quinta-feira, 29 de agosto de 2019

OS PRIMOGÊNITOS NO JUDAÍSMO TALMÚDICO

De acordo com o Deuteronômio (15,19) todo o primogênito macho das vacas e das ovelhas deve ser sacrificado a Javé, Deus de Israel. Isso significa que não podem ser tosquiados, usados como animal de carga ou abatidos para consumo. Ocorre que após a destruição do Templo, em 70 d.C., os sacrifícios tiveram que ser suspensos. O que fazer com estes animais? Podem ser consumidos?

O Talmude respondeu a essa questão com um NÃO. Bem, mas uma decisão como essa levaria os pecuaristas judeus à falência tendo que alimentar um enorme rebanho de primogênitos “improdutivos”. A solução encontrada foi a seguinte: a pessoa que faz o parto pode infligir um defeito no animal enquanto ainda estiver no útero (como um pequeno corte na orelha), tornando-o inapropriado para o sacrifício e consequentemente apropriado para outros usos (Gemará, em Temura 24b).

A ação não é vista como uma violação da lei, afinal um animal não pode ser considerado primogênito até que nasça. No útero o ele é apenas uma possibilidade (uma “potência”, como dizia Aristóteles). Como eram sagazes esses rabinos...

Leia mais aqui (via Paleojudaica). 


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

CLERO, SARCASMO, ARTE E INDULGÊNCIAS


Em 1509, enquanto Lutero conquistava seu diploma de bacharel em Bíblia pela Faculdade de Wittenberg, Erasmo de Roterdã - seu futuro desafeto - debochava do declínio moral do clero inspirado no sarcasmo de Luciano de Samósata, escritor latino do II século. Um dos seus alvos foi o Papa Júlio II, sobrinho de outro Papa: Sisto VI (de seu nome vem o título “Capela Sistina”). Foi de Júlio a ideia de derrubar a antiga basílica de São Pedro construída do século IV por Constantino. A nova seria erguida com a venda de indulgências...

No texto de Erasmo, intitulado “O elogio da loucura”, Júlio é barrado por São Pedro nas portas do céu e é tratado pelo apóstolo como “Júlio, o imperador que voltou do inferno”. Uma das razões da recusa de Pedro era o gosto de Júlio pela espada, daí sua fala: “Batina de padre, mas armadura ensanguentada por baixo”. No filme “Lutero” (2004, direção de Eric Till) Júlio aparece vestindo uma armadura, para desgosto de Lutero. Júlio também surge vestido como mais gostava no filme “A agonia e o êxtase” (1965).



Jones F. Mendonça

terça-feira, 20 de agosto de 2019

NÃO É “TORRE DE BABEL”, É “TORRE DE BABILÔNIA”

Em Gn 11,9 a palavra hebraica “Babel” é traduzida literalmente: “Babel” (referência à cidade na qual foi construída uma torre). Em Is 11,4 “Babel” é traduzida por “Babilônia” (referência ao poderoso império mesopotâmico que destruiu Jerusalém em 586 a.C.). Bem, em minha opinião a “Babel” de Gênesis e a “Babel” de Isaías indicam a mesma cidade. Explico.

A tal torre de Gn 11 provavelmente se refere a um zigurate, templo religioso em forma de pirâmide terraplanada (Etemenanki: “templo da fundação do céu e da terra”) construído na Babilônia. A etimologia popular explicou o nome “Babel” a partir do verbo hebraico “balal” (misturar/confundir), daí: “Deu-se-lhe por isso o nome de Babel, pois foi lá que Deus ‘balal’ (misturou/confundiu)”. Os judeus adoravam esses trocadilhos. "Babel", para os babilônios significava "entrada de Deus". 

A semelhança entre a “Babel” de Gênesis 11 e a “Babel” de Isaías não está apenas no nome. Note que em Is 14,13 (veja também Is 51,53) o rei da Babilônia é censurado por achar que poderia “subir até o céu, acima das estrelas de Deus” (Egito e Edom são condenados pela mesma falta em Ez 31,10 e Ob 1,3). Na Babel de Gênesis o pecado é o mesmo: “Vinde! Construamos uma cidade e uma torre cujo ápice penetre nos céus!”.

Gn 11,1-9 é, em seu contexto original, um deboche à religião e à arrogância dos babilônios. A data provável da redação: o período exílico (597-537 a.C.). Os autores: judeus exilados, especialistas na arte do escárnio e da troça.



Jones F. Mendonça

SHELOMI, A NAMORADEIRA DO LEVÍTICO

O livro do Levítico (24) conta a história de um menino que foi apedrejado após blasfemar contra Deus. O menino, cujo nome não é mencionado, tem por mãe “Shelomi, filha de Divri, da tribo de Dan” (v. 11) e por pai um egípcio (v. 10). Comentários judaicos sobre a narrativa revelam a obsessão dos rabinos por explicações que pudessem relacionar o nome de uma pessoa aos seus atos. Na verdade, revela mais coisas. Veja:

Um comentário judaico (midrash Vayikra Rabbah) vê semelhanças entre o nome “Shelomi” e a palavra shalom (paz). Sugere que Shelomi vivia se oferecendo aos homens com suas saudações maliciosas: “shalom, Fulano”, “shalom, Cicrano”. Outro comentário associa o nome do pai de Shelomi, Divri, à palavra de mesma raiz “davar”, “falar”. Tal semelhança seria capaz de reforçar a tese: Shelomi seria uma paqueradora tagarela.

E você perguntando de onde Feliciano tira inspiração para seus sermões...

Leia mais sobre o assunto no The Torah (por Wendy Zierler). 


Jones F. Mendonça

O CRIME DE GABAÁ E AS DANÇARINAS DE JAVÉ

A expressão “nesse tempo não havia rei em Israel” aparece quatro vezes no livro de Juízes (17,6; 18,1; 19,1; 21,25). Ela surge antes ou depois de uma ação moralmente condenável, como no caso do crime de Gabaá (capítulos 19-21).

Nessa história um grupo de benjamitas estupra e mata a concubina de um levita que havia se hospedado na casa de um homem das montanhas de Efraim. Indignado, o levita corta o corpo de sua concubina em doze partes e as envia às tribos de Israel denunciando o crime dos benjamitas.

As tribos entram em guerra contra os benjamitas e eles acabam derrotados. Em seguida fazem um juramento se comprometendo a jamais darem suas filhas em casamento aos benjamitas. Mas logo se dão conta do erro que cometeram: a falta de mulheres poderá levar a tribo de Benjamin à extinção. E agora, o que fazer?

A solução encontrada: 1) sequestrar 400 virgens de Jabes Galaad e matar o resto da população; 2) sequestrar mulheres de Silo, enquanto saem para dançar nas vinhas por ocasião de uma festa religiosa. Bem, a história não tem um final, digamos, inspirador sob o ponto de vista moral. É por isso que ela termina assim:

“Naqueles dias não havia rei em Israel, e cada um fazia o que lhe parecia correto” (21,25).



Jones F. Mendonça

terça-feira, 6 de agosto de 2019

DEBORAH, A ABELHA DE FOGO

Deborah (=abelha), em Jz 4,4, é apresentada como “profetiza, mulher de Lapidot”. Uma dúvida atormenta o tradutor: “Lapidot” é o nome de seu marido? (que nunca mais aparece). É o nome do local de seu nascimento? (que nunca mais aparece?). Ou deve ser traduzido literalmente: “mulher de labaredas”? (lapidot é plural de lapid = labareda/tocha). Se esta for a opção correta, o que cargas d’água seria uma “mulher de labaredas”?

Curioso é que Baraq, aquele líder que confessa só ir à batalha caso Deborah siga ao seu lado (4,8), possui um nome que significa algo como “raio de luz” ou “relâmpago”. Ela a “labareda”. Ele o “relâmpago”. Que coisa, não? Bem, ambos têm um inimigo comum: Sísera, guerreiro com 900 carros. Mas quem brilha mesmo nessa história é Jael, mulher que crava uma estaca na cabeça de Sísera (4,21). O leitor, atento ao que foi dito em 4,9, percebe que se enganou. Deborah não falava dela mesma, mas de outra mulher.

O mais estranho: antes de acabar com Sísera, Jael lhe dá leite e cama com cobertinha e tudo (4,19). Na literatura judaica as mulheres geralmente liquidam seus inimigos usando vinho e sedução, como é o caso de Dalila, Judith, Ester e Salomé. Uma história repleta de enigmas. Vestígios da mão de um redator/revisor sapiencial?



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

BREVE HISTÓRIA DO PESSIMISMO

É possível classificar os pessimistas em diversas categorias. Há, por exemplo, os pessimistas religiosos, como Agostinho, Lutero e Calvino. São “pessimistas metafísicos” porque explicam a dor, a angústia, a injustiça, a maldade humana a partir da influência negativa da vontade (corrompida pela queda): o pecado original teria afetado a natureza humana de tal forma que só uma interferência divina daria jeito. Uma existência plena é projetada para o mundo porvir.

O gnosticismo – corrente cristã que fez muito sucesso no II século – explicou o mal de outra forma: o mundo teria sido criado por um Deus mau, o demiurgo. Mas no homem residiria uma centelha do Deus verdadeiro, que poderia ser despertada pelo Cristo. O dualismo gnóstico, cujo pessimismo geralmente é classificado como “pessimismo cosmológico”, praticamente desapareceu.

No âmbito filosófico temos uma gama de pessimistas. São diferentes dos religiosos porque não veem o mal como tendo origem num pecado original. Um exemplo: Schopenhauer. Seu pessimismo é do tipo “passivo” porque não apresenta uma solução definitiva para o problema do sofrimento e da falta de sentido da vida (a arte seria uma solução paliativa, um consolo). Algumas vezes é chamado de “pessimismo romântico”.

Embora reconheça – como Schopenhauer – o absurdo da vida, Nietzsche era um “pessimista ativo”. Inspirando-se no modo como os gregos encaravam a tragédia, diria algo assim: “é preciso afirmar não apenas o gozo e as alegrias, mas também a dor e o sofrimento” (amor fati). Mais do que isso: ele diria que é preciso desejar a vida com todas as suas atrocidades, mesmo que se repitam num ciclo perpétuo, o “eterno retorno”.

Na primeira metade do século XX surgiram pessimistas existencialistas como Sartre (escreveu um livro chamado “A náusea”!) e Simone de Beauvoir (autora da famosa e mal compreendida frase “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”). Os existencialistas diziam, como todo o “pessimista” (“niilista” é um termo melhor), que a vida não tem sentido. A destruição provocada pela guerra realçou essa dimensão trágica da vida. O remédio proposto pelos existencialistas: inventar um sentido e projetar as energias nele.



Jones F. Mendonça