quarta-feira, 22 de março de 2023

SOBRE "NUVENS", AGOUREIROS E CANNABIS


1. A palavra “nuvem”, em hebraico, é ‘anan (ענן). Ela aparece, por exemplo, em Gn 9,13: “porei nas NUVENS o meu arco”. Pode parecer bem estranho, mas o hebraico possui um verbo usado para designar a ação de fazer nuvens. Veja: “E acontecerá que quando eu ENEVOAR (verbo) NUVENS (substantivo) sobre a terra...” (Gn 9,14).

2. “Enevoar” e “nuvem” são palavras de mesma raiz e grafadas do mesmo modo: ענן. Bem, mas a afinidade entre verbo e substantivo é algo muito comum, até em nosso idioma. Estranho mesmo é que os “adivinhos” ou “agoureiros” eram tratados como “enevoadores” ou “produtores de nuvens” (verbo no poel, forma intensiva). Por quê?

3. Inicialmente é preciso dizer que ‘anan serve para designar “nuvem” ou “fumaça”, como em Ez 8,11: "[cada um] elevava o perfume de uma NUVEM de incenso". O texto descreve a fumaça produzida pelos incensos dos 70 anciãos que adoravam divindades estrangeiras (aparentemente, Tamuz) no Templo de Jerusalém.

4. Assim, talvez os adivinhadores tenham recebido o rótulo de “enevoadores” ou “produtores de fumaça” porque executavam seus rituais de adivinhação em meio à fumaça produzida pelo incenso ou, quem sabe, por outros materiais, como ervas. Não é muito difícil imaginar o cenário.

5. Em 2020 um grupo de arqueólogos descobriu incenso misturado com maconha em um antigo altar localizado em Tel Arad, ao sul de Jerusalém. Bem, as demais conclusões ficam por tua conta😃. Sobre a maconha encontrada em Tel Arad, leia aqui.


Jones F. Mendonça

terça-feira, 21 de março de 2023

O HEBRAICO E SEU ALFABETO REDUZIDO

1. Uma das primeiras coisas que o estudante de hebraico aprende é que seu alfabeto possui 22 consoantes e que palavras de mesma raiz geralmente carregam algum tipo de conexão, como ‘ebed (servo) e ‘abad (trabalho). Ambas as palavras são grafadas com as mesmas consoantes: עבד. Uma vez que o hebraico não possui vogais, a vocalização era transmitida de pais/mães para filhos(as).

2. Mitchell First, em artigo publicado no Jewish Link, chama a atenção para o seguinte: assim como o árabe moderno, há boas razões para pensar que o hebraico mais antigo possuía 27 ou 29 consoantes e não 22 como atualmente. Ele explica que algumas consoantes foram aglutinadas em uma única, fenômeno observado no ayn, o het, o shin, o zayin e o tzad.

3. O resultado prático disso é que algumas palavras hebraicas, embora visualmente aparentem possuir a mesma raiz, na verdade podem conter consoantes que foram modificadas pela aglutinação. Assim, o fenômeno pode conduzir o exegeta a buscar relações que jamais existiram entre palavras formadas pelas mesmas consoantes, como entre עצם, que significa “forte”, e עצם, que significa “próximo”.

4. Interessou-se pelo o assunto? Siga o link.



Jones F. Mendonça

SOBRE O JEJUM DE DANIEL

1. Muita gente se pergunta a respeito das razões que levaram o autor do livro de Daniel a registrar a rejeição dos judaítas empregados na corte babilônica às “iguarias do rei” (1,8). Seriam esses alimentos oferecidos a divindade locais? A abstenção visava evitar o luxo e demonstrar humildade? Uma dieta de legumes é mais saudável? Seria Daniel um vegetariano ou vegano? Nada disso. A razão é outra.

2. O episódio tem finalidade didática, e é destinado às comunidades judaicas da diáspora, expostas diariamente aos costumes estrangeiros, vistos como uma ameaça à sua fé e às suas tradições. Veja que Daniel rejeita alimentos de origem animal, mas aceita alimentos “semeados” (זרע; “legumes” não é uma boa tradução), ou seja, tudo o que vem da terra (exceto o vinho, cf. 1,8), como frutas, legumes, verduras, azeite e cereais.

3. O profeta aparece como modelo de como se portar em terras estrangeiras no que diz respeito à dieta judaica, baseada em um conjunto de regras alimentares estabelecidas pela tradição (Torah/Talmud). Assim, fez opção por uma alimentação especial, atualmente chamada de kosher. As regras preveem uma série de restrições relacionadas aos alimentos de origem animal e ao vinho, mas poucas em relação aos frutos da terra.

4. Legumes, frutas, verduras e cereais precisavam passar por um exame relativamente simples: deveriam ser bem lavados para e evitar a ingestão de pequenos moluscos e insetos. Assim, o texto quer enfatizar que o vigor de Daniel e de seus companheiros (cf. 1,15) vem da fidelidade a seu Deus, e não dos alimentos em si. A Lei judaica jamais proibiu o consumo de carne ou de vinho.

5. Talvez você não saiba, mas atualmente existe até telefone kosher e um KosherTube!




Jones F. Mendonça

segunda-feira, 20 de março de 2023

GABRIEL, O VALENTE DE DEUS


1. Além de Ish/Ishah (homem/mulher) e zakar/neqebah (macho/fêmea), o hebraico emprega os termos gibbor/geberet para designar um homem ou mulher dotados de grande poder. São classificados como Gibbor: Ninrode, Jefté, Davi e Jeroboão, dentre outros.

2. Geberet é aplicado, por exemplo, a mulheres como Sara, “poderosa” em relação a Hagar, em Gn 16,4: “Quando [Hagar] se viu grávida, começou a olhar sua GEBERET (גברת) com desprezo”. A tradução “sua senhora”, funciona bem aqui.

3. Tanto gibbor como geberet vêm da raiz verbal GaBaR = ser forte, poderoso. Também deriva da mesma raiz o nome Gabriel (GaBRi-el), que significa “poderoso de El”, ou “poderoso de Deus” (Dn 8,16; 9,21).



Jones F. Mendonça

SOBRE BÊNÇÃOS E SOBRE JOELHOS


1. O verbo “abençoar”, no hebraico, é barakh (lê-se baraR, com o “r” pronunciado na garganta). É no mínimo curiosa a semelhança entre barakh (abençoar) e berekh (joelho). Seria mera coincidência? Suponho que não.

2. Vale dizer que barakh pode ser traduzido tanto por “abençoar” como por “ajoelhar”. Considerando que o hebraico é um idioma muito visual, é provável que o ato de abençoar envolvesse alguma ação relacionada aos joelhos.

3. Há poucos casos em que “barakh” deve ser traduzido por “ajoelhar” e não por “abençoar”. Um exemplo poder ser tomado de 2Cr 6,13: “E AJOELHOU [Salomão] sobre os joelhos dele na frente de toda a assembleia”.

4. É difícil saber se o ato de abençoar aparece relacionado aos joelhos do abençoador ou do abençoado. Provavelmente do abençoado, que dobrava os joelhos diante do abençoador, esperando o anúncio da bênção.

5. Ou, talvez indique os joelhos do abençoador, sobre os quais o abençoado se debruçava (cf. imagem, produzida por Gustave Doré).



Jones F. Mendonça

sábado, 18 de março de 2023

DOS NOMES


1. Não é difícil encontrar gente dizendo que "nome não se traduz". Assim, argumentam que nomes bíblicos como Abraão, Moisés e Jacó devem ser pronunciados como no hebraico: Avraham, Mosheh e Ya'aqov. Jesus – dizem os mais puristas – deve ser tratado como Yeshua ou Yehoshua. Que canseira...

2. Ocorre que alguns judeus do primeiro século não pareciam ver problemas em ajustar seus nomes à cultura na qual estavam inseridos. O nome judaico de Paulo, por exemplo, é Shaul (Saul; שאול). No mundo grego ficou conhecido como Saulos (σαυλος) e no mundo latino como Paulos (παυλος).

3. Tiago é outro exemplo. Na carta que leva seu nome, o personagem é tratado como Iakobos (Ιακωβος). Mas Iakobos é versão grega do hebraico Ya'aqov (Jacó; יעקב). Na Espanha ficou conhecido como Saint Iago, daí Santiago. Nosso "João" era Yohanan (יוחנן) em hebraico e Iohannes (Ιοαννης) em grego.

4. Na boca do povo os nomes são como foca ensaboada e manteiga escorrendo pelos dedos.


Jones F. Mendonça

terça-feira, 7 de março de 2023

FRAGMENTO COM O NOME DE DARIO, O PERSA, EM LAQUIS

1. Na semana passada os jornais de Israel anunciaram a descoberta de um pequeno fragmento de cerâmica contendo uma inscrição fazendo referência a Dario, rei persa mencionado nos livros de Esdras, Neemias, Daniel, Ageu e Zacarias.

2. Haggai Misgav, famoso epigrafista da Universidade Hebraica de Jerusalém, confirmou que a inscrição é autêntica, ou seja, que o tipo de escrita gravada no objeto corresponde ao tipo de grafia aramaica usada na época de Dario.

3. Outros detalhes pareciam depor a favor da autenticidade do artefato: 1) a cidade de Laquis, local onde foi descoberto o fragmento, funcionou como centro administrativo durante o período persa; 2) exames de laboratório atestaram a antiguidade da cerâmica. Tudo parecia perfeito.

4. Mas assim que viu a notícia na imprensa, um especialista em escrita aramaica revelou que a inscrição fora feita por ele enquanto visitava o local, há alguns meses. O alegado objetivo dessa ação: demonstrar a seus alunos como uma inscrição era feita. O caco - realmente antigo, mas sem inscrições - havia sido apanhado no chão.

5. O episódio revela que não é tão difícil falsificar um artefato arqueológico. Sobretudo quando os “especialistas” estão com muita vontade de que ele seja autêntico. Mais detalhes no Haaretz.


Jones F. Mendonça