assim, pede para que suas intenções sejam colocadas à prova e a justiça lhe seja feita: “faze-me justiça, ó Senhor...” (v. 1,1). O tema do servo que sofre sem razão aparente é algo recorrente na religiosidade do Antigo Israel. Surge nos Salmos, em , em Isaías, em Jeremias e na figura do Cristo que padece no Gólgota.



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 25 de julho de 2022

OHOLAH E OHOLIVAH: ORGIAS NA TENDA DE YAHWEH


1. No Antigo Testamento a cidade de Jerusalém aparece em diversos textos como esposa de Yahweh, Deus de Israel (sobretudo em Os e Jr). Este tipo de metáfora reproduz uma forma de personificação muito comum na região Antigo Oriente Próximo, que descrevia cidades femininas como consortes do deus local.

2. No livro do profeta Ezequiel (23,4) as cidades de Samaria e Jerusalém são chamadas, respectivamente, de Oholah ( = tenda dela) e Oholivah ( = minha tenda [está] nela). O leitor talvez esteja se perguntando: que tenda é esta? A resposta é simples: no caso de Oholivah, a “tenda” é o templo de Jerusalém.

3. Os eufemismos sexuais que se sequem são pra lá de escandalosos. Ora, o texto sugere que o Templo de Jerusalém, a “tenda” de Yahweh “que está nela”, foi usada pela cidade como espaço para suas fornicações, “inflamando-se com seus amantes”, cuja “carne” (ou seja, órgãos sexuais), são como de jumentos e cavalos (v. 20).

4. O eufemismo funciona bem porque a palavra hebraica אהל (’ohel) serve para indicar tanto a tenda usada como espaço privado para as relações sexuais (Cf. 2Sm 16,22) como o espaço de culto (o templo). Hoje, como no Antigo Israel, há líderes religiosos que estão usando templos como espaço para suas “fornicações” políticas.

5. Fazem isso sem qualquer tipo de constrangimento. Pelo contrário: filmam suas orgias político-sexuais e publicam em suas redes sociais. E há teólogos – de renome, inclusive (e reformados, inclusive!) – tratando essas relações carnais como suprassumo da santidade.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 22 de julho de 2022

A IGREJA PRESBITERIANA, A MAÇONARIA E A POLÍTICA

1. Muitos dos protestantes que chegaram ao Brasil em meados do século XIX eram membros da maçonaria, instituição que apoiava a evangelização e formava com os protestantes uma relação que envolvia cooperação mútua. Missionários protestantes como John Boyle (presbiteriano) e Salomão Ginsburg (batista) foram frequentemente protegidos por maçons em suas andanças pelo Brasil dos séculos XIX e XX. Reflexos dessa aliança aparecem frequentemente em jornais protestantes.

2. Em 03/03/1900, por exemplo, uma nota publicada no periódico presbiteriano “O Puritano” lamenta que o jornal católico O Lábaro, classificado como “pasquim imundo”, desfira ataques “contra o protestantismo e contra a maçonaria”. Com o tempo, no entanto, as relações entre a maçonaria e a Igreja presbiteriana começaram a azedar e em 06/08/1903 um sínodo foi convocado para discutir o assunto.

3. Na decisão final, publicada no mesmo jornal presbiteriano em 20 de agosto de 1903, consta o seguinte: “O Synodo (sic) julga inconveniente legislar sobre o assunto. Considerando, porém, as contendas acerbas que se teem (sic) levantado sobre a questão, o Synodo (sic) recommenda (sic) aos crentes de uma e de outra parte que nutram sentimentos de caridade christã (sic) uns para com os outros...”.

4. Apesar do sínodo não ter apresentado uma decisão conclusiva sobre o assunto, uma minoria convencida da incompatibilidade entre a Maçonaria e o Evangelho solicitou aos ministros maçons que deixassem a ordem. O sínodo, por sua vez, julgou “prejudicial á (sic) causa do Evangelho qualquer propaganda pró ou contra a Maçonaria no seio da Egreja (sic)”. Na prática a Igreja Presbiteriana rachou por conta desta querela.

5. Na atual polarização política que assola o país, a Igreja Presbiteriana faria enorme bem se mantivesse a postura adotada em 1903, colocando-se neutra em questões político-ideológicas. Se a Igreja está sendo assolada, como querem nos fazer crer, por uma “nefasta influência do pensamento de esquerda”, por que finge não ver algumas feições fascistas do pensamento de direita que tem se desenvolvido no Brasil?

6. Estão coando mosquitos e engolindo camelos. Ou, quem sabe, coando camelos e mosquitos vermelhos e engolindo camelos e mosquitos azuis.


Jones F. Mendonça

 

sexta-feira, 15 de julho de 2022

EPIGRAFIA E APOLOGIA

1. Um exemplo de como é preciso ter cautela quando a imprensa anuncia uma grande descoberta arqueológica em Israel é a divulgação, no dia 07/07/22, da decifração de uma inscrição em uma tabuinha de pedra de 3500 anos contendo uma maldição dirigida ao governador de Jerusalém. De acordo com Gershon Galil, chefe do Instituto de Estudos Bíblicos e História Antiga da universidade de Haifa, é possível ler o seguinte: “Governador da Cidade, você certamente morrerá; amaldiçoado, você certamente morrerá...”.

2. Mas para Christopher Rollston, experiente estudioso da epigrafia semítica produzida na região, sequer é possível saber se de fato os traços que marcam a pedra correspondem a uma inscrição ou são meros motivos decorativos. Ele explica que mesmo que os traços sejam de fato consoantes, o trabalho de tradução seria difícil, porque a escrita alfabética antiga podia ser feita da esquerda para a direita (dextrógrada), da direita para a esquerda (sinistrógrada), colunar (direção vertical) ou bustrofédon (ziquezague).

3. Resumindo a ópera: Rollston acredita que a tal da “maldição contra o prefeito de Jerusalém” não passa de sensacionalismo barato.

Mais detalhes aqui e aqui:



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 6 de julho de 2022

DANIEL E APOCALIPSE EM CINCO PONTOS

1. O livro de Daniel, em seu capítulo 7, expõe ao leitor uma visão que descreve quatro bestas-feras subindo do mar (7,2). A primeira é um leão alado (v. 4), a segunda um urso (v. 5), a terceira um leopardo alado de quatro cabeças (v. 6) e a última um animal não identificado, dotado de dentes de ferro e dez chifres (v. 7). Essas quatro bestas representam reis/reinos (v. 17 e 23) que se sucedem e que serão derrotados não por uma fera selvagem, mas por alguém “semelhante ao filho do homem” (bar enash), cujo império será eterno.

2. Vale destacar que bar enash aqui não é título messiânico. A expressão é empregada para estabelecer contraste entre o aspecto animalesco dos quatro reinos e o quinto, que tem forma humana. O capítulo 2 apresenta uma mensagem semelhante. Mas desta vez os reinos malignos são representados por uma estátua erguida com materiais diferentes (ouro, prata, bronze, ferro e ferro misturado com argila), que são destronados não por alguém “semelhante ao filho do homem”, mas por uma pedra. “Pedra” e “filho do homem” representam, cada qual a seu modo, o estabelecimento do reino do ‘illay (עלי), o Altíssimo.

3. O Apocalipse retoma o uso de bestas-feras como representação de reinos malignos. Note, no entanto, que ela é uma fusão de três das feras mencionadas em Daniel: “A Besta que eu via parecia um leopardo: seus pés, contudo, eram como os de um urso e sua boca como a mandíbula de um leão” (13,2). A mensagem é clara: a besta que agora se manifesta é ainda mais terrível que aquela mencionada em Daniel. O Apocalipse relê e atualiza antigas tradições, algo bem costumeiro no ambiente religioso judaico.

4. Mas ao atualizar textos antigos, o autor do Apocalipse incorpora elementos novos. Veja que o Dragão, a besta-fera e o falso profeta desempenham o papel de uma espécie de “trindade maligna”. A besta até simula uma ressurreição (13,12). Outro recurso utilizado para imitar Deus é o estabelecimento de uma marca nos escolhidos, feita na mão direita ou na fronte (13,16). Em Dt 11,18 os israelitas são convidados a atar a palavra divina como um sinal na mão e na testa. Em Ez 9,4 os moradores de Jerusalém que têm um sinal (tav) na testa são poupados da lâmina afiada do exterminador.

5. Alguém inventou que o tal do “sinal” é um microchip, ou quem sabe um cartão de crédito ou uma tecnologia que está para surgir. Mas o Apocalipse está apenas fazendo alusões às Antigas Escrituras. O que ele quer dizer é: O Dragão, a besta-fera e o falso profeta querem imitar Deus. Simulam uma “trindade”. Irão, como Deus, “marcar” seus escolhidos. A mensagem implícita é a mesma de Mt 24,24: os falsos cristos e falsos profetas são dissimulados a ponto de quase enganarem até mesmo os escolhidos.



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 4 de julho de 2022

HEBRAICO E MATERIALISMO DIALÉTICO

1. Os idiomas nascem e se desenvolvem em relação direta com o mundo material no qual estão inseridos seus falantes. Um exemplo. A palavra hebraica gazar (גזר), cujo significado primário é “cortar”, ganha diferentes sentidos entre os hebreus, considerando que a vida geralmente era ceifada pela navalha (sacrifícios/batalhas).

2. Em 2Rs 6,4 um grupo de discípulos de Eliseu corta (gazar) madeira com a finalidade de construir uma moradia. “Cortar”, neste caso, indica exatamente isso: dividir a madeira com uma lâmina afiada. Mas o verbo “gazar” pode ganhar sentidos diferentes, dependendo do contexto.

3. Em Lm 3,54, após ser lançado em um fosso, o poeta diz: “Escorrem as águas sobre minha cabeça. Eu disse: estou cortado”. A Almeida Revista e Corrigida (ARC) traduz exatamente assim: “estou cortado”. O tradutor atento entende que ele quer dizer “estou morto”, ou, como preferimos: “estou perdido”.

4. Eis a primeira lição: nem sempre a tradução mais literal é a melhor. A segunda devo a Peter Berger: "O homem inventa um idioma e descobre que a sua fala e o seu pensamento são dominados pelas regras gramaticais que ele próprio criou" ("O Dossel sagrado", 1985, p. 22).



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 30 de junho de 2022

ASHERAH, A SABEDORIA DIVINA E A CIDADE DE JERUSALÉM

1. Achados arqueológicos como a Incrição de Khirbet el Qom e de Kuntillet Ajrud sugerem que Yahweh era adorado ao lado de sua consorte, Asherah, também conhecida como Rainha do Céu. A Bíblia também preserva certos vestígios do culto a Asherah: “[Manassés] colocou a escultura de Asherah, que mandara fazer, no Templo, do qual Iahweh dissera a Davi e a seu filho Salomão” (2Rs 21,7. Veja também Jr 44).

2. A crença de que Yahweh possuía um cônjuge teria sido abolida por ocasião da reforma do rei Josias, no século VII. Mas a tentativa literária e religiosa de obliterar a deusa não foi bem sucedida na medida em que a sombra de Asherah ainda se projeta na forma de vários disfarces literários (inclusive pela mão de alguns tradutores, que substituem a palavra hebraica “Asherah” por “poste ídolo”).

3. Um desses disfarces seria a hokhmah (חכמה), palavra feminina empregada para personificar a sabedoria divina no livro de Provérbios (cap. 8). Há quem suponha, como Dvorah Lederman Daniely, que a fonte da metáfora conjugal entre Yahweh e sua noiva ou esposa, alternadamente chamada de Jerusalém, Sião ou Filha de Sião, vem das relações conjugais entre Yahweh e Asherah. Ele sugere que a cidade aparece como representação codificada da Deusa.

Leia mais aqui.



Jones F. Mendonça

EZEQUIAS, CUCHITAS, ASSÍRIOS E O PROFETA NU



1. No século VIII a.C., enquanto no Antigo Israel atuavam profetas como Amós, Oseias e Isaías, o Egito era governado pelos cuchitas, guerreiros negros que viviam mais ao sul do Nilo. Na Bíblia, os cuchitas aparecem envolvidos na luta do rei Ezequias pela sobrevivência, no período em que viveu sob a ameaça assíria (2Rs 19).

2. Ao ouvir que os cuchitas vinham ao seu encontro para combatê-lo, o poderoso rei assírio recuou, “pois tinha recebido esta notícia a respeito de Taraca, o rei de Cuch: ‘ele partiu para te fazer guerra’” (2Rs 19,9). Nesta pintura, cuja autoria eu desconheço, você vê o confronto entre um soldado cuchita e um soldado assírio.

3. Irritado com a confiança de Ezequias na ajuda cuchita, o profeta Isaías anda nu e descalço, indicando que assim seus aliados seriam levados como prisioneiros: "dessa mesma maneira [nus e descalços] o rei da Assíria levará os cativos do Egito e os exilados de Cuch" (2Rs 2,4). A queda do Egito realmente aconteceu e é mencionada pelo profeta Naum (3,8-10).


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 24 de junho de 2022

JUDAS E ABSALÃO

1. De acordo como 2Sm 18,9-15, Absalão foi capturado por Joab – comandante do exército de Davi – após ter seus cabelos enroscados em um carvalho. Com “sangue nos olhos”, Joab atirou três dardos no coração de Absalão, que morreu após ser golpeado por dez escudeiros que também o perseguiam.

2. A tradição cristã medieval viu em Absalão uma representação antecipada de Judas: Absalão trai Davi; Judas trai Jesus. Além disso, Absalão, o “traidor”, morre “pendurado”, como Judas (Mt 27,5). Aquitofel, aliado de Absalão, se enforca (2Sm 17,23). De fato, há muitos elementos comuns entre as duas narrativas, mas as semelhanças não param por aí.

3. Após ser traído por Absalão, Davi atravessou o Vale de Cedron e subiu o monte das Oliveiras aos prantos (2Sm 15). Jesus, também após ser traído (por Judas), atravessou o Vale de Cedron e entrou em um jardim no mesmo monte (Jo 18,1-2). A grande diferença entre as duas narrativas é que Davi não é alcançado pelas tropas de Absalão. Jesus, como sabemos, é capturado e morto (mas seu reinado é “para sempre”).

4. Tanto os rabinos como os teólogos cristãos medievais já percebiam que alguns personagens bíblicos parecem desempenhar na narrativa o mesmo papel que um personagem mais antigo. Com um pouco de paciência e atenção, você vai encontrar muitos paralelos entre Jesus e figuras como Moisés, Elias, Samuel, Sansão, etc.


Jones F. Mendonça