segunda-feira, 25 de julho de 2022

OHOLAH E OHOLIVAH: ORGIAS NA TENDA DE YAHWEH


1. No Antigo Testamento a cidade de Jerusalém aparece em diversos textos como esposa de Yahweh, Deus de Israel (sobretudo em Os e Jr). Este tipo de metáfora reproduz uma forma de personificação muito comum na região Antigo Oriente Próximo, que descrevia cidades femininas como consortes do deus local.

2. No livro do profeta Ezequiel (23,4) as cidades de Samaria e Jerusalém são chamadas, respectivamente, de Oholah ( = tenda dela) e Oholivah ( = minha tenda [está] nela). O leitor talvez esteja se perguntando: que tenda é esta? A resposta é simples: no caso de Oholivah, a “tenda” é o templo de Jerusalém.

3. Os eufemismos sexuais que se sequem são pra lá de escandalosos. Ora, o texto sugere que o Templo de Jerusalém, a “tenda” de Yahweh “que está nela”, foi usada pela cidade como espaço para suas fornicações, “inflamando-se com seus amantes”, cuja “carne” (ou seja, órgãos sexuais), são como de jumentos e cavalos (v. 20).

4. O eufemismo funciona bem porque a palavra hebraica אהל (’ohel) serve para indicar tanto a tenda usada como espaço privado para as relações sexuais (Cf. 2Sm 16,22) como o espaço de culto (o templo). Hoje, como no Antigo Israel, há líderes religiosos que estão usando templos como espaço para suas “fornicações” políticas.

5. Fazem isso sem qualquer tipo de constrangimento. Pelo contrário: filmam suas orgias político-sexuais e publicam em suas redes sociais. E há teólogos – de renome, inclusive (e reformados, inclusive!) – tratando essas relações carnais como suprassumo da santidade.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 22 de julho de 2022

A IGREJA PRESBITERIANA, A MAÇONARIA E A POLÍTICA

1. Muitos dos protestantes que chegaram ao Brasil em meados do século XIX eram membros da maçonaria, instituição que apoiava a evangelização e formava com os protestantes uma relação que envolvia cooperação mútua. Missionários protestantes como John Boyle (presbiteriano) e Salomão Ginsburg (batista) foram frequentemente protegidos por maçons em suas andanças pelo Brasil dos séculos XIX e XX. Reflexos dessa aliança aparecem frequentemente em jornais protestantes.

2. Em 03/03/1900, por exemplo, uma nota publicada no periódico presbiteriano “O Puritano” lamenta que o jornal católico O Lábaro, classificado como “pasquim imundo”, desfira ataques “contra o protestantismo e contra a maçonaria”. Com o tempo, no entanto, as relações entre a maçonaria e a Igreja presbiteriana começaram a azedar e em 06/08/1903 um sínodo foi convocado para discutir o assunto.

3. Na decisão final, publicada no mesmo jornal presbiteriano em 20 de agosto de 1903, consta o seguinte: “O Synodo (sic) julga inconveniente legislar sobre o assunto. Considerando, porém, as contendas acerbas que se teem (sic) levantado sobre a questão, o Synodo (sic) recommenda (sic) aos crentes de uma e de outra parte que nutram sentimentos de caridade christã (sic) uns para com os outros...”.

4. Apesar do sínodo não ter apresentado uma decisão conclusiva sobre o assunto, uma minoria convencida da incompatibilidade entre a Maçonaria e o Evangelho solicitou aos ministros maçons que deixassem a ordem. O sínodo, por sua vez, julgou “prejudicial á (sic) causa do Evangelho qualquer propaganda pró ou contra a Maçonaria no seio da Egreja (sic)”. Na prática a Igreja Presbiteriana rachou por conta desta querela.

5. Na atual polarização política que assola o país, a Igreja Presbiteriana faria enorme bem se mantivesse a postura adotada em 1903, colocando-se neutra em questões político-ideológicas. Se a Igreja está sendo assolada, como querem nos fazer crer, por uma “nefasta influência do pensamento de esquerda”, por que finge não ver algumas feições fascistas do pensamento de direita que tem se desenvolvido no Brasil?

6. Estão coando mosquitos e engolindo camelos. Ou, quem sabe, coando camelos e mosquitos vermelhos e engolindo camelos e mosquitos azuis.


Jones F. Mendonça

 

sexta-feira, 15 de julho de 2022

EPIGRAFIA E APOLOGIA

1. Um exemplo de como é preciso ter cautela quando a imprensa anuncia uma grande descoberta arqueológica em Israel é a divulgação, no dia 07/07/22, da decifração de uma inscrição em uma tabuinha de pedra de 3500 anos contendo uma maldição dirigida ao governador de Jerusalém. De acordo com Gershon Galil, chefe do Instituto de Estudos Bíblicos e História Antiga da universidade de Haifa, é possível ler o seguinte: “Governador da Cidade, você certamente morrerá; amaldiçoado, você certamente morrerá...”.

2. Mas para Christopher Rollston, experiente estudioso da epigrafia semítica produzida na região, sequer é possível saber se de fato os traços que marcam a pedra correspondem a uma inscrição ou são meros motivos decorativos. Ele explica que mesmo que os traços sejam de fato consoantes, o trabalho de tradução seria difícil, porque a escrita alfabética antiga podia ser feita da esquerda para a direita (dextrógrada), da direita para a esquerda (sinistrógrada), colunar (direção vertical) ou bustrofédon (ziquezague).

3. Resumindo a ópera: Rollston acredita que a tal da “maldição contra o prefeito de Jerusalém” não passa de sensacionalismo barato.

Mais detalhes aqui e aqui:



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 6 de julho de 2022

DANIEL E APOCALIPSE EM CINCO PONTOS

1. O livro de Daniel, em seu capítulo 7, expõe ao leitor uma visão que descreve quatro bestas-feras subindo do mar (7,2). A primeira é um leão alado (v. 4), a segunda um urso (v. 5), a terceira um leopardo alado de quatro cabeças (v. 6) e a última um animal não identificado, dotado de dentes de ferro e dez chifres (v. 7). Essas quatro bestas representam reis/reinos (v. 17 e 23) que se sucedem e que serão derrotados não por uma fera selvagem, mas por alguém “semelhante ao filho do homem” (bar enash), cujo império será eterno.

2. Vale destacar que bar enash aqui não é título messiânico. A expressão é empregada para estabelecer contraste entre o aspecto animalesco dos quatro reinos e o quinto, que tem forma humana. O capítulo 2 apresenta uma mensagem semelhante. Mas desta vez os reinos malignos são representados por uma estátua erguida com materiais diferentes (ouro, prata, bronze, ferro e ferro misturado com argila), que são destronados não por alguém “semelhante ao filho do homem”, mas por uma pedra. “Pedra” e “filho do homem” representam, cada qual a seu modo, o estabelecimento do reino do ‘illay (עלי), o Altíssimo.

3. O Apocalipse retoma o uso de bestas-feras como representação de reinos malignos. Note, no entanto, que ela é uma fusão de três das feras mencionadas em Daniel: “A Besta que eu via parecia um leopardo: seus pés, contudo, eram como os de um urso e sua boca como a mandíbula de um leão” (13,2). A mensagem é clara: a besta que agora se manifesta é ainda mais terrível que aquela mencionada em Daniel. O Apocalipse relê e atualiza antigas tradições, algo bem costumeiro no ambiente religioso judaico.

4. Mas ao atualizar textos antigos, o autor do Apocalipse incorpora elementos novos. Veja que o Dragão, a besta-fera e o falso profeta desempenham o papel de uma espécie de “trindade maligna”. A besta até simula uma ressurreição (13,12). Outro recurso utilizado para imitar Deus é o estabelecimento de uma marca nos escolhidos, feita na mão direita ou na fronte (13,16). Em Dt 11,18 os israelitas são convidados a atar a palavra divina como um sinal na mão e na testa. Em Ez 9,4 os moradores de Jerusalém que têm um sinal (tav) na testa são poupados da lâmina afiada do exterminador.

5. Alguém inventou que o tal do “sinal” é um microchip, ou quem sabe um cartão de crédito ou uma tecnologia que está para surgir. Mas o Apocalipse está apenas fazendo alusões às Antigas Escrituras. O que ele quer dizer é: O Dragão, a besta-fera e o falso profeta querem imitar Deus. Simulam uma “trindade”. Irão, como Deus, “marcar” seus escolhidos. A mensagem implícita é a mesma de Mt 24,24: os falsos cristos e falsos profetas são dissimulados a ponto de quase enganarem até mesmo os escolhidos.



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 4 de julho de 2022

HEBRAICO E MATERIALISMO DIALÉTICO

1. Os idiomas nascem e se desenvolvem em relação direta com o mundo material no qual estão inseridos seus falantes. Um exemplo. A palavra hebraica gazar (גזר), cujo significado primário é “cortar”, ganha diferentes sentidos entre os hebreus, considerando que a vida geralmente era ceifada pela navalha (sacrifícios/batalhas).

2. Em 2Rs 6,4 um grupo de discípulos de Eliseu corta (gazar) madeira com a finalidade de construir uma moradia. “Cortar”, neste caso, indica exatamente isso: dividir a madeira com uma lâmina afiada. Mas o verbo “gazar” pode ganhar sentidos diferentes, dependendo do contexto.

3. Em Lm 3,54, após ser lançado em um fosso, o poeta diz: “Escorrem as águas sobre minha cabeça. Eu disse: estou cortado”. A Almeida Revista e Corrigida (ARC) traduz exatamente assim: “estou cortado”. O tradutor atento entende que ele quer dizer “estou morto”, ou, como preferimos: “estou perdido”.

4. Eis a primeira lição: nem sempre a tradução mais literal é a melhor. A segunda devo a Peter Berger: "O homem inventa um idioma e descobre que a sua fala e o seu pensamento são dominados pelas regras gramaticais que ele próprio criou" ("O Dossel sagrado", 1985, p. 22).



Jones F. Mendonça